Acórdão nº 01246/18.0BEBRG de Tribunal Central Administrativo Norte, 07 de Maio de 2021

Magistrado ResponsávelLu
Data da Resolução07 de Maio de 2021
EmissorTribunal Central Administrativo Norte

Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção do Contencioso Administrativo:* S.

(Rua (…)), na presente acção administrativa intentada no TAF de Braga contra a Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares da Justiça [CAAJ], interpõe recurso jurisdicional de decisão que julgou totalmente improcedente a acção.

Conclui: 1.ª A interpretação restritiva do artigo 20.º, n.º 6, da Lei n.º 32/2014, de 30 de Maio, feita pelo tribunal recorrido no sentido de que tal norma apenas impede a devolução do valor referido na al. b) do n.º 1 do mesmo artigo 20.º e nunca do valor referido na al. c) da mesma norma é frontalmente violadora do artigo 9.º do CC.

  1. Nos termos do artigo 9.º do CC não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso 3.ª Como expressou de forma clara e brilhante o Supremo Tribunal Administrativo no douto Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/2015: “Sendo o «imperfeitamente expresso» uma modalidade do que foi «expresso», percebe-se que o intérprete não possa ver na norma o que ela não expressou, sob pena de violentar o seu texto e ferir o estatuído no artigo 9.º do Código Civil.” 4.º Face à redacção da norma em causa (artigo 20.º, n.º 6, da Lei n.º 32/2014) — “Não sendo requerida a convolação do procedimento em processo de execução, nos casos em que tal seja admissível, não há lugar à restituição pelo agente de execução dos valores pagos pelo requerente” —, não se lhe pode encontrar qualquer expressão, ainda que imperfeita, da ideia de distinção da sua aplicabilidade relativamente ao valor referido na alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo 20.º e relativamente ao valor referido na alínea c) do mesmo número.

  1. Diga-se que, olhando para a totalidade do nosso ordenamento jurídico, não se encontra qualquer expressão que indicie qualquer intenção do legislador em distinguir o tratamento do pagamento previsto pela alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º ao qual nos temos vindo a referir e o pagamento previsto pela alínea c) desse mesmo número.

  2. A orientação que defende tal distinção por semelhança com o artigo 47.º, n.º 6, al. a) da Portaria n.º 282/2013, de 29 de Agosto, é particularmente infeliz por não cuidar de notar que o legislador não teve aí qualquer dificuldade em exprimir claramente a sua intenção em distinguir as verbas a que essa norma se reporta, o que manifestamente não fez no dito artigo 20.º, n.º 6, da Lei n.º 32/2014.

  3. A defesa de tal interpretação assente no princípio geral de repetição do indevido igualmente só pode soçobrar porquanto: o legislador previu outras situações nas quais reconhece ao agente de execução o direito de ficar com verbas que se destinavam a remunerar determinada actividade que não foi efectivamente prestada; porquanto o pagamento em causa não se tratava da corporização da intenção do requerente em cumprir com uma obrigação que afinal não existia; ainda porque importou para o agente de execução o desempenho da sua actividade ainda que não materializada nos actos pretendidos pelo requerente, mas sim outros — reflectidos na factualidade provada — que nem por isso deixam de constituir prática profissional devidamente remunerável.

    De facto 8.º O legislador reservou para o agente de execução o direito a manter verbas sem que os actos que estabelecem a referência da remuneração tenham sido efectivamente praticados em diversos casos, como é exemplo o artigo 47.º, n.º 6, da Portaria n.º 282/2013, mas também a conjugação do artigo 47.º, n.º 7 e do artigo 51.º, n.º 3, dessa mesma portaria.

  4. O pagamento da verba estabelecida na alínea c) do n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 32/2014 não se reconduz ao cumprimento de uma obrigação, mas sim, conforme expressamente previsto pelo n.º 3 desse artigo 20.º, à própria concretização do requerimento de notificação do requerido.

  5. O indeferimento da notificação do requerido significa que não é efectivamente praticado tal acto, o da notificação do requerido, mas nem por isso deixa de importar actividade profissional devidamente remunerável, seja pelo trabalho prestado, seja pela indisponibilidade que importam para que o agente cumpra com outro actos enquanto cumpre com os que se lhe impõem pelo indeferimento em causa.

  6. A interpretação que ignora tal circunstância — a de que o profissional pode não ter praticado o acto de notificação do requerido, mas teve, inevitavelmente, de praticar outros por força do indeferimento (análise da situação, elaboração da decisão de indeferimento, notificação da decisão de indeferimento, processamento burocrático e contabilístico da situação, contagem e agendamento do prazo de reclamação da decisão) —, viola o princípio geral de direito do qual decorre o direito à remuneração dos serviços prestados no contexto profissional.

  7. A interpretação do tribunal recorrido mostra-se ainda pouco razoável na medida em que privilegia a posição do requerente — único responsável por ter requerido um acto ilícito — face à do agente de execução — o qual não contribuiu, de maneira nenhuma, para que se tenha tornado necessária a actividade inerente ao indeferimento daquele requerimento.

  8. Se o recorrente tinha o direito de manter para si, nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 20 da Lei n.º 32/2014, o valor referido em c) do n.º 1 desse mesmo artigo, seguramente não violou qualquer dever consignado na lei, não cometendo qualquer infracção disciplinar, nomeadamente a resultante da conjugação dos artigos 180.º e 181.º do EOSAE por referência ao artigo 168.º, n.º 1, al. c) do mesmo estatuto.

  9. Ao considerar que o recorrente não tinha tal direito, mas sim a obrigação de devolver a aludida verba, a sentença ora em crise violou frontalmente os artigos 20.º, n.º 6, da Lei n.º 32/2014 e o artigo 9.º do CC.

  10. Mais violou os próprios artigos 180.º e 181.º do EOSAE por referência ao artigo 168.º, n.º 1, al. c) do mesmo estatuto ao estabelecer que o exercício do direito de manter tal verba constitui infracção disciplinar.

    Por outro lado, 16.º É inegável que, apesar de não se conceder razão à fundamentação expendida pelo tribunal para alicerçar a sua actividade interpretativa do artigo 20.º, n.º 6, da Lei n.º 32/2014, se encontra na sentença devidamente estabelecida tal fundamentação.

  11. Ao invés, verifica-se que do acto impugnado inexiste qualquer razão que suporte tal interpretação, isto é, a entidade administrativa recorrida limitou-se a dizer que o artigo 20.º, n.º 6, da Lei n.º 32/2014, não se aplica à verba prevista na alínea c) do n.º 1 da mesma norma porquanto a sua interpretação em sentido contrário não se abriga na letra ou espírito do preceito.

  12. Quer isto dizer que, ainda hoje, não é possível conhecer as razões que levaram a entidade administrativa recorrida a defender a interpretação restritiva do artigo 20.º, n.º 6, da Lei n.º 32/2014.

  13. Sendo evidente que o acto impugnado não pode vir agora beneficiar da argumentação constante da sentença no sentido de defender a bondade do resultado alcançado pela entidade recorrida.

  14. Isto é, verifica-se manifesto incumprimento do dever de fundamentação por parte da entidade recorrida, uma vez que esta empalmou as razões que a levaram a cumprir com uma interpretação enunciativa do preceito, bem como os motivos pelos quais o resultado de tal interpretação foi a restrição da norma do artigo 20.º, n.º 6, da Lei n.º 32/2014 de modo a apenas incluir a verba prevista na al. b) do n.º 1 desse mesmo artigo 20.º.

  15. Pelo que o acto impugnado fica ferido pelo vício de violação de lei, nomeadamente por falta de fundamentação, em prejuízo dos artigos 268.º, n.º 3, da CRP, do artigo 220.º da Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho aplicável ex vi do artigo 189.º do EOSAE, bem como do artigo 152.º, n.º 1, al. a) do CPA.

  16. Na verdade, não se encontra em nenhum lugar do procedimento disciplinar em causa qualquer referência seja à doutrina invocada pelo julgador a quo, nem tão pouco à alegada violação do princípio de repetição do indevido, nem a qualquer outra razão.

  17. A entidade requerida apenas se limitou a dizer que o artigo 20.º, n.º 6, da Lei n.º 32/2014 não visa o pagamento referido na alínea c) do n.º 1 desse mesmo artigo 20.º, sem qualquer expressão, ainda que imperfeita, do porquê de tal interpretação.

  18. Pelo que a decisão ora em crise não pode deixar de ter violado os artigos 268.º, n.º 3, da CRP, do artigo 220.º da Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho aplicável ex vi do artigo 189.º do EOSAE, bem como do artigo 152.º, n.º 1, al. a) do CPA ao deixar de anular o acto impugnado por causa da óbvia falta de fundamentação do mesmo no que concerne à grande questão em divergência: qual o sentido a dar ao aludido artigo 20.º, n.º 6? 25.º Por último, não se pode conceder que da matéria de facto dada como provada resulte a verificação do elemento subjectivo da infracção.

  19. O sentido dado pelo recorrente à norma constante do n.º 6 do artigo 20.º da Lei n.º 32/2014 é, no mínimo, o mais natural face à sua redacção e, no limite, o único admissível face a tal letra.

    Aliás, 27.º qualquer construção jurídica que leve à defesa da interpretação tomada pelo tribunal recorrido, bem como pela entidade administrativa recorrida, está manifestamente ainda por ocorrer.

  20. Inexistindo qualquer orientação ou parecer que permita considerar tal interpretação, não tendo a mesma qualquer reflexo na jurisprudência ou doutrina relevante.

  21. Sem prejuízo do muito respeito que é devido aos autores da obra citada na sentença em crise, não pode deixar de se afirmar que a anotação que os mesmos fazem ao artigo 20.º, n.º 6, da Lei n.º 32/2014 é um mero primeiro passo nessa construção, muito pouco sustentado em razões da arte jurídica e que tem ainda por encontrar a atenção da crítica da restante doutrina e da jurisprudência.

  22. Em bom rigor, não se pode afirmar que o recorrente, enquanto agente de execução, tivesse obrigação de conhecer tal interpretação e muito menos de a...

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