Acórdão nº 741/21 de Tribunal Constitucional (Port, 23 de Setembro de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Maria José Rangel de Mesquita
Data da Resolução23 de Setembro de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 741/2021

Processo n.º 306/2020

3.ª Secção

Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida a A. SAD, foi interposto recurso, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (em seguida, «LTC»), do acórdão proferido por aquele Tribunal, em 27 de fevereiro de 2020, que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade material, dos «artigos 204º/1, 208.º e 209º do RD/FPF», «por violação do princípio constitucional da imputação culposa em matéria sancionatória (cf. artigos 1º, 2º e 32º da Constituição)», bem como das «normas extraídas dos preceitos legais dos artigos 2.º n.ºs 1 e 4 da Portaria 301/2015 e da primeira linha da tabela do seu Anexo I, por violarem os princípios constitucionais da proporcionalidade e do acesso à justiça».

2. A A. SAD intentou no Tribunal Arbitral do Desporto processo arbitral necessário contra a Federação Portuguesa de Futebol, peticionando a anulação da decisão administrativa colegial da Secção não Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, proferida em 16 de novembro de 2018, que decidiu confirmar a decisão disciplinar prolatada no processo disciplinar pela Secção não Profissional do Conselho de Disciplina Federação Portuguesa de Futebol, em formação restrita, no dia 16 de agosto de 2018, através da qual foi a ora recorrida condenada em multas no valor de € 9.180,00, por factos ocorridos no jogo n.º 100.00.001, entre a recorrida e a B. SAD, realizado no dia 4 de agosto de 2018, a contar para a Supertaça Cândido de Oliveira, época desportiva 2018/2019.

Por decisão arbitral colegial, a instância arbitral decidiu, por maioria, julgar improcedente o recurso.

Inconformada, a ora recorrida interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal Central Administrativo Sul, que, por acórdão prolatado em 27 de fevereiro de 2020, o julgou procedente, revogando a decisão arbitral e anulando o ato administrativo impugnado.

Mais decidiu alterar o valor processual para € 9.180,00 e isentar a recorrida das custas devidas no Tribunal Arbitral do Desporto.

3. No segmento que aqui releva, lê-se na decisão recorrida:

«[…]

2.1.1.

Segundo a recorrente, a decisão arbitral confirmativa do ato administrativo condenatório da A. SAD, relativa aos ilícitos disciplinares previstos nos cits, artigos 204º/1, 208º e 209º (e 193º) do RD/FPF, violou o princípio constitucional da presunção de inocência em processos sancionatórios e ainda o consequente princípio da repartição do ónus da prova em tais processos, bem como o princípio da culpa.

Aquele primeiro princípio constitucional terá, alega, corolários em sede de avaliação dos meios de prova produzidos no processo disciplinar, corolários que aqui foram desrespeitados - valoração da prova consentânea com o princípio da presunção da inocência - porque o TAD, tal como o ato administrativo em causa, presumiu simplesmente que a arguida falhou culposamente nos seus deveres regulamentares e com base apenas num critério probatório de 1ª aparência, como se fosse suficiente uma simples indiciação para se obter a prova dos factos tipificados na norma tipificadora do ilícito; é que não caberá ao arguido em processo disciplinar demonstrar que não se verificam os elementos do facto típico, ilícito e culposo de natureza disciplinar. Por outras palavras da recorrente, será inconstitucional, [por violação] por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.º, n.º 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.º-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito, art. 2.º da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.º da CRP), a interpretação dos cits. 204.º, 208.º e 209.º (e 193º) do RDFPF, no sentido de que a indiciação, com base em relatórios do jogo, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorretas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube.

Ainda por outras palavras da recorrente, será inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.º, n.º 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.º-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.º da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.º da CRP), a interpretação dos cits, artigos 204.º/l (e 193º), 208.º e 209.º do RDFPF, no sentido de que se dá como provado que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes quando se prove, com base no artigo 220.º do RDFPF, que esses sócios ou simpatizantes adotaram um comportamento social ou desportivamente incorreto, cabendo ao clube aportar prova demonstradora do cumprimento desses seus deveres.

2.1.2

O TAD, além de invocar os Acs. do Supremo Tribunal Administrativo emitidos nos Proc. Nº 08/18, nº 033/18 e nº 075/18, entendeu expressamente o seguinte:

“o relatório elaborado pelo Delegado da FPF descreve as condutas ilícitas, quem e onde as praticou.”

Mas isso não é verdade . O relatório ou relatórios nada dizem sobre a conduta ilícita da A.SAD. Nem o probatório do ato administrativo ou o da decisão arbitral o fazem.

O TAD, além de invocar os Acs. do Supremo Tribunal Administrativo emitidos nos Proc. 08/18,33/18 e 75/18, entendeu expressamente o seguinte:

“o elemento subjetivo do ilícito disciplinar em causa resulta da conjugação dos factos objetivamente apurados com as regras da experiencia comum e do normal acontecer.”

Será isto possível à luz dos factos realmente provados e dos factos realmente provados e das regras da experiencia comum? Cremos bem que não. Com efeito, os factos provados não permitem encontrar a violação culposa dos cits. deveres em momento algum.

O TAD ainda entendeu expressamente o seguinte:

“a Demandante foi, no mínimo, negligente no cumprimento dos seus deveres de vigilância e de formação dos seus adeptos, porque foram rebentados pelos seus adeptos objetos pirotécnicos proibidos por lei de entrar no recinto desportivo, porque foram por eles entoados cânticos ofensivos e porque há as disposições regulamentares constantes dos já transcritos artigos 12º e 193º da RD/FPF. Pelo que, desde logo, conseguimos aferir que a Demandante, enquanto Clube, é a responsável pelas alterações de ordem e disciplina provocada pelos seus adeptos/simpatizantes, nomeadamente, quanto à entoação de cânticos, arremesso de objetos para o relvado e deflagração de engenhos pirotécnicos no interior do Estádio”). O TAD entendeu ainda expressamente o seguinte: “a responsabilidade da Demandante pelo comportamento dos seus adeptos/simpatizantes não foi presumida, resultou antes da omissão dos deveres que impendem sobre a Demandante, e previstos nos legais acima referidos”.

Será tudo isto correto, lógico? Tem isto sentido?

Não. Com efeito, do facto de os supostos adeptos - não identificados - praticarem as ações descritas nos artigos 204º/1, 208º e 209º do RD/FPF é impossível, natural ou juridicamente, retirar o facto da violação voluntária dos cits. deveres a cargo da ora recorrente .

O TAD, além de invocar os Acs. do Supremo Tribunal Administrativo emitidos nos Proc. 08/18, 33/18 e 78/18, entendeu ainda o seguinte:

“a demonstração da realização pelos clubes de atos concretos junto dos seus adeptos/simpatizantes destinados à prevenção da violência poderá afastar a sua responsabilização disciplinar.”

Será bem assim? Não, também, como veremos melhor.

2.1.3.

O princípio da culpa “não vai buscar o seu fundamento axiológico a uma qualquer conceção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena” – cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993 §56.

Do ponto de vista da culpa, e, em síntese: “A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efetivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento de pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas – sejam de prevenção geral positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou de neutralização. A função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros de um Estado de Direito democrático. E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar” – cf. FIGUEIREDO DIAS, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pág. 109 e ss.

Quer dizer, sem culpa (censura ético-jurídica à ação ou omissão ilegais), em qualquer ramo ou sub-ramo de Direito punitivo, é impossível aplicar o princípio constitucional da proporcionalidade da oena disciplinar ou criminal ou da sanção contraordenacional à culpabilidade revelada na infração cometida.

E, tal como referido no Acórdão deste Tribunal Central Administrativo Sul de 26-09-2019, P. nº 74/19…, sublinhamos nesta sede o seguinte:

- o que o TC considera expressamente que o que está aqui em causa é o...

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