Acórdão nº 225/16.7T8FAR.E2.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 27 de Janeiro de 2022

Magistrado ResponsávelMARIA DA GRAÇA TRIGO
Data da Resolução27 de Janeiro de 2022
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1. AA e BB intentaram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, pedindo que: a) Os AA. sejam declarados donos e legítimos proprietários de um prédio urbano, sito no Núcleo do Farol Nascente da Ilha da ..., da freguesia ..., concelho ..., com a área total não inferior a 140,40m2, a determinar com maior precisão nos autos, composto por: i) edifício térreo com a área de implantação mínima de 63,92m2, sendo composto por alpendre frontal, zona de estar, 3 quartos, casa de banho, cozinha e duas arrecadações, área de duche e BBQ e respetivo subsolo e espaço aéreo; ii) área descoberta com a área mínima de 76,48m2, composta por alegrete frontal, área pavimentada frontal e lateral, área arenosa (jardim) e pátio traseiro e respetivo subsolo e espaço aéreo; iii) situado no arruamento denominado Rua ... e com o número de porta ..., confrontando a norte com CC, a sul com DD, a nascente com passagem denominada Rua ... e a poente com passagem denominada Rua ..., b) Seja ordenada a consequente inscrição do prédio a favor dos AA. na Conservatória do Registo Predial ..., condenando-se o Estado Português a reconhecer e a respeitar na sua plenitude o direito de propriedade sobre o imóvel identificado em a).

Alegaram, em síntese, que, no ano de 1976, ocuparam uma parcela de terreno no referido Núcleo do Farol Nascente da Ilha da ... e nela iniciaram a construção de um edifício, concluída em Agosto de 1977, exercendo ininterruptamente a sua posse, através de actos concretos que indicam, à vista de todos e sem oposição, com conhecimento das autoridades e a convicção de que não pertencia a ninguém e de que actuavam como proprietários, sendo reputados como tal.

Mais alegam que a Ilha da ... é uma formação natural de terra, rodeada de água, uma ilha no sentido próprio, não se subsumindo ao conceito de leito, não pertencendo ao domínio público do Estado, encontrando-se os AA. impedidos de dar início ao processo administrativo de delimitação desse domínio por inércia do Estado Português.

A Sociedade Polis Litoral Ria Formosa - Sociedade para a Requalificação e Valorização da Ria Formosa, S.A. veio deduzir incidente de intervenção acessória como assistente do R., intervenção que foi admitida, apresentando contestação na qual, em suma, impugna na generalidade os factos alegados, concluindo pela falta de condições de procedência da acção, por se tratar de terreno pertence ao domínio público do Estado e insusceptível de aquisição por usucapião, sendo os AA. meros detentores que se aproveitaram da tolerância do titular do direito, não existindo licenciamento da construção realizada, impossibilidade legal de desanexação do prédio e oposição do Estado interruptiva do prazo estabelecido na lei para a aquisição por usucapião.

O R. Estado Português, representado pelo Ministério Público, contestou, impugnando a generalidade dos factos alegados pelos AA., concluindo pela falta de condições de procedência da acção, em virtude de o terreno integrar o domínio público do Estado e ser insusceptível de aquisição por usucapião, não existindo licenciamento das construções realizadas.

Por requerimento de 20 de Outubro de 2016 os AA. responderam às contestações.

Em 19 de Setembro de 2018 foi proferido saneador-sentença que, para além de decidir de forma tabelar, da verificação dos pressupostos processuais, julgou a acção improcedente com fundamento na força probatória plena da certidão emitida em 17.03.2016, pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e junta aos autos como doc. 1 com a contestação do R. Estado e como doc. 5 com a contestação da Interveniente.

Os AA. interpuseram recurso daquela decisão para o Tribunal da Relação .... Por acórdão de 17 de Janeiro de 2019, considerando que o conteúdo da certidão da APA não reveste força probatória plena, revogou-se a decisão recorrida, determinando-se a sua substituição por outra que identificasse o objecto do litígio e enunciasse os temas da prova, seguindo os autos para a fase de julgamento.

Baixados os autos à 1.ª instância foi realizada nova audiência prévia no âmbito da qual foi proferido despacho saneador tabelar.

Em face do falecimento da A. foram habilitados como seus herdeiros o A. BB e EE.

Realizou-se audiência final, tendo sido proferida, em 13 de Fevereiro de 2020, sentença que, com base na prova de que a morfologia da parcela em causa integra o domínio público marítimo tal como definido pelo art. 3.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, julgou a acção improcedente e absolveu o R. do pedido.

Inconformados, os AA. apelaram, pedindo a alteração da decisão de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 14 de Janeiro de 2021 foi rejeitada a impugnação da matéria de facto e confirmada a decisão de direito.

  1. Vêm os AA. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões: «A) O douto acórdão recorrido trata indevidamente a invocação da nulidade da sentença contida na conclusão B) da apelação como uma nulidade processual B) Na conclusão B) que resume os números 1 a 9 da alegação que produziram, outro não pode ser o entendimento de que o fundamento da impugnação dos recorrentes se dirige à nulidade da decisão recorrida por violação do princípio do contraditório (art.º 3.º, n.º 3) em consequência da consideração pelo Tribunal de um meio de prova autónomo, não examinado anteriormente, com o qual veio a formar a sua convicção sobre uma questão fundamental a decidir, e que teve influência na ponderação realizada pelo Tribunal dos meios de prova sujeitos a contraditório e nessa sequência concluem pedindo a declaração de nulidade da decisão recorrida e não a correção da tramitação processual indevida.

    1. A chamada à colação da disposição do 195.º n.º 1, nada mais teve do que apelar à ideia e ao princípio de que fora dos casos expressamente previstos na lei, a prática de um ato indevido (que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva), só produzem nulidade quando (para além dos casos em que a lei o declare) a irregularidade cometida tenha influído no exame ou na decisão da causa, como defendem ter sido o caso.

    2. Atento o princípio estabelecido no art.º 5.º, n.º 3 e o facto de os recorrentes pedirem inequivocamente a nulidade da sentença e não a nulidade de um ato e a reposição da tramitação processual, a resposta não pode deixar de ser a de que os recorrentes, implicitamente, invocaram a nulidade da sentença recorrida (art.º 615.º, n.º 4).

    3. Em face do exposto, ao não enquadrar esta questão no âmbito na nulidade da sentença o douto acórdão recorrido violou o disposto no art.º 615.º, n.ºs 1 al. d) e 4 porquanto não analisou a questão colocada sob o prisma da nulidade do acórdão, mas antes sob o de uma mera irregularidade/nulidade processual.

    4. Mais do que um mero argumento, a sentença recorrida utilizou a referência aos elementos retirados do documento indicado no n.º 2 da alegação e da conclusão B) da apelação que aqui se dão por reproduzidas como um verdadeiro fundamento, com efetiva relevância e que foi tomado em consideração na decisão relativa a um aspeto concreto da decisão de facto, fundamento esse que nunca antes da sentença foi dado a conhecer aos recorrentes, consubstanciando assim uma decisão surpresa, violadora do principio do contraditório (art.º 3.º, n.º 3).

    5. Ao contrário do que afirma o douto acórdão, o fundamento novo aqui em crise foi decisivo para a decisão da primeira instância, pois se atentarmos no discurso lógico da sentença, temos que, o Tribunal, após referir outros elementos probatórios (certidão da APA e depoimentos de testemunhas) sentiu ainda necessidade de se apoiar naquele fundamento novo para considerar, ainda em caso de dúvida, que o facto em causa corresponde a realidade consolidada e conhecida (Aliás, trata-se de uma realidade consolidada e conhecida… refere a douta sentença). Ou seja, a douta sentença acabou por confirmar a prova das outras fontes com o elemento novo que introduziu, acabando este por ser, no fundo, o elemento probatório decisivo para a decisão que neste aspeto concreto tomou.

    6. Por ter decidido esta questão como o fez, o douto acórdão recorrido violou claramente o disposto nos art.ºs 3.º, n.º 3 e 5.º, n.ºs 1 e 2.

    7. A sentença recorrida funda-se inequivocamente na valoração do caso julgado que alegadamente se terá formado relativamente à presente causa com o trânsito em julgado dos Acórdãos do TRE proferidos nos processos n.ºs 1003/16.9T8FAR, 761/16.5T8FAR, 2620/16.2T8FAR e 1146/16.9T8FAR como o demonstra o excerto da fundamentação transcrita em 22.8. das presentes alegações, mas que na sentença são mais extensas e reforçadoras daquela afirmação. O alegado caso julgado constituiu, pois, um dos fundamentos da concreta decisão de mérito da 1.ª instância, circunstância relativamente à qual os apelantes concluíram ser ilegal, porquanto, violadora do princípio do contraditório (art.º 3.º, n.º 3, 410.º e 415.º) e o disposto no art.º 615.º, n.ºs 1 al. d) e 4.

    8. O acórdão recorrido considera que a invocação da autoridade do caso julgado se tratou apenas de um considerando final, que não integrou a ratio decidendi da sentença, considerou não existir qualquer ilegalidade da sentença nesta questão, que a existir seria apenas uma nulidade processual.

    9. A violação do princípio do contraditório demonstrado na sentença corresponde necessariamente ao vício do art.º 615.º, n.ºs 1 al. d) e 4, conducente à nulidade da decisão e a introdução da questão da autoridade do caso julgado em sede de alegações não constitui forma de introduzir factos e/ou fundamentos numa causa, o que só pode ocorrer reabrindo a instrução e permitindo a discussão (art.ºs 5.º, n.ºs 1 e 2, 410.º e 415.º).

    10. A sentença encontra-se viciada por violação do disposto nos art.ºs 3.º n.º 3, 5.º, n.ºs 1 e 2, 410.º e 415.º, e é nula nos termos do art.º 615.º, n.ºs 1 al. d) e 4...

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