Acórdão nº 01590/17.4BEPRT de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 16 de Dezembro de 2021

Magistrado ResponsávelFRANCISCO ROTHES
Data da Resolução16 de Dezembro de 2021
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Apreciação preliminar da admissibilidade do recurso excepcional de revista interposto no processo n.º 1590/17.4BEPRT 1. RELATÓRIO 1.1 O acima identificado Recorrente, inconformado com o acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul em 11 de Julho de 2019 (Disponível em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/-/97b96b6b6cdfb88a80258435004e2ec7.

) – que, negando provimento ao recurso por ele interposto, manteve a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou improcedente a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias que deduziu contra a AT –, interpôs recurso de revista excepcional, nos termos do art. 150.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA).

1.2 O Recorrente apresentou as alegações de recurso, com conclusões do seguinte teor: «1.º O presente recurso de revista não só é de importância fundamental para uma melhor aplicação do direito, como igualmente versa sobre uma questão de grande relevância jurídica e social.

  1. Na intimação que deu origem aos presentes autos, o aqui Recorrente suscitou uma questão jurídico-processual de primordial importância: a admissibilidade ou não da utilização de mensagens de correio electrónico, obtidos como meios de prova em processo-crime, para instruir procedimentos tributários de liquidação de imposto e consequente, em caso de inadmissibilidade da utilização desses meios de prova, violação do direito à inviolabilidade das comunicações e do direito à reserva da vida privada.

  2. Considerando a frequência com que a Autoridade Tributária se socorre de elementos obtidos no processo-crime, designadamente mensagens de correio electrónico, para efectuar as liquidações de imposto e às diferentes posições jurisprudenciais assumidas relativamente às mesmas questões essenciais de direito, dúvidas inexistem quanto à necessidade da admissão do recurso para uma melhor aplicação do direito.

  3. Pelo que a presente revista deverá ser admitida ao abrigo dos n.ºs 1 e 2 do artigo 150.º do CPTA.

  4. Considerando a decisão recorrida e a posição do Recorrente, surgem as seguintes questões de grande relevância jurídica e social e de controvertido entendimento jurisprudencial, cujo esclarecimento contribuirá, certamente, para uma melhor aplicação do direito: i) O direito à inviolabilidade das comunicações e da reserva da vida privada, previstos no n.º 4 do artigo 34.º e n.º 1 do artigo 26.º da CRP, abrange ou não as comunicações electrónicas enviadas e recebidas no âmbito de uma caixa de correio electrónico profissional; ii) o teor das comunicações electrónicas é ou não irrelevante para efeitos da consumação da violação do direito à inviolabilidade das comunicações e da reserva da vida privada, previstos no n.º 4 do artigo 34.º e n.º 1 do artigo 26.º da CRP; iii) A compressão do direito à inviolabilidade das comunicações electrónicas admitidas no processo penal é ou não admitida fora dele.

  5. Quanto à questão identificada em i), cumpre referir que o argumento invocado pelo Tribunal recorrido para afastar uma eventual violação da reserva da vida privada e do direito à inviolabilidade das comunicações, foi o seguinte: “analisando a sentença recorrida verificamos que na mesma o Mmo. Juiz, procedeu à análise das normas de protecção à reserva da vida privada de acordo com a natureza do caso e à condição das pessoas (singulares e colectivas), para depois concluir que, in casu, a informação utilizada pela AT não corresponde a contas de correio electrónico pessoal pertencentes a cada um dos colaboradores da sociedade «B……… Lda.», mas sim, de informação electrónica comercial e profissional recolhida de servidores em rede ao serviço da sociedade «B……… Lda.», com respectiva identificação do seu utilizador”.

  6. Sendo certo que se trata do endereço electrónico do Recorrente, enquanto profissional de uma sociedade, porém os direitos de personalidade e de reserva da vida privada dos funcionários de uma sociedade comercial e os interesses dessa mesma sociedade comercial não são estanques entre si.

  7. Com efeito, e como é reconhecido quer na doutrina, quer na jurisprudência, existe uma dimensão de natureza pessoal, mesmo na esfera profissional de actuação de cada um.

  8. Daqui decorre que o conteúdo dos e-mails recebidos ou enviados pelo Recorrente, por qualquer caixa de correio electrónico que utilize, estará sempre protegido pelo direito à reserva da vida privada e pelo direito à inviolabilidade das comunicações, constitucionalmente previstos.

  9. Relativamente à questão enunciada em ii) supra, cumpre referir que aderindo o Tribunal ad quo à tese preconizada pela Autoridade Tributária e pelo Tribunal Tributário de Lisboa, o acórdão recorrido refere o seguinte: “Com efeito na sentença em exame vêm apreciados e diferenciados os direitos de personalidade e a actuação do indivíduo no âmbito da gestão empresarial concluindo-se que a informação constante dos e-mails em causa tem carácter profissional, o que, desde logo a afasta da protecção jurídica contida no artigo 34.º da CRP”.

  10. O exercício intelectual que o Tribunal recorrido faz é não censurar a violação da correspondência electrónica do Recorrente – ou seja, ler o teor das mensagens electrónicas – para depois sustentar, com o resultado dessa violação, que não há violação das comunicações do Recorrente.

  11. O acórdão recorrido refugia-se no argumento de que, depois de ler as mensagens de correio electrónico em causa, conclui não existir qualquer conteúdo pessoal ou privado nas mesmas e, por isso, não goza da protecção conferida pelos artigos 34.º, n.º 4 e 26.º, n.º 1 da CRP – esta interpretação das acabadas de citar normas constitucionais é inconstitucional, o que aqui expressamente de invoca para todos os legais e demais efeitos.

  12. Não se pode ler primeiro para depois se dizer que o acesso é legítimo porque, depois de lidas essas mensagens, se conclui que nada têm de pessoal. A partir desse instante, a intercepção nas comunicações deixaria de ser proibida desde que apenas fosse utilizado o conteúdo que não correspondesse a elementos da vida pessoal dos visados.

  13. No presente caso, a violação inicia-se e consuma-se com o acesso aos mesmos fora do procedimento criminal e não depende do conteúdo, em concreto, das mensagens de correio electrónico em causa, situação que, ao ser esclarecida por este Venerando Tribunal irá contribuir, certamente, para uma melhor aplicação do direito.

  14. Relativamente à questão iii) referida supra, do n.º 4 do artigo 34.º da CRP decorre o direito fundamental à inviolabilidade de correspondência e outros meios de comunicação privada, enquanto concretização do direito à reserva da vida privada, constante do artigo 26.º, n.º 1 da CRP.

  15. A ingerência na correspondência é sempre uma violação do direito à reserva da vida privada dos correspondentes, sejam emissores ou destinatários e, dada a importância dos bens jurídicos tutelado, a CRP só permite a sua compressão em sede de processo criminal que, por sua vez, a lei penal só admite dentro de limites estritos.

  16. A compressão desses direitos só é admissível quando está em causa um crime entre os taxativamente previstos na lei, neste caso no n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro, e sem prejuízo dos demais requisitos ali consignados.

  17. Os procedimentos tributários em causa não cumprem quaisquer daqueles requisitos e nem o poderiam cumprir, pois a finalidade do processo penal, os fins que com aquele se visa alcançar, não é sequer comparável com o único e específico objectivo de arrecadação de receita fiscal decorrente da liquidação de impostos.

  18. A utilização, em procedimentos de natureza administrativa, como são os procedimentos tributários, de transcrições de correio electrónico obtidas por via de apreensão em processo-crime, viola a Constituição da República Portuguesa e o direito pessoal fundamental que esta confere ao Recorrente da reserva da intimidade da sua vida privada, bem como a garantia, também fundamental, da inviolabilidade dos meios de comunicação fora dos casos taxativamente previstos na lei.

  19. O facto de terem sido obtidos no âmbito de um processo-crime não legitima a sua utilização fora do processo-crime, e muito menos no âmbito de procedimentos tributários.

  20. Qualquer norma interpretada no sentido de atribuir esta faculdade à Autoridade Tributária será sempre inconstitucional, por consubstanciar uma compressão injustificada e ilícita de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, garantidos pelos artigos 34.º, n.º 4 e 26.º, n.º 1 da CRP, o que aqui expressamente se invoca para todos os legais e demais efeitos.

  21. Esta questão foi já objecto de tratamento jurisprudencial pelo Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0878/08, de 30 de Outubro de 2008, disponível em www.dgsi.pt, proferido igualmente no âmbito de um processo de intimação para a protecção direitos, liberdades e garantias, cuja situação fáctica é de todo semelhante à que nos ocupa no presente caso.

  22. Com efeito, o referido Acórdão debruça-se sobre a validade da utilização de transcrições de escutas telefónicas obtidas no âmbito processo-crime num procedimento disciplinar, sendo que os seus fundamentos são totalmente aplicáveis à situação do Recorrente.

  23. Tal como nas escutas telefónicas, a lei só permite a compressão do direito à inviolabilidade das comunicações e direito à reserva da vida privada, quando esteja em causa o apuramento de factos criminosos, e nem sequer todos e quaisquer crimes, mas apenas aqueles que a lei taxativamente prevê, pelo que toda e qualquer utilização fora do processo crime é proibida.

  24. Verifica-se, por um lado, uma dualidade de teses face à mesma questão jurídica fundamental – consubstanciada no acórdão acabado de citar e nos demais citados nas presentes alegações, que aqui se dão por reproduzidos – e, por outro, uma notória insuficiência de fundamentação quanto à sustentação da tese constante do Acórdão recorrido, motivos pelos quais deverá este Venerando Tribunal esclarecer qual a...

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