Acórdão nº 59/21.7BEALM-S2 de Tribunal Central Administrativo Sul, 17 de Junho de 2021
Magistrado Responsável | CATARINA VASCONCELOS |
Data da Resolução | 17 de Junho de 2021 |
Emissor | Tribunal Central Administrativo Sul |
Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul I – Relatório: Nesta ação administrativa, intentada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, por J..... contra o Estado Português, o Ministério da Administração Interna, a Guarda Nacional Republicana, L..... e R....., o Ministério Público, alegando agir em nome próprio, em defesa da legalidade e não se conformando com o despacho proferido em 5 de fevereiro de 2021, que indeferiu o requerimento, por si apresentado, de recusa de aplicação das normas constantes do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do CPTA, na redação da Lei nº 118/2019, de 17.09, por inconstitucionalidade material e a declaração de nulidade por alegada falta de citação do Réu Estado, com a consequente anulação de todo o processado posterior à petição inicial e a determinação da citação do Estado no Ministério Público, vem do mesmo interpor recurso, formulando as seguintes conclusões: 1ª – Na presente acção proposta contra o Estado, o Centro de Competências Jurídicas do Estado, em representação do Réu Estado Português, foi citado para, querendo, contestar a acção, no prazo de 30 dias; 2ª – O Ministério Público, agindo em nome próprio, em defesa da legalidade, arguiu, incidentalmente, a inconstitucionalidade material do conjunto formado pelas normas constantes do segmento final do n.º 1 do artigo 11.º e do n.º 4 do artigo 25.º do CPTA, na redacção conferida pela Lei n.º 118/2019, de 17.09, por violação do disposto na primeira proposição do n.º 1 do artigo 219.º da CRP e no nº 2 dessa mesma disposição, requerendo a recusa de aplicação, neste processo e, enquanto representante do Réu Estado, reclamou contra a nulidade por falta de citação, com a consequente anulação de todo o processado posterior à Petição Inicial, e requereu a citação do Estado no Ministério Público; 3ª – Este requerimento foi indeferido pelo despacho recorrido que considerou, erradamente, que, “não ocorre a inconstitucionalidade material suscitada”; 4ª – O artigo 25.º, n.º 4 do CPTA com as alterações introduzidas pela Lei n.º 118/2019, de 17.09, estabelece que, quando é demandado o Estado, já não é citado o Ministério Público em sua representação, sendo a citação feita no Centro de Competências Jurídicas do Estado, designado por JurisAPP, que é um serviço central da administração directa do Estado, integrado na Presidência do Conselho de Ministros; 5ª – Sob uma aparência puramente procedimental e regulamentar, trata-se de uma norma inovadora que, quando conjugada com o disposto na parte final do n.º 1 do artigo 11.º do CPTA, na redacção igualmente conferida pela Lei n.º 118/2019, transforma a representação do Estado pelo Ministério Público numa excepção, quando sempre foi a regra; 6ª – A disposição conjugada do disposto nos artigos 25.º, n.º 4 e 11.º, n.º 1 do CPTA, na versão actual, esvazia o essencial da função do Ministério Público nos tribunais administrativos, enquanto representante do Estado-Administração, mostrando-se desconforme com o disposto no artigo 219.º, n.º 1 da CRP; 7ª – A norma do artigo 219.º, n.º 1 da CRP, que estabelece o estatuto constitucional do Ministério Público, contém a imposição da atribuição de competência ao Ministério Público para representar o Estado e configura um imperativo constitucional que o legislador ordinário não pode deixar de observar; 8ª – Esta função de representação do Estado pelo Ministério Público, estrutural ao modelo constitucional de Ministério Público em Portugal, está consagrada na legislação constitucional desde a Constituição de 1933, tendo sido mantida na Constituição de 1976 e permanecido inalterada ao longo das sete revisões constitucionais já ocorridas, bem como está, desde o Sec. XIX, refletida na legislação ordinária aplicável; 9ª – Com efeito, a representação do Estado em juízo foi sempre confiada, a nível constitucional e da lei ordinária, ao Ministério Público (com a única excepção da hipótese residual contemplada na parte final do n.º 1 do artigo 24.º do vigente CPC), estando essa representação, nas áreas cível, administrativa e até tributária, inequivocamente prevista em diplomas recentíssimos e de uma evidente centralidade na conformação dos nossos sistemas jurídico e judiciário; 10ª – A norma do n.º 1 do artigo 219.º da CRP, que incumbe ao Ministério Público a representação judiciária do Estado-Administração (central), possui natureza auto-exequível, incondicionada, sem necessidade de densificação pela legislação ordinária, configurando-se como uma intencional e estrutural opção constitucional, em consonância com a nossa tradição jurídica; 11ª – Tanto o legislador constituinte originário como o derivado ponderaram os atributos do Ministério Público como magistratura dotada de “autonomia” (artigo 219.º, n.º 2 da CRP), cuja actuação é sempre vinculada a “critérios de legalidade e objectividade” (artigo 3.º, n.º 2 do EMP) e, em razão desses atributos, incumbiram-lhe a tarefa representativa do Estado em juízo, justamente a título de representação e não como advogado, patrono ou mandatário judicial; 12ª – Pelo que, sendo o Ministério Público, segundo o ordenamento constitucional, o “representante” (e não patrono, ou advogado ou mandatário) do Estado (administração central), para efeitos do respetivo contencioso judiciário, incluindo o contencioso administrativo, o Estado não poderá deixar estar em juízo representado pelo Ministério Público, a quem institucionalmente compete exprimir a “vontade judiciária” do Estado e conduzir o processo nos seus aspectos de técnica processual, no quadro de autonomia e da vinculação a critérios de legalidade e objetividade, sem prejuízo de poderes de disposição da relação material controvertida pelos órgãos superiores do Governo.
13ª – A representação do Estado nos tribunais por parte do Ministério Público configura um verdadeiro princípio judiciário constitucional, com alcance material.
14ª – Porém, em flagrante contradição sistémica e teleológica, a nova redacção da parte final do n.º 1 do artigo 11.º do CPTA, reduz a representação do Estado por parte do Ministério Público a uma mera eventualidade, pois ao acrescentar o substantivo “possibilidade”, transformou esta regra em excepção, sendo que, paralelamente, não foi introduzida qualquer alteração ao artigo 51.º do ETAF que, em consonância com o imperativo constitucional, continua a atribuir ao Ministério Público a representação do Estado junto dos tribunais administrativos e fiscais; 15ª – A nova redação do artigo 11.º, n.º 1, in fine, do CPTA torna meramente eventual e subsidiária a intervenção do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo, pelo que, mesmo numa apreciação isolada, dificilmente a norma se compatibilizaria com o princípio judiciário constitucional da representação do Estado nos tribunais através do Ministério Público, imposta pelo artigo 219.º, n.º 1 da CRP; 16ª – A desarmonia dessa norma com a Lei Fundamental torna-se ainda mais clara quando se proceda à sua interpretação conjugadamente com a do n.º 4 do artigo 25.º, também aditado pela referida Lei n.º 118/20, que estabelece que quando seja demandado o Estado a citação é dirigida unicamente ao JurisAPP; 17ª – No que se reporta ao Estado, a norma destrói a mais elementar lógica de constituição da instância processual administrativa, visto que, por um lado, o Réu Estado-Administração é unicamente citado numa entidade que não possui poderes legais para a sua representação em juízo e, por outro, não é citado através do órgão que possui tais poderes, por força de disposição constitucional (e também legal); 18ª – Nos termos do artigo 223.º, n.º 1 do CPC, subsidiariamente aplicável ao contencioso administrativo, a citação das pessoas colectivas - como é o caso indiscutível do Estado-Administração - realiza-se “na pessoa dos seus legais representantes” e o natural representante do Estado em juízo é o Ministério Público, em quem deve ser realizada a citação; 19ª – O JurisApp não é um órgão, mas sim um serviço central da administração directa do Estado, integrado na Presidência do Conselho de Ministros e sujeito ao poder de direção do Primeiro-Ministro ou do membro do Governo em quem aquele o delegar, sendo que nenhuma norma lhe confere poderes representativos do Estado em juízo, poder-dever esse que é atribuído ao Ministério Público, não se vislumbrando forma de este ser afastado dessa representação no contencioso administrativo, sem violação do artigo 219.º, n.º 1 da CRP; 20ª – Todavia, por força dos efeitos jurídicos e práticos da disposição conjugada dos artigos 11.º, n.º 1 e 25.º, n.º 4, do CPTA, o Estado (administração central) passa a ser representado, no contencioso administrativo, pelo JurisAPP, ao qual é atribuída, desde logo, a competência para receber a citação, o que, nos termos do artigo 223.º, n.º 1 do CPC, implica e tem subjacente uma representação legal da pessoa coletiva citada, no caso o Estado; 21ª – O mecanismo implementado pelo n.º 4 do artigo 25.º, conjugado com a parte final do n.º 1 do artigo 11.º do CPTA, ambos na versão da Lei n.º 118/2019, conduz em linha recta, de forma necessária, a uma presença subsidiária do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo, violando o que, por imperativo constitucional, configura uma regra 22ª – Acresce, que a norma do n.º 4 do artigo 25.º CPTA atribui ao JurisAPP a competência para coordenar “os termos da (…) intervenção em juízo” do “serviços” a quem aquele entenda “transmitir” a citação; 23ª – Resulta deste preceito que o referido Centro pode, ou não, se e quando lhe aprouver, confiar a representação do Estado em juízo ao Ministério Público; isto é, para efeito de assegurar a representação em juízo do Estado, o JurisApp decide, caso a caso, se a citação é, ou não, transmitida ao Ministério Público, ou seja, se o Ministério Público representa ou não o Estado, sem que haja qualquer critério expresso e objectivo que conforme essa decisão...
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