Acórdão nº 453/13.7T2AVR.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 31 de Março de 2022

Magistrado ResponsávelFERREIRA LOPES
Data da Resolução31 de Março de 2022
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça AA, intentou ação declarativa, com processo ordinário, contra BB, médico, e C ... Hospital..., pedindo a condenação destes a pagarem-lhe, solidariamente, a quantia de € 537.775,00, acrescida de juros de mora desde a citação e até integral pagamento, a título de indemnização.

Como fundamento alegou ser a única herdeira de CC, sua filha, falecida a …/07/2009. Em 2007, aquela foi submetida a uma intervenção cirúrgica designada por “colecistectomia”, pelo 1º Réu nas instalações da 2ª, durante a qual ocorreu uma hemorragia intraoperatória súbita que resultou de uma secção completa da via biliar principal ao nível do colédoco, de uma extensa laceração da veia porta 1 centímetro acima da bifurcação e de uma laceração hepática profunda do leito vesicular, que foram causadas por erro no procedimento cirúrgico ou do material usado, que a equipa médica não conseguiu controla. Foi decidido transferir a doente para o Hospital ... (H...), no ..., onde a CC foi operada no dia 11.07.207 e novamente nos dias 13 e 16 daquele mês e a 12.06.2006, vindo a falecer no Serviço de Cuidados Intensivos do H... no dia … .07.2009, num contexto de choque séptico, que evoluiu para falência multiorgânica.

A indemnização peticionada corresponde a salários perdidos pela filha, retribuições que aquela deixou de auferir durante a sua presumível existência, despesas que aquela teve com medicamentos, deslocações e honorários ao médico que a assistiu, pelos danos não patrimoniais por aquela sofridos e ainda, no que aos danos próprios por si sofridos, no ressarcimento pelo sofrimento que teve com a morte da sua filha e nos danos de natureza não patrimonial que também sofreu.

Os Réus BB e C ... Hospital..., contestaram em articulados próprios, excecionando a prescrição do direito e por impugnação.

O 1ª Réu deduziu a intervenção principal provocada de Axa Portugal – Companhia de Seguros, S.A., e a 2ª a intervenção acessória provocada da Companhia de Seguros Seguros Tranquilidade, S.A., por terem transferidos para estas, por contrato de seguro, a sua responsabilidade civil emergente das respectivas actividades profissionais.

As intervenções foram admitidas, tendo as intervenientes contestado, invocando também a prescrição e por impugnação.

Foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, com a consequente absolvição dos RR do pedido.

A Autora apelou, vindo a Relação ... a proferir a seguinte decisão: “dá-se, em parte, provimento ao recurso e, em consequência, altera-se a matéria de facto pela supra referida forma, declara-se a prescrição dos direitos acima identificados (os subsumíveis à responsabilidade extracontratual) e condena-se a ré C ... Hospital..., a pagar à autora AA a quantia de € 100.000,00 (cem mil euros) a título dos sobreditos danos não patrimoniais e absolve-se a mesma quanto ao mais pedido.

Do acórdão, interpuseram recurso de revista a Ré C ... Hospital..., a Generali Seguros SA, denominação actual da interveniente Seguradoras Unidas SA, e a Autora, esta subordinadamente.

A Recorrente C ... Hospital... conclui como segue as suas alegações: 1. Salvo o devido e excelso respeito, o douto Acórdão do Tribunal da Relação ... em revista não fez boa aplicação da Justiça.

  1. Porque, a par de erros notórios de julgamento que conduziram a uma errada aplicação do Direito à matéria de facto assente, enferma do vício de nulidade, quer por não especificar os fundamentos de facto em que se baseia (por referência aos concretos pontos da matéria assente), quer por contradição entre a decisão da matéria de facto e a aplicação do Direito.

  2. O que confluiu numa decisão nula, injusta e inaceitável.

  3. Contudo, não pode a Recorrente aceitar ser responsabilizada por algo que não lhe é imputável nem a si diretamente, nem ao Réu médico ao seu serviço, mais concretamente o acidente iatrogénico ocorrido durante a cirurgia de colecistectomia realizada, em 11/07/2007, à filha da Autora.

  4. E muito menos pela morte de CC, dois anos depois desse acidente, na sequência de uma cirurgia de anastomose bilio-digestiva realizada por complicações decorrentes do transplante hepático, na qual não teve qualquer intervenção.

  5. Apesar da matéria de facto ser a mesma que levou o Tribunal de primeira instância a julgar pela improcedência da ação e absolvição dos Réus do pedido (acrescida apenas dos dois factos supracitados) e da qualificação jurídica dos factos ser também a mesma, o Tribunal da Relação ... decidiu num sentido totalmente diferente, com uma fundamentação tão surpreendente quanto lacónica (ou lacunar melhor dizendo).

  6. A responsabilidade da Ré C ... Hospital... é configurada como contratual e a responsabilidade do Réu Médico como extracontratual (cujo direito indemnizatório fundado na mesma já se encontra prescrito), o que não merece reparo, sendo enquadrada atuação daquela no âmbito do artigo 800º do CCiv; 8. É incontroversa a existência de um dano (laceração tangencial do ramo direito da veia porta - cfr. ponto 46. dos Factos Provados), mas é muito questionável a verificação dos demais pressupostos da responsabilidade, não só no confronto com a factualidade alegada pela Autora (ou não alegada como era seu ónus), mas também perante a matéria assente (que foi até amplamente escrutinada do Tribunal da Relação no recurso de apelação interposto pela Autora).

  7. O exame da parca fundamentação de facto e de direito do acórdão sobrevista permite constatar que o Tribunal da Relação ... não tomou em devida consideração os princípios estruturantes do direito processual civil: princípio da legalidade, princípio do dispositivo e princípio da auto-responsabilização das partes.

  8. Desde logo desconsiderou liminarmente os factos essenciais que sustentam a pretensão a Autora, o que contrasta com a decisão do Tribunal de primeira instância que os identificou e analisou criteriosamente e com assinalável cuidado.

  9. E, por outro lado, não teve em conta a matéria de facto provada no seu conjunto, selecionando pontualmente factos truncados para basear as suas considerações que assentam em meras presunções legais e judiciais.

  10. ressalta desde logo a dificuldade de perceber a destrinça que o Tribunal a quo faz (se é que quis fazer) entre ilicitude e culpa.

  11. O Tribunal a quo considera que a culpa da Ré C ... Hospital... se presume (cfr. art. 799º do CCiv), mas esquece-se, no entanto, que para esta ser responsável pelos atos do seu auxiliar (Réu Médico) tem de estar demonstrada a responsabilidade deste que, sendo de natureza extracontratual, a culpa não se presume.

  12. Mas, além da culpa, o Tribunal a quo parece ter presumido também a ilicitude.

  13. Sucede que a demonstração da “falta de cumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado que emana da leges artis” não resulta da matéria de facto assente, nem sequer são identificados os concretos pontos dos Factos Provados dos quais possa decorrer tal ilação, além de ser contrariada pela apreciação técnica do Conselho Diretivo do Colégio da Especialidade de Cirurgia Geral no Complemento ao Parecer, emitido em 07/05/2018 (fls. 1148/1150) que concluiu de forma expressa e insofismável: «A hemorragia, em nossa opinião, não se deveu a negligência ou imperícia do cirurgião ou da sua equipa.

    » 16. Esta errada perceção do Tribunal a quo redunda em falta de fundamentação que, nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1 alínea b) do CPC, fere de NULIDADE a decisão neste segmento.

  14. Também não encontra respaldo na matéria de facto assente a conclusão de que: “Por outro lado, não se demonstra, como o atesta a laceração da veia porta, que o 1º réu tenha providenciado, na circunstância, todos os cuidados que a colecistectomia impunha designadamente avaliando todas as condições locais da paciente e promovendo uma cuidadosa intervenção no manuseamento dos instrumentos laparoscópicos pelo que não se mostra ilidida a supra referida presunção de culpa.

    ” 18. Essa ilação materializa-se num facto essencial à procedência da pretensão da Autora que, além de não constar da matéria assente (e ter sido rejeitada a sua inclusão nessa sede pelo Tribunal a quo), não foi sequer alegado pela Autora oportunamente e em sede própria.

  15. Esta ambiguidade de posições do Tribunal a quo que ora desconsidera um facto, ora tira ilações decorrentes desse mesmo facto, evidencia uma flagrante contradição entre os fundamentos e a decisão, geradora de NULIDADE, por força do disposto no artigo 615º, n.º 1 alínea c) do CPC.

  16. A decisão incorre em vários erros de interpretação da matéria de facto assente que contrariam a de facto do próprio Tribunal a quo: o gesto meramente provável de ter provocado a lesão na veia porta passou a ser tomado como certo; desconsidera que a tração excessiva ou intempestiva foi acidental (facto relevante que impõe que se considere a atuação do Réu Médico como involuntária); E desvaloriza o facto assente da existência de aderências peri-vesiculares (que expressa erroneamente como “porventura com aderências”) poderem eventualmente ter contribuído para a produção da lesão acidental; 21. Por último, o facto de ser rara a lesão da veia porta em cirurgias deste tipo, não permite que a sua ocorrência possa evidenciar culpa do Réu Médico por não a ter prevenido.

  17. Não é sério, nem razoável, exigir que um cirurgião tenha a capacidade (ou o dom, melhor dizendo) de antever a ocorrência de um evento raro e, menos ainda, o dever de prevenir ou evitar a ocorrência de fenómenos inesperados ou acidentais – cfr. ponto 45 dos Factos Provados.

  18. Além de ser facto assente que se tratou de um acidente ocorrido surgido de forma inesperada, ficou também demonstrado que o mesmo ocorreu durante a simples (e habitual) manipulação necessária das estruturas para alcançar, tracionar e dissecar a vesícula (gestos técnicos próprios da cirurgia de colecistectomia em curso), - Complemento ao Parecer do Conselho Diretivo do Colégio da Especialidade de Cirurgia Geral, de 19/04/2016 (fls. 786/791): 24. O Tribunal a quo...

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