Acórdão nº 829/21 de Tribunal Constitucional (Port, 27 de Outubro de 2021

Data27 Outubro 2021
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 829/2021

Processo n.º 582/21

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. S.A. e recorrida B., S.A., a primeira veio interpor recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça no dia 4 de maio de 2021, que indeferiu a reclamação por si deduzida contra a decisão proferida pelo mesmo Tribunal no dia 24 de março de 2021, que, por considerar não verificado o requisito da «identidade da questão fundamental de direito» contido no n.º 1 do artigo 688.º do Código de Processo Civil (CPC), decidiu não admitir o recurso de uniformização de jurisprudência interposto pela ora recorrente.

2. A recorrente veio então interpor recurso de constitucionalidade com vista à «apreciação e decisão da questão da inconstitucionalidade material do disposto no segmento do nº 1 do artigo 688º do Código de Processo Civil “em contradição sobre a mesma questão de direito”, quando interpretado no sentido que é necessária a existência de que o núcleo factual seja o mesmo, ou da semelhança factual ou da igualdade substancial da situação de facto entre o acórdão recorrido e o acórdão - fundamento, como requisito para a admissibilidade do recurso aí previsto, por violação dos princípios constitucionais, consagrados nas alíneas c) e d) do artigo 161º, e nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 198º da Constituição da República Portuguesa, que a recorrente suscitou na sua reclamação de 6 de abril de 2021 para a conferência, e que o acórdão recorrido proferido no dia 4 de maio de 2021 decidiu inverificar-se».

3. Pela Decisão Sumária n.º 564/2021, decidiu-se não conhecer o objeto do recurso, com base, essencialmente, na seguinte fundamentação:

«4. No caso em apreço não se acha verificada a condição de que uma eventual pronúncia por parte do Tribunal Constitucional sobre a norma indicada pela recorrente pudesse repercutir-se sobre a decisão recorrida em termos de impor a sua reforma. Esta condição constitui uma decorrência do caráter instrumental dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade conforme concebidos no nosso ordenamento jurídico: embora tais recursos se restrinjam à questão da invalidade da norma (vd. o artigo 280.º, n.º 6, da Constituição), a decisão que no seu âmbito for proferida não pode deixar de ter efeitos sobre a decisão recorrida, sob pena de não apresentar a referida instrumentalidade (cf. e.g. o Acórdão n.º 498/96). Ora, um eventual juízo de inconstitucionalidade só pode repercutir-se na solução a dar a um caso se, para além de haver uma perfeita coincidência entre o enunciado normativo cuja inconstitucionalidade se invoca e aquele que efetivamente foi aplicado pelo tribunal recorrido como ratio dedicendi da sua decisão, esta decisão não tiver assentado numa suficiente fundamentação alternativai.e., quando, tendo embora sido aplicada pelo tribunal recorrido a norma que o recorrente reputa de inconstitucional, esse tribunal tenha concomitantemente aplicado outro(s) enunciado(s) normativo(s) que conduziriam, de modo autónomo e necessário, a uma decisão com o mesmo sentido. De facto, também neste caso o conhecimento do objeto do recurso por parte do Tribunal Constitucional não assumirá qualquer utilidade, por ser insuscetível de conduzir a uma modificação da decisão recorrida. É o que ocorre nos presentes autos.

Com efeito, a interpretação normativa invocada pela recorrente encontra alguma expressão na decisão recorrida, na medida em que nesta se afirma que, «[n]a aferição da do requisito da identidade da questão de direito, exige-se que exista também semelhança ou igualdade substancial da situação de facto» (fl. 89). Este entendimento constitui jurisprudência reiterada do tribunal a quo e a decisão recorrida fá-lo assentar na ideia de que o juiz desempenha necessariamente uma «função constitutiva e criativa na fixação do sentido com que deve valer a norma, de forma a adaptar a lei à realidade social e às necessidades práticas» (fl. 92). Mais especificamente sobre o instituto do abuso de direito, em causa no âmbito dos autos, a decisão recorrida afirma que a sua aplicação «recorre a conceitos indeterminados cujo sentido é definido casuisticamente pelo tribunal, de maneira irrepetível, não podendo afirmar-se, sem mais, a sua inaplicabilidade aos processos executivos ainda que baseados em sentença transitada em julgado. A oscilação dos tribunais na decisão de aplicar, ou não, este instituto nos processos executivos depende mais da avaliação casuística dos factos e da densificação do conceito de boa fé processual, do que de uma afirmação genérica de inaplicabilidade do artigo 334.º do Código Civil a determinado tipo de processos ou grupo de casos» (fl. 93).

Porém, a decisão recorrida afirma também, parafraseando a decisão de que aí se reclamava – e que foi mantida pela decisão recorrida «nos seus exatos termos» –, que: «Os acórdãos alegadamente em conflito foram proferidos em processos de embargos à execução, mas não se verifica o requisito da identidade da questão de direito, na medida em que o núcleo factual dos casos é muito distinto e as obrigações referidas nas sentenças dadas à execução não têm a mesma natureza jurídica: no acórdão fundamento executava-se uma obrigação de pagar alimentos, irrenunciável e que visa satisfazer necessidades básicas do credor, e no acórdão recorrido uma obrigação de prestação de facto de entrega de documentos, que já estavam na posse do exequente embargado» (fl. 89, sublinhados nossos). E mais adiante acrescenta ainda: «o acórdão recorrido [proferido pelo Tribunal da Relação e de que foi interposto o recurso para uniformização de jurisprudência], aceitando que o artigo 792.º do CPC é uma norma fechada, conclui pela inaplicabilidade do abuso de direito no contexto factual e jurídico específico para o caso dos autos» (fl. 91, sublinhado nosso). Assim, embora tenha mencionado ser exigível uma «semelhança ou igualdade substancial» das situações de facto subjacentes ao acórdão recorrido e ao acórdão fundamento, o tribunal recorrido acabou por considerar também que o contexto jurídico em causa num e noutro eram fundamentalmente distintos. Este entendimento sempre impediria – mais diretamente ainda do que o anterior, porquanto se trata agora de matéria de direito e não já de matéria de facto – que se desse como preenchido o requisito da identidade da questão de direito exigido pelo artigo 688.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Significa isso, conforme referido, que um eventual juízo de...

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