Acórdão nº 194/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Março de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução17 de Março de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 194/2022

Processo n.º 880/2021

3ª Secção

Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida a A., S.A., foi interposto recurso, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (em seguida, «LTC»), do acórdão proferido por aquele Tribunal, em 14 de julho de 2021, que recusou a aplicação do «art. 54.º n.º 1 da Lei 98/2009, ao permitir que a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa tenha um limite máximo que pode ser inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida», com fundamento na violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição.

2. Em consequência de acidente de trabalho que vitimou B., foi instaurado o competente processo no Juízo do Trabalho de Santarém, no âmbito do qual foi obtido acordo parcial entre as partes, com reconhecimento do evento como acidente de trabalho, do nexo causal entre o acidente, bem como do valor da retribuição transferida para a responsável A., S.A..

Não tendo sido aceite pela Seguradora a incapacidade atribuída no exame singular, foi realizada junta médica, na sequência da qual veio a ser proferida sentença, decidindo «julgar o sinistrado afetado de uma IPP de 0,90, com uma IPATH, desde 4 de outubro de 2019», condenando a seguradora demandada no pagamento: (i) da quantia de € 9.772,12 a título de pensão anual e vitalícia, devida desde 04.10.2019, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, calculados desde aquela data e até integral pagamento; (ii) da quantia de € 5.491,64 a título de subsídio por elevada incapacidade; (iii) da quantia de € 60,00 a título de despesas efetuadas com transportes e alimentação; e (iv) da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa no valor mensal de € 360,00, anualmente atualizável na mesma percentagem em que o for o Indexante dos Apoios Sociais (IAS).

Inconformada quanto ao valor da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, a Seguradora interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Évora.

Por acórdão proferido em 14 de julho de 2021, o Tribunal da Relação de Évora julgou o recuso parcialmente procedente, fixando a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa no valor mensal, em 04 de outubro de 2018, de € 300,00, a pagar 14 vezes ao ano e atualizada desde 01.01.2020 conforme a evolução da retribuição mínima mensal garantida.

3. No segmento que aqui releva, lê-se no acórdão recorrido o seguinte:

«[…]

Do valor da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa

Argumenta a Seguradora que a prestação a que se referem os arts. 53.º e 54.º da LAT – Lei 98/2009, de 4 de setembro – deve ser fixada de modo proporcional ao tempo de assistência diária de que o sinistrado carece.

Estamos de acordo com este raciocínio, porquanto, não estabelecendo a lei um critério de fixação do valor da prestação quanto a assistência diária não é prestado a tempo inteiro, pelo menos deve ser ponderada a maior ou menor necessidade dessa assistência, traduzida no tempo a ela necessário, tendo como referência o período normal de trabalho diário de oito horas.

Esta é a orientação dominante na jurisprudência, expressa, a título meramente exemplificativo, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.05.2013 (Proc. 771/11.9TTVIS.C1.S1), e nos Acórdãos da Relação do Porto de 23.01.2012 (Proc. 340/08.0TTVLG.P1), de 16.06.2014 (Proc. 947/11.9TTPRT.P1) e de 21.02.2018 (Proc. 1419/13.2TTPNF.P1).[1]

Mas haverá a ponderar, também ao contrário do que se entendeu na decisão recorrida, que essa prestação é fixada 14 vezes por ano, pois a função desta prestação é compensar os encargos do sinistrado com a contratação de uma pessoa que lhe preste a assistência de que carece, pessoa essa que tem direito, à semelhança dos demais trabalhadores, ao pagamento dos subsídios de férias e de Natal.

Mas será que o limite máximo de 1,1 IAS fixado no art. 54.º n.º 1 da LAT cumpre o direito à assistência e justa reparação das vítimas de acidente de trabalho, contido no art. 59.º n.º 1 al. f) da Constituição?

Já nos pronunciámos anteriormente sobre esta questão, no nosso Acórdão de 13.02.2020 (Proc. Proc. 328/16.8T8BJA.E1), e não fomos ainda convencidos com argumentação contrária àquela que ali se expressou.

Repetiremos, pois, quanto mais não seja por uma questão de coerência, o raciocínio ali exposto.

Foi o seguinte:

No art. 19.º n.º 1 da anterior Lei de Acidentes de Trabalho (Lei 100/97, de 13 de setembro), estipulava-se que a prestação suplementar para assistência de terceira pessoa tinha um valor mensal “não superior ao montante da remuneração mínima mensal garantida para os trabalhadores do serviço doméstico.” No atual regime, esse limite máximo foi fixado em 1,1 IAS – art. 54.º n.º 1 da Lei 98/2009.

O indexante dos apoios sociais (IAS) foi criado pela Lei 53-B/2006, de 29 de dezembro, como “referencial determinante da fixação, cálculo e atualização dos apoios e outras despesas e das receitas da administração central do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, qualquer que seja a sua natureza, previstos em atos legislativos ou regulamentares” – art. 2.º n.º 1 deste diploma.

Serve, pois, de base ao cálculo das prestações sociais da Segurança Social, mas também é utilizado para o cálculo de receitas do Estado, como deduções no IRS, mínimo de existência – que o art. 70.º n.º 1 do Código do IRS afirma equivaler à disponibilidade de um rendimento líquido de imposto de 1,5 x 14 x IAS – ou ainda de base de incidência das contribuições à Segurança Social.

É também utilizado como base de cálculo da isenção no pagamento de taxas moderadoras no Serviço Nacional de Saúde, concedido a utentes em situação de insuficiência económica, que o art. 6.º n.º 1 do DL 113/2011, de 29 de novembro, considera aqueles que integram “agregado familiar cujo rendimento médio mensal seja igual ou inferior a 1,5 vezes o valor do IAS.”

Importa recordar que o indexante dos apoios sociais (IAS) estava fixado para o ano de 2009 em € 419,22, e que a sua atualização esteve suspensa[6] até 2016; em 2017 foi atualizado para € 421,32, em 2018 para € 428,90, em 2019 para € 435,76 e em 2020 para € 438,81 (no ano de 2021, este valor mantém-se idêntico). Consequentemente, o limite máximo estabelecido no mencionado art. 54.º n.º 1 da Lei 98/2009 manteve-se em € 461,14 entre 2009 e 2016, subiu para € 463,46 em 2017, para € 471,79 em 2018, para € 479,34 em 2019, encontrando-se fixado em € 482,69 para o ano de 2020 (e de 2021).

Por seu turno, a retribuição mínima mensal garantida sofreu outra evolução: em 2009 estava fixada em € 450,00; em 2010 subiu para € 475,00; entre 01.01.2011 e 30.09.2014 manteve-se em € 485,00; entre 01.10.2014 e 31.12.2015 subiu para € 505,00; em 2016 para € 530,00; em 2017 para € 557,00; em 2018 para € 580,00; em 2019 para € 600,00; em 2020 para € 635,00; e em 2021 para € 665,00.

Comparando a evolução do limite máximo estabelecido para a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa com a evolução da retribuição mínima mensal garantida, verifica-se que aquela apenas foi ligeiramente superior no ano de 2009, passando a situar-se em valor inferior logo em 01.01.2010, com a diferença a acentuar-se nos anos seguintes, sendo no ano de 2021 a diferença entre os dois valores já de € 182,31.

Significa isto que um sinistrado – afetado de graves sequelas que o impedem de, por si só, prover à satisfação das suas necessidades básicas diárias, envolvendo os atos relativos a cuidados de higiene pessoal, alimentação e locomoção (art. 53.º n.ºs 2 e 5 da Lei 98/2009) – e a quem é reconhecido, porque dela carece, o direito a uma prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, acaba por receber um valor que, objetivamente, não lhe permite contratar um trabalhador que lhe preste tal assistência.

Para além da indignidade de se atribuir um valor para assistência a terceira pessoa que não permite contratar quem a preste, coloca-se o sinistrado, nestas situações normalmente já gravemente afetado na sua saúde física e psíquica e com muito acentuada perda da sua capacidade de ganho, numa situação de maior desfavor, sendo obrigado a alocar parte de outras indemnizações ou pensões, a que tem direito para outros fins, ao pagamento da retribuição devida ao terceiro que lhe vai prestar a necessária assistência.

Ademais, o valor máximo estabelecido no art. 54.º n.º 1 da Lei 8/2009 mostra-se inferior a patamares que a legislação reconhece, para outros fins, como mínimo de existência ou situação de insuficiência económica, como sucede para fins de IRS ou para isenção de taxas moderadoras no SNS – 1,5 o valor do IAS – colocando assim os sinistrados em acidente de trabalho que necessitam de assistência a terceira pessoa em situação de clara desvantagem económica na contratação de trabalhador que lhes preste tal benefício.

Conclui-se, pois, que o art. 54.º n.º 1 da Lei 98/2009, ao permitir que a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa tenha um limite máximo que pode ser inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida, assim colocando o sinistrado em acidente de trabalho em situação de desvantagem económica e impedindo-o de beneficiar dessa assistência, é inconstitucional, por violação do direito à assistência e justa reparação das vítimas de acidente de trabalho, estatuído no art. 59.º n.º 1 al. f) da Constituição.

Recusando-se, pois, a aplicação da mencionada norma, com fundamento em inconstitucionalidade, tomando como base de cálculo o valor da retribuição mínima mensal garantida à data da alta – tal como era a solução do art. 19.º n.º 1 da Lei 100/97 – e ponderando, ainda, que a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa deve ser...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT