Acórdão nº 857/21 de Tribunal Constitucional (Port, 09 de Novembro de 2021

Magistrado ResponsávelCons. José João Abrantes
Data da Resolução09 de Novembro de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 857/2021

Processo n.º 8/2021

1ª Secção

Relator: Conselheiro José João Abrantes

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. A., B. e C. intentaram, ação de reivindicação, sob a forma de processo comum ordinário, que correu termos no Juízo Central Cível e Criminal de Beja - Juiz 3, com o n.º 606/09.2T2STC, contra D., pedindo que fossem declarados legítimos proprietários do prédio identificado nos autos e condenados os Réus a reconhecer-lhes o direito de propriedade plena sobre esse imóvel e a restituir-lhes o mesmo livre de pessoas, bens e animais, com fundamento na aquisição desse direito, por via sucessória e subsequente partilha (transmissão mortis causa).

1.1.1. Mais tarde, os Autores ampliaram o pedido e a causa de pedir, passando a contemplar, em alternativa ao primitivamente peticionado, o reconhecimento da aquisição do direito de propriedade do prédio identificado nos autos, em consequência da qualidade de foreiros adquirida originariamente e por usucapião pelos seus pais, por força do disposto no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de março.

Para o efeito, invocaram dever ser-lhes reconhecida a aquisição por usucapião da enfiteuse sobre o prédio em contenda pelos ascendentes e subsequente convolação desta em propriedade plena, seguindo-se os trâmites legais relativos à extinção da enfiteuse e à consequente colocação dos Autores na situação de plenos proprietários, por concentração na respetiva titularidade dos domínios direto e útil, nos termos do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de março (com as alterações introduzidas pela Lei n.º 22/87, de 24 junho, e pela Lei n.º 108/97, de 16 de setembro).

1.1.2. Os Réus contestaram e deduziram reconvenção a peticionar, na eventual procedência da ação, a condenação dos Autores a reconhecer que o prédio reivindicado por estes é pertença do 1.º Réu adquirido por usucapião.

1.1.3. Estabilizada a instância, na sequência da suscitação de diversos incidentes de habilitação de herdeiros e de intervenção principal provocada, passaram a prosseguir os termos da ação na posição de Autores, C., B., E., F., G. e H., ora Recorrentes, e de Réus, I., J., K., L. e M., e outros , ora Recorridos.

1.1.4. Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferida sentença, ao abrigo do artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do CPC, em 14 de outubro de 2020 (cfr. fls. 399 a 409), a julgar a ação totalmente improcedente e, em consequência, a absolver os Réus dos pedidos, com fundamento na desaplicação, por materialmente inconstitucionais, das seguintes normas:

O regime normativo do n.º 1 do artigo 1.º, conjugado com os n.ºs 1 e 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de março, por violação do artigo 62.º, n.º 2 e do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que ali se determina a extinção da propriedade, onerada por enfiteuse, da esfera jurídica do titular do domínio direto, sem que se preveja, em termos gerais, uma justa indemnização; e

O regime normativo dos n.ºs 5 e 6 do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de março (na redação conferira pela Lei n.º 22/87, de 24 junho e pela Lei n.º 108/97, de 16 de setembro), por violação do princípio do Estado de Direito, na vertente da proteção da confiança, acolhido no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, ao estabelecer, decorridos mais de 10 e 20 anos sobre a abolição da enfiteuse, uma modalidade especial de aquisição de enfiteuse por usucapião com efeitos retroativos.

1.2. Dessa sentença o Ministério Público interpôs recurso obrigatório para este Tribunal, ao abrigo dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 71.º, n.º 1, 72.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, 75.º, n.º 1, e 75.º-A, n.º 1, todos da LTC (cfr. fls. 410 v.).

1.2.1. Os Autores também interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 1, alínea b), da LTC (cfr. fls. 413 e 413 v.).

1.2.2. Admitidos os recursos (cfr. fls. 411 e 415), foram as partes notificadas para alegarem (cfr. fls. 418 e ss.).

1.2.3. Em sede de alegações, o Ministério Público pugnou pela procedência parcial do recurso, remetendo, para o efeito, para os fundamentos esgrimidos no Acórdão n.º 819/2017 desta Secção (cfr. fls. 422 a 454).

1.2.4. Os Autores/Recorrentes alegaram defendo a procedência total do recurso com o consequente juízo de conformidade com a Constituição de todas as normas desaplicadas pelo Tribunal a quo, rematando com as seguintes conclusões:

CONCLUSÕES:

1ª.- O presente recurso vem interposto da, aliás douta, sentença que decidiu desaplicar, por materialmente inconstitucionais:

(i) o regime normativo do nº 1 do artº 1º., conjugado com os nº 1 e 2 do artº 2º do Decreto-Lei nº 195º-A/76, de 16 de março, por violação do artº 62º, nº 2 e do artº 13º, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que ali se determina a extinção da propriedade, onerada por enfiteuse, da esfera jurídica do titular do domínio direto, sem que se preveja, em termos gerais, uma justa indemnização; e

(ii) o regime normativo dos nºs 5 e 6 do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de março (na redação conferida pela Lei nº 22/87, de 24 de junho e pela Lei nº 108/97, de 16 de setembro), por violação do princípio do Estado de Direito, na vertente da proteção da confiança, acolhido no artº 2º da Constituição da República Portuguesa, ao estabelecer, decorridos mais de 10 e 20 anos sobre a abolição da enfiteuse, uma modalidade especial de aquisição de enfiteuse por usucapião com efeitos retroativos; (…)

2ª.- E que, em consequência, julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo os Recorridos dos pedidos dos Recorrentes de serem declarados legítimos proprietários do imóvel descrito nos nºs. 1 e 2 da P.I., de os Recorridos serem condenados a reconhecer o direito de propriedade plena aos Recorrentes, sobre o imóvel em causa, de os Recorridos serem condenados a restituir aos Recorrentes todo o imóvel que ilicitamente ocupam, entregando-o livre de pessoas, bens e animais, sendo condenados nas custas, procuradoria e demais encargos legais e ainda a reconhecer-se que os Recorrentes adquiriram a propriedade do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Odemira, freguesia de S. Luís, sob a ficha nº. 1305/20090915 em consequência da qualidade de “foreiros” adquirida originariamente e por usucapião de seus pais e por força do disposto no artigo 1º do Dec. Lei nº 195-A/76, de 16 de março, de serem canceladas as inscrições registrais relativas àquela descrição concretizadas pela Ap. 7, de 2004/02/09 e pelos averbamentos feitos pelas Ap. 8 de 2004/02/09 e Ap. 9, Ap. 10, Ap. 11, Ap. 12, Ap. 13, Ap. 14, Ap. 15, todas de 2004/06/21.

3ª.- A decisão foi tomada ao arrepio da matéria provada documentalmente que reconhece aos pais dos Recorrentes a qualidade de beneficiários do foro, ou seja de titulares do “domínio útil” do prédio, e que esta qualidade perdurou por mais de 15 anos, até à data da entrada em vigor do Dec. Lei nº. 195-A/76, de 16 de março.

4ª.- Em 1950 os pais dos Recorrentes inscreveram na matriz predial rústica da freguesia de S. Luis, concelho de Odemira, sob o artº. 38, Secção-T, o prédio sub judice, tendo pago sempre os impostos daí decorrentes sem oposição de quem quer que fosse.

5ª.- Adquiriram a qualidade de enfiteutas por usucapião (artºs. 1287º e 1296ºdo Códº Civil), porquanto durante mais de 15 anos possuíram o prédio convictos de serem os seus foreiros (animus) e possuíram-no materialmente (corpus).

6ª.- Aquando da entrada em vigor do Dec. Lei nº 195-A/76, de 16 de março, os pais dos Recorrentes eram os titulares do domínio útil do prédio (porque enfiteutas) e, por isso e por força da abolição da enfiteuse, passaram a ser os seus proprietários.

7ª.- O Tribunal Constitucional, no seu acórdão nº 819/2017, de 06 de dezembro de 2017, em que foi Relator o Exmo. Conselheiro José António Teles Pereira (disponível in “www.dgsi.pt), decidiu: “.... não julgar inconstitucionais as normas contidas nos n.ºs 5 e 6 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 195-A/76, de 16 de março, interpretados no sentido de permitirem o reconhecimento de uma relação de enfiteuse constituída por usucapião, tendo em vista a sua extinção, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo...”.

8ª.- A relação sub judice é do domínio exclusivamente particular, sendo certo que em consonância com o disposto no nº. 1 do artº. 3º do Dec. Lei nº 195-A/76, os Recorridos poderiam ter dirigido um pedido de indemnização ao tribunal da comarca da situação do prédio, caso preenchessem os requisitos para tal.

9ª.- Os pais dos Recorrentes, então foreiros ou enfiteutas foram desde 1950 os titulares inscritos fiscalmente do prédio em causa, tendo sido eles que, desde então, pagaram as denominadas Contribuições Prediais, e, atualmente os Recorrentes que pagam os respetivos IMIs facto que, em articulado algum dos Recorridos, é posto em causa.

10ª.- Os Recorridos não conseguiriam apresentar qualquer certidão comprovativa do pagamento dos impostos e contribuições devidos ao Estado nos últimos cinco anos, com referencia ao disposto no artº 3º do Decº Lei nº. 195-A/96 de 16 de março.

11ª.- Os pais dos Recorrentes (foreiros ou enfiteutas), pagaram sempre a quem de direito o foro devido, as quantias e cereais que a esse título estavam ajustados.

12ª.- Os pais dos Foreiros ou Enfiteutas (ascendentes dos Recorrentes) habitaram sempre na parte urbana da propriedade em causa, nem tal ou qualquer outra posse foi posta em causa pelos Recorridos.

13ª.- Quaisquer dos ascendentes dos Recorrentes, quer eles próprios, mas mais concretamente o já falecido A. (porque então residente perto da propriedade), sempre fizeram benfeitorias e trataram das terras como suas.

14ª.- O reconhecimento dos direitos peticionados pelos...

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