Acórdão nº 490/21 de Tribunal Constitucional (Port, 07 de Julho de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Assunção Raimundo
Data da Resolução07 de Julho de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 490/2021

Processo n.º 375/21

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Assunção Raimundo

Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, em que é reclamante A. e reclamados o Ministério Público e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), o primeiro, inconformado com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a 6 de abril de 2021, que indeferiu o incidente de arguição de prescrição do procedimento contraordenacional, interpôs recurso, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada LTC).

1.1. Os presentes autos constituem um incidente do processo que foi objeto do acórdão proferido no Tribunal da Relação de Lisboa, em 12 de fevereiro de 2021, que julgou totalmente improcedente o recurso interposto pelo ora reclamante e confirmou a decisão do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão que o condenara na coima única de € 180.000,00, pela prática de violações, a título doloso, do dever de divulgação de informação com qualidade, previstas e punidas pelos artigos 7.º, 389.º, n.º 1, alínea a), e 388.º, n.º 1, alínea a) do Código de Valores Mobiliários (CdVM) e que, na respetiva motivação, na parte que para estes autos releva, se pronunciou no sentido de não ter decorrido o curso do prazo regular de prescrição, porquanto «contando este prazo com início na referida data de 16 de Março de 2013 atingimos a conclusão de que a prescrição suscitada sempre ocorreria em 17 de Março de 2021 e não na data proposta pelo Recorrente, mesmo que não se atendesse ao regime especial invocado relativo à gestão dos efeitos da pandemia e seu combate» e, consequentemente, considerou «ociosa e inútil», a resposta à questão da inconstitucionalidade material do conjunto normativo formado pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, com a redação conferida pelos artigos 2.º e 6.º, n.º 2 da Lei n.º 4/2020, de 6 de abril, e dos artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 26/2020, de 29 de maio.

1.2. Notificado deste aresto e considerando o ali decidido, dez dias após ter conhecimento dos requerimentos apresentados nos autos, pelos também arguidos B. e C., a invocar a prescrição do procedimento contraordenacional, o reclamante, em requerimento autónomo, declarou aderir ao peticionado nesse âmbito e arguiu a prescrição relativamente às duas contraordenações praticadas em 16.03.2012, com referência à divulgação da informação contida no relatório e contas consolidadas relativo ao ano de 2012 e no relatório de governo societário de 2012.

1.3. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão prolatado a 6 de abril de 2021, julgou flagrantemente improcedente o incidente em que o reclamante suscitara a prescrição.

2. Inconformado, o ora reclamante interpôs o recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:

«[...] O presente recurso é interposto nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 70º do supra citado diploma, devendo o Tribunal Constitucional apreciar a questão de inconstitucionalidade normativa suscitada anteriormente perante os Tribunais comuns pelo ora Recorrente.

Essa questão é a da inconstitucionalidade do art. 7º, nº 3, da Lei n.º 1- A/2020 de 19 de março, e do art. 6º-B, n.º 3, da Lei n.º 4-B/2021 de 1 de fevereiro, numa determinada interpretação.

Com efeito, tais preceitos são inconstitucionais na interpretação de que a suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional se aplica aos factos ocorridos antes da sua vigência, por violação dos arts. 18º, 19º, n.º 6 e 29º, todos da Constituição da República Portuguesa.

Determina o art. 7º, nº 3, da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março que "a situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos."

Determina o art. 6º-B, n.º 3, da Lei n.º 4-B/2021 de 1 de fevereiro que "são igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no n. º 1."

Considera a doutrina (e bem) que as normas referentes à prescrição do procedimento criminal, bem como, por exemplo, as normas referentes ao direito de queixa, têm uma natureza mista, processual e substantiva, já que não têm apenas efeito sobre o processo, mas também sobre a própria responsabilidade - Vide Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal. Editorial Verbo, 1993, Vol. II, pág. 42.

De facto, as normas processuais penais poder-se-ão distinguir em normas processuais penais materiais e normas processuais penais formais.

"As primeiras (de que são exemplos (...) a queixa, a prescrição, as espécies de prova, os graus de recurso, a prisão preventiva, a liberdade condicional) condicionam a efetivação da responsabilidade penal ou contendem diretamente com os direitos do arguido ou do recluso, enquanto que as segundas (...), regulamentando o desenvolvimento do processo, não produzem os efeitos jurídico-materiais derivados das primeiras." - Vide Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais. Coimbra Editora, 1990, pág. 213.

Se é verdade que as condições negativas de punibilidade, como a prescrição do procedimento criminal, não são determinadas para favorecer o arguido, é inquestionável que a situação que objetivamente delas resulta pode-lhe ser mais ou menos favorável.

"A ratio de garantia política do cidadão face a possíveis decisões legislativas ou judiciais arbitrárias ou mesmo persecutórias, ao mesmo tempo que determinou a consagração constitucional da proibição da retroatividade da lei penal posterior desfavorável, determina a sua aplicabilidade às referidas normas processuais penais materiais. (...) Também nestas, os direitos do arguido (...) estão em causa (...)." - op. cit. pág. 223.

Esta doutrina ancora-se no art. 18º da Constituição da República Portuguesa, que determina que as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias não podem ter efeito retroativo.

Como bem decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu recentíssimo Acórdão de 9.03.2021, o qual pode ser consultado em www.dgsi.pt. "A Constituição da República Portuguesa, de forma expressa (art. 19, nº 6), impede que a declaração do estado de emergência possa afetar a não retroatividade da lei criminal e o direito de defesa dos arguidos. (Sumariado pelo relator)."

No mesmo sentido, o Tribunal da Relação de Évora, no seu douto e recente Acórdão de 23.02.2021, determinou que "A suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal prevista nos artºs 7º, nº 3, da L. 1- A/2020 de 19/3, igualmente prevista na L. 4-B/2021 de 1/2, não se aplica aos factos ocorridos antes da sua vigência."

Pois que "Resulta da conjugação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 4, da CRP, que ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior, sendo ainda que ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos, aplicando-se retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.

(...)

Do supra exposto, afigura-se-nos que a nova causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal e das penas e medidas de segurança, sendo prejudicial ao arguido, pois alargará necessariamente tais prazos de prescrição, apenas poderá ser aplicada para os factos praticados na sua vigência. "

(...)

Entender que a nova causa de suspensão do procedimento criminal se aplica aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, estavam já em curso seria conferir-lhe um efeito retroativo proibido, em violação do disposto no artigo 29.º, n.º 4, da CRP, porque mais gravoso para a situação processual do arguido, alargando a possibilidade da sua punição.

O mesmo se diga relativamente a quaisquer penas ou medidas de segurança já aplicadas ou que venham ser aplicadas por crimes em que o tempus delicti é anterior à vigência da Lei n.º 1 A/2020.

Note-se que o n.º 6 do artigo 19.º da CRP expressamente estabelece que «[a] declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar [...] a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos [...]», tendo o mesmo ficado consagrado no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n. º 44/86. Assim ficou igualmente expresso nos Decretos do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18 de março, que declarou o estado de emergência (artigo 5.º, n.º 1), 17-A/2020, de 2 de abril (artigo 7.º n.º 1), e 20-A/2020, de 17 de abril (artigo 6.º, n.º 1), que o renovaram.

A nova causa de suspensão do procedimento criminal e das penas e medidas de segurança apenas poderá, então, ser aplicada para os factos praticados na sua vigência... ".

Assim, devem ser julgados inconstitucionais o art. 7º, nº 3, da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março, e o art. 6º-B, n.º 3, da Lei n.º 4-B/2021 de 1 de fevereiro, na interpretação de que a suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional se aplica aos factos ocorridos antes da sua vigência, por tal interpretação ser violadora dos arts. 18º, 19º, n.º 6 e 29º, todos da Constituição da República Portuguesa.

O Recorrente suscitou esta questão de inconstitucionalidade no requerimento de 3.04.2021, no qual requereu que o Tribunal da Relação de Lisboa declarasse a extinção do procedimento contraordenacional, por prescrição, relativamente às contraordenações praticadas em 16.03.2012, com referência à divulgação da informação contida no relatório e contas consolidadas relativo ao ano de 2012 e no relatório de governo societário de 2012...

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