Acórdão nº 796/20.3BELSB-S1 de Tribunal Central Administrativo Sul, 18 de Novembro de 2021
Magistrado Responsável | PAULA FERREINHA LOUREIRO |
Data da Resolução | 18 de Novembro de 2021 |
Emissor | Tribunal Central Administrativo Sul |
Acordam, em Conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul: I. RELATÓRIO O Ministério Público (Recorrente) vem interpor recurso jurisdicional da decisão proferido pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa em 22/02/2021, pela qual foi indeferida a arguição de nulidade da citação invocada pelo Recorrente na ação administrativa proposta por M...
contra o Chefe do Estado Maior da Força Aérea e contra o Estado Português (Recorridos).
Nesta ação administrativa, a Recorrida particular veio peticionar a condenação dos restantes Recorridos a pagarem-lhe uma indemnização na quantia de 51.146,03 Euros, acrescida do montante de 54.416,57 Euros a título de juros vencidos, decorrentes de dívidas à Recorrida respeitantes a suplementos remuneratórios.
Tendo a citação do Estado Português sido dirigida, em 13/05/2020, ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, veio o Recorrente Ministério Público arguir a nulidade por falta de citação, sustentando tal na pretensão de recusa de aplicação do disposto nos art.ºs 11.º, n.º 1 e 25.º, n.º 4 do CPTA ao caso posto em virtude da inconstitucionalidade material destas normas por violação do prescrito nos art.ºs 219.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
Em 22/02/2021, foi proferida decisão respeitante à invocada nulidade por falta de citação do Ministério Público, decisão essa que indeferiu a arguida nulidade.
Inconformado com o assim julgado, o Recorrente apela a este Tribunal Central Administrativo, imputando erro de julgamento à decisão recorrida e, consequentemente, clamando, pela revogação da mesma e inerente procedência do pedido de declaração da nulidade da citação.
As alegações do recurso que apresenta culminam com as seguintes conclusões: “CONCLUSÕES 1 - A presente acção declarativa de condenação foi intentada por Maria José Pinto Ferreira de Amorim, contra o Exmo. Sr. Chefe do Estado Maior da Força Aérea, e Estado Português/Ministério Público, tendo, nos termos do disposto no artigo 25º, nº 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), a citação do Réu Estado Português sido dirigida unicamente para o Centro de Competências Jurídicas do Estado.
2 – No âmbito destes autos o Ministério Público não foi citado, mas apenas notificado da pendência dos mesmos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 85º, nº 1 do CPTA.
3 - A Lei nº 118/2019, de 17 de Setembro, que entrou em vigor no passado dia 16.11.2019, introduziu no CPTA a nova norma acima referida, que estabelece que quando seja demandado o Estado já não é citado o Ministério Público, em representação deste, como até agora sempre esteve consagrado, mas sim o Centro de Competências Jurídicas do Estado, designado por JurisAPP, que é um serviço central da administração directa do Estado, integrado na Presidência do Conselho de Ministros.
4 - Sob a sua aparência puramente procedimental e regulamentar — o que bastaria para a considerar deslocada num diploma sobre processo administrativo, trata-se antes de uma norma revolucionária, sobretudo quando conjugada com o disposto na parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, na redacção igualmente conferida pela mesma Lei nº 118/2019.
5 - Com efeito, onde na anterior redacção desta norma se previa sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público passou, com a referida alteração, a prever-se sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público.
6 - O que veio transformar numa excepção o que era uma regra, sendo que não se vislumbra qualquer possibilidade de o Ministério Público ser eliminado, ao menos potencialmente, da representação do Estado no domínio do contencioso administrativo sem que daí resulte uma flagrante ofensa da primeira proposição do nº 1 do artigo 219º da CRP.
7 – Tal alteração esvazia o essencial da função do Ministério Público nos tribunais administrativos, enquanto representante do Estado-Administração, mostrando-se desconforme ao parâmetro normativo consagrado na primeira proposição do nº 1 do artigo 219º da CRP.
8 - A norma do artigo 219º, nº 1 da CRP configura um imperativo constitucional, a observar pelo legislador ordinário, que contém a regra da atribuição de competência ao Ministério Público para representar o Estado.
9 - Em 1 de Janeiro de 2020 entrou em vigor o novo Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 68/2019, de 27 de Agosto — i.e, menos de um mês antes da publicação da Lei nº 118/2019, de 17 de Setembro, que contém as normas cuja inconstitucionalidade se invoca.
10 – Tal novo Estatuto (EMP) continuou a confiar a representação do Estado ao Ministério Público (artigo 4º, nº 1, al. b)) e a prever a existência de um departamento central de contencioso do Estado e interesses colectivos e difusos da Procuradoria-Geral da República, o qual passará a intervir também em matéria tributária e não apenas na área cível e administrativa (artigo 61º, nº 1 e 2).
11 - A Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro, que procedeu à 12ª alteração no ETAF/2002, — i.e., menos de uma semana antes da edição da Lei nº 118/2019, a que pertencem as normas aqui questionadas —, não introduziu qualquer alteração ao disposto no artigo 51º.
12 - A representação do Estado em juízo foi sempre confiada, a nível constitucional e da lei ordinária, ao Ministério Público (com a única excepção da hipótese residual contemplada na parte final do nº 1 do artigo 24º do vigente CPC), estando essa representação, nas áreas cível, administrativa e até tributária, inequivocamente prevista em diplomas recentíssimos e de uma evidente centralidade na conformação dos nossos sistemas jurídico e judiciário.
13 - A norma do nº 1 do artigo 219º da CRP, que confia ao Ministério Público a representação judiciária do Estado-Administração (central), possui natureza auto-exequível, incondicionada, sem necessidade de densificação pela legislação ordinária, configurando-se como uma intencional e estrutural opção constitucional, em consonância com a tradição jurídica do país.
14 - Tanto o legislador constituinte originário como o derivado ponderaram os atributos do Ministério Público como magistratura dotada de autonomia (artigo 219º, nº 2 da CRP), com a sua actuação sempre vinculada a critérios de legalidade e objectividade (artigo 3º, nº 2 do EMP) e, em razão desses atributos, confiaram-lhe a tarefa representativa do Estado em juízo, justamente a título de representação e não como advogado, patrono ou mandatário judicial.
15 – Pelo que a representação do Estado nos tribunais por parte do Ministério Público é configurável como um verdadeiro princípio judiciário constitucional, com alcance material.
16 - Porém, em flagrante contradição sistémica e teleológica, a parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, na redacção conferida pelo artigo 6º da Lei nº 118/2019, vem reduzir a representação do Estado por parte do Ministério Público a uma pura eventualidade.
17 - A nova redacção limita-se a acrescentar o substantivo possibilidade, mas desse modo transforma a regra da representação do Estado pelo Ministério Público em excepção, não sendo inócuo que o conjunto de alterações legislativas no âmbito da jurisdição administrativa que ocorreram em 2019, de que faz parte aquele preceito, não tenha introduzido, paralelamente, o referido substantivo no artigo 51º do ETAF.
18 - Do confronto da fórmula usada no CPTA (parte final do nº 1 do artigo 11º - sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público‖) com a acolhida no CPC (artigo 24º, nº 1 - O Estado é representado pelo Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio…), resulta segura a conclusão de que, no âmbito do primeiro diploma, a representação do Estado por parte do Ministério Público tem carácter eventual e subsidiário, ao passo que no segundo constitui a regra, só passível de afastamento por lei concreta.
19 - A nova redacção do artigo 11º, nº 1, in fine, do CPTA torna meramente eventual e subsidiária a intervenção do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo pelo que, mesmo numa apreciação isolada, dificilmente a norma se compatibilizaria com o princípio judiciário constitucional da representação do Estado nos tribunais através do Ministério Público, imposta pelo primeiro segmento do nº 1 do artigo 219º da CRP.
20 - A desarmonia dessa norma com a CRP torna-se ainda mais clara quando se proceda à sua interpretação conjugadamente com a do nº 4 do artigo 25º, também aditado pela referida Lei nº 118/20, que estabelece que quando seja demandado o Estado a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado.
21 - No que se reporta ao Estado, a norma destrói a mais elementar lógica de constituição da instância processual administrativa, visto que, por um lado, o réu Estado-Administração é unicamente citado numa entidade que não possui poderes legais para a sua representação em juízo e, por outro, não é citado através do órgão que possui tais poderes, por força de disposição constitucional (e também legal).
22 - Por outro lado, nos termos do artigo 223º, nº 1 do CPC, subsidiariamente aplicável ao contencioso administrativo, a citação das pessoas colectivas — como é o caso indiscutível do Estado-Administração — realiza-se na pessoa dos seus legais representantes.
23 - O único representante do Estado em juízo, pelo menos enquanto o Estado não manifestar a vontade de pretender ser patrocinado de outro modo (pressuposta, por necessidade de raciocínio, a validade dessa declaração), é o seu representante natural, o Ministério Público, em quem deve ser realizada a citação.
24 - O mecanismo implementado pelo nº 4 do artigo 25º, conjugado com a parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, ambos na redacção da Lei nº 118/2019, conduz em linha recta, de forma necessária, a uma presença subsidiária e minimalista do Ministério Público como representante do Estado no processo...
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