Acórdão nº 17697/18.8T8LSB.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 13 de Maio de 2021
Magistrado Responsável | FERNANDO BAPTISTA |
Data da Resolução | 13 de Maio de 2021 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível.
I – RELATÓRIO Externato O Lar da Criança instaurou acção declarativa comum contra AA, BB e CC.
Pede que os RR sejam condenados a reconhecer a existência do crédito da autora sobre a herança deixada por DD, no valor total de €135.762,63 e a ver satisfeito esse crédito pelos bens da herança.
Alegou, em síntese: - DD era mãe dos réus, - foi sempre gerente da autora desde a sua constituição, - e até 2006 procedia com regularidade a levantamentos e/ou utilização de quantias existentes no caixa da sociedade para seu uso pessoal; - as quantias assim retiradas eram substituídas por “vales de caixa”; - quando decidiu assumir formalmente a dívida, que já era muito elevada, foram para esse efeito formalizados dois empréstimos em reuniões da assembleia geral da autora, um no valor de 112.000 € em 08/11/2004 e outro no valor de 40.000 € em 16/11/2006, - tendo aquela declarado ter recebido da autora esses valores conforme recibos que se juntam como doc. 10 e 11; - apenas foi paga parte da dívida à autora, continuando credora da quantia de 135.762,63 € que deverá ser paga pela herança.
* Apenas contestaram o 1º réu e a 2ª ré, separadamente, pugnando pela improcedência da acção e invocando, em resumo: - a sociedade não emprestou/não entregou qualquer quantia à sua mãe, - sendo falsas as declarações constantes desses documentos 10 e 11; - todo esse expediente foi um meio de regularização contabilística de saídas não justificadas de dinheiro do caixa da sociedade.
* Realizada a audiência final, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os réus do pedido.
* Inconformada, apelou a autora, vindo a Relação a proferir Acórdão, no qual decidiu julgar procedente a apelação, “revogando-se a sentença recorrida e condenando os apelados a reconhecerem o crédito da apelante sobre a herança no valor de 135.762,63 € e a ser satisfeito pelos bens da herança.”.
Inconformados, recorreram o Réu AA e a Ré BB, apresentando as pertinentes alegações que rematam com as seguintes CONCLUSÕES I.
DO RÉU AA A. O presente processo é a decorrência do processo de Inventário por óbito da Senhora D. DD, uma vez que, no âmbito daquele processo, estando claro entre as Partes o facto de não terem sido realizados quaisquer fluxos financeiros da Autora a favor da falecida DD em virtude das deliberações de mútuo das Assembleias Geral de 8 de Novembro de 2004 (ata n.º 20) e de 2 de Novembro de 2006 (ata n.º 26), o 1º e 2ª Réus nunca aceitaram que por detrás das referidas deliberações de 2004 e 2006 tenha ocorrido um qualquer empréstimo (ou formalização de empréstimo) da Autora à falecida DD; B. E foi esta discórdia, no seio do processo de Inventário, que deu lugar à presente ação intentada pela Autora com a “protecção” da própria 3ª Ré; C. Face ao valor do acervo da herança deixada pela Senhora D. DD, bastante inferior ao valor das supostas dívidas, o resultado para os recorrentes é o de não receberem um tostão da herança – ou sejam com esta manobra os recorrentes são, na prática, deserdados sem se ter verificado uma das justificações presentes no artigo 2166.º do Código Civil, verificando-se assim um verdadeiro caso de fraude à lei; D. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de que se recorre padece de várias nulidades graves que tornam, de certa forma, a decisão dificilmente apreensível, uma vez que os fundamentos do Acórdão da Relação de Lisboa de que se recorre estão (i) em oposição com a própria decisão, (ii) em contradição entre si ou (iii) verifica-se a ausência de fundamentação de facto que suporte a decisão, pelo que a decisão é nula por força da alínea c) do n.º do artigo 674.º que remete para a alínea c) do n.º do artigo 615.º, ambos do Código do Processo Civil; E. 1ª Nulidade: Fazendo referência às deliberações melhor identificadas em A. o Tribunal da Relação de Lisboa afirma que: “Além disso, aquelas deliberações não espelham a realidade, pois é a própria sociedade que esclarece que nenhuma quantia foi entregue à sócia gerente na sequência e em execução delas” e que “É incontroverso que em 10/11/2004 e 30/11/2006 não foram entregues à sócia gerente as quantias de 112.000 € e 40.000 €.
” (sublinhado e negrito nosso); F. A Autora também refere que nenhuma quantia foi entregue pela Autora em execução das deliberações de 2004 e 2006, tratando-se as deliberações de formalizações em virtude do alegado facto da Senhora D. DD ter já recebido tais quantias na sequência de vários levantamentos realizados no caixa da sociedade Autora; G. Esta realidade invocada pela Autora está espelhada no facto b) do elenco dos factos não provados: “Que, ao longo dos anos em que a falecida DD geriu a Autora, aquela procedesse, com regularidade e até 2006, a levantamentos e/ou utilização de montantes existentes na caixa da sociedade para uso pessoal, que só parcialmente reembolsou, faltando reembolsar a quantia de € 135.762,63.
”; H. No entanto, o facto de o Tribunal da Relação ter dado como provado que a Senhora D. DD apôs pelo seu punho a sua assinatura nos documentos “recibos” juntos na Petição Inicial como Doc. 10 e 11 não pode ter o efeito de dar como provado – por não corresponder à letra da declaração – que os putativos empréstimos tenham sido recebidos nas condições referidas especificamente no facto não provado constante da alínea b) (cf. G.); I. Pelo que, se resulta evidente que a Senhora D. DD não recebeu qualquer quantia em execução das referidas deliberações, então o Tribunal a quo teria de dar como provado o facto b) dos factos não provados; J. No entanto, o Tribunal não só não considerou tal facto provado como refere expressamente que quanto à alínea b), inexiste confissão, pelo que se decide manter como não provada essa factualidade; K. Ora, esta afirmação está absolutamente correcta, mas, no entanto, está em contradição com a decisão que afirma que as declarações contidas nos recibos são confissões de dívida que fazem prova plena, pois das duas uma: ou a falecida DD receberia as quantias em virtude das deliberações – caso em que o Tribunal a quo confirmou que não aconteceu – ou a falecida DD receberia as referias quantias em virtude dos vários levantamentos ocorridos até 2006 – facto que o Tribunal a quo deu como não provado; L. Afinal de contas onde se “encontra” o facto jurídico constitutivo da alegada dívida de DD?; M. 2ª Nulidade. O Tribunal de 1º instância deu como não provado o facto a) que dispõe o seguinte:
-
Que a Autora tivesse entregado a DD as quantias de € 112.000,00 e de € 40.000,00 referidas, respectivamente, em 7 e 8 dos factos provados; N. Com efeito, na sua fundamentação, e confirmando o entendimento da 1ª Instância, o Acórdão de que se recorre refere mesmo que: “Além disso, aquelas deliberações não espelham a realidade” cf. resulta melhor do vertido na alínea E.; O. Não obstante tais asserções, o mesmo Tribunal decide “eliminar a alínea a) do ponto «IV - Factos não provados» da sentença recorrida”; P. É que retirar o facto a) do ponto «IV - Factos não provados» da sentença recorrida» é absolutamente contraditório com a afirmação de que os mútuos a que se refere o facto a) inexistiram; Q. Se inexistiram os mútuos então está não provado o facto a) – pois este “facto” afirma que os mútuos existiram – e, se assim é, este não pode ser retirado do elenco dos factos não provados; R. Ademais, apesar do Tribunal a quo referir que as deliberações de concessão de mútuo “não espelham a realidade” por ser “incontroverso” que as quantias referidas nas deliberações não foram entregues à sócia gerente, o mesmo Tribunal refere ainda assim que “à data da deliberação de 08/11/2004 o contrato de mútuo de valor superior a 20.000 € só era válido se fosse celebrado por escritura pública (cfr art. 1143º na redacção do DL 343/98 de 06/11)” (etc.) e, como tal, por existir inobservância da forma legal, “a nulidade tem como consequência a obrigação de restituição de tudo o que tiver sido prestado”; S. Ora, salvo o devido respeito, que é muito, esta passagem do Acórdão é contraditória relativamente à anterior afirmação de que os mútuos deliberados em 08/11/2004 e 16/11/2006 são inexistentes – não “espelham a realidade” –, por não se ter verificada a traditio da quantia mutuada; T.
Assim, não há sustentação factual nem jurídica para se mencionar a restituição de tudo o que tiver sido prestado, em razão da nulidade provocada pela falta de forma (escritura pública) – quando é o próprio Tribunal que refere que os mútuos, em resultado das referidas deliberações, inexistem! U. Fica assim patente a contradição entre os fundamentos invocados, bem como a oposição entre os fundamentos e a decisão de retirar o facto a) do elenco dos factos não provados; V. 3ª Nulidade: Consta do douto Acórdão a quo o seguinte: “Portanto, para poderem aproveitar-se da confissão da apelante de que nenhum dinheiro entregou a DD em execução das deliberações, teriam os apelados de aceitar como verdadeiro que as deliberações foram tomadas nas referidas circunstâncias. Só assim não seria se os apelados provassem que tal não é verdade, ou seja, que DD não era devedora de tais quantias e por isso inexistia razão para as deliberações. Mas da ponderação dos documentos e depoimentos das testemunhas não é evidente que DD não ficou devedora da sociedade por ter utilizado dinheiro desta para fins pessoais num total de 152.000 €.
”; W. Em V. o Tribunal da Relação de Lisboa “dá a entender” que ocorreu uma aceitação da confissão por parte do Réu AA: mas não refere nunca de onde resulta a referida aceitação da invocada confissão judicial da Autora, que, efetivamente, nunca ocorreu; X. Não resulta, em nenhum lado, a existência de uma aceitação de confissão – que resultasse, por exemplo, dos articulados iniciais, da fase de produção de prova em julgamento ou da frase de recurso –, o que determina que o mesmo carece de fundamentação, porque não foi indicado o facto “processual” subjacente a tal putativa aceitação da...
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