Acórdão nº 2154/10.9BELSB de Tribunal Central Administrativo Sul, 21 de Abril de 2021
Magistrado Responsável | PEDRO NUNO FIGUEIREDO |
Data da Resolução | 21 de Abril de 2021 |
Emissor | Tribunal Central Administrativo Sul |
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul I. RELATÓRIO M....., S.A., intentou ação administrativa especial contra o Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, I.P.
, peticionando a anulação do parecer de 20/04/2010 da entidade requerida, relativo à legalização de vedação na Quinta .....
.
Citada, a entidade requerida apresentou contestação, com defesa por exceção e por impugnação.
Por sentença de 20/03/2013, o TAF de Almada julgou a ação improcedente.
Inconformada, a autora interpôs recurso daquela decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem: “1.ª Ao julgar improcedente a presente acção, decidindo que o acto impugnado não padece do vício de violação de lei, por ter interpretado e aplicado de forma correcta o art. 31.°, n.° 4, do RPOPNA ao caso sub judice, na medida em que entendeu ser não admissível no caso a interpretação restritiva do aludido preceito, a decisão recorrida fez uma errada aplicação do art. 9.° do Código Civil, e, consequentemente, uma errada aplicação do aludido artigo do RPOPNA.
-
Com efeito, ao sustentar que a redacção do art. 31.°, n.° 4, do RPOPNA não é de molde a suscitar grandes dúvidas acerca do âmbito de aplicação da norma, pelo que deve ser aplicado de forma estritamente literal, o Tribunal a quo desconsidera que a tarefa interpretativa é necessária em relação a todas as normas e que se impõe às entidades administrativas, não podendo estas limitar-se, na aplicação da lei, a uma mera tarefa de subsunção.
-
Desconsidera ainda o Tribunal a quo que, na situação sub judice, a interpretação literal da disposição mencionada põe-nos perante uma pluralidade de significados, pois a expressão "terrenos" poderá querer significar toda e qualquer parcela de terra não ocupada por edificações, quer esteja integrada em meios urbanos quer esteja integrada em meios rurais, como parece sustentar-se na decisão recorrida, ou poderá querer referir-se apenas a prédios ou parcelas delimitadas de solo inseridos em meio rural ou natural, como sustenta a a., ora recorrente.
-
Nesta hipótese de pluralidade de significados, a solução interpretativa definitiva alcança-se através da interpretação lógica, tendo em atenção a ratio legis, que indica qual dos sentidos gramaticais presentes na lei é aquele que está em concordância com o seu espírito e, por isso, deve prevalecer, 5.ª No caso em apreço, e para respeitar a ratio legis da imposição dos dois tipos de vedação prevista no n.° 4 do artigo 31.° do RPOPNA - que o Tribunal reconhece residir na prossecução do interesse público da conservação da natureza e da biodiversidade, permitindo a passagem das várias espécies de animais de uns terrenos para outros, evitando a fragmentação de habitats e o efeito barreira para as espécies mais sensíveis entre os dois relevados significados gramaticais da expressão "terrenos", deve escolher-se o segundo dos apontados sentidos pois é o que melhor se coaduna com a ratio legis da disposição mencionada.
-
Com efeito, quando os prédios ou parcelas de terreno em questão estão localizados em malhas de cariz marcadamente urbano e, inclusive, a vedação que se pretende colocar confronta com uma estrada nacional, como sucede no caso sub judice, a relevada ratio legis não tem aplicação, uma vez que a ocupação e a intervenção humanas características das zonas urbanas, sobretudo quando se verificam ao longo de séculos, como sucede no caso de .....
, comprometem, por si, o desenvolvimento natural das espécies animais e vegetais, não fazendo, por isso, sentido, insistir-se na preservação da biodiversidade no meio de uma vila ou zona urbana.
-
A decisão recorrida desconsiderou, assim, que a interpretação do artigo 31.°, n.° 4 do RPOPNA segundo a qual o aludido preceito tem e só quis ter por objecto a vedação de terrenos localizados em áreas rurais ou naturais, não cabendo na sua previsão a vedação de edifícios ou logradouros localizados em malhas de cariz marcadamente urbano, como sucede com o Palácio e Quinta da .....
, que está perfeitamente inserido na localidade de .....
, reconduz-se, afinal, a uma interpretação literal (ou declarativa) restrita da norma em apreço, que «apenas esclarece qual das significações em jogo é, legislativamente, a correcta».
-
Ainda que assim não se entenda, e se considere que o termo "terreno" contido no preceito em apreço significa "toda e qualquer parcela de terra", o que apenas como hipótese se refere, sem conceder, o acórdão recorrido incorreu em erro ao não tomar em devida consideração que no caso em apreço se justifica e deve ter lugar a interpretação restritiva do artigo 31.°, n.° 4, do RPOPNA, e precisamente por duas das razões apontadas por Francesco Ferrara transcritas na decisão recorrida: por um lado, a aplicação estritamente literal, sem restrições, do dispositivo em análise, ultrapassa o fim para que foi ordenado (contraria a sua razão de ser); por outro lado, a aplicação literal da norma, entendida no modo geral como está redigida, contradiz outro texto de lei.
-
Atendendo à já mencionada ratio do n.° 4 do artigo 31.° do RPOPNA, compreende-se que seja para os prédios inseridos em meio rural ou natural - maxime em plena Serra da Arrábida, onde os valores de conservação da natureza são mais relevantes e exigem níveis mais elevados de protecção - que se afigure adequada uma vedação dos tipos previstos nessa disposição.
-
Para um edifício ou logradouro inserido em meio urbano afigura-se claramente desadequado uma vedação em arame e estacas ou em rede ovelheira, assim como se afigura manifestamente desadequado quando a vedação se destina a proteger um edifício classificado como monumento nacional, um dos raros exemplares em Portugal da arquitectura civil do séc. XVI.
-
Assim, atendendo à ratio que presidiu à previsão dos dois tipos específicos de vedação na norma transcrita, impõe-se a conclusão de que a aplicação estritamente literal, sem restrições, do dispositivo em análise, ultrapassa o fim para que foi ordenado, pelo que a correcta aplicação da lei impõe que, seguindo a lição de Ferrara, se recorra a uma interpretação restritiva do aludido preceito, reconhecendo que o mesmo tem e só quis ter por objecto a vedação de terrenos localizados em áreas rurais ou naturais, não cabendo na sua previsão a vedação de edifícios (ou logradouros) localizados em malhas de cariz marcadamente urbano.
-
Por outro lado, a aplicação estritamente literal do disposto no n.° 4 do artigo 31.° do RPOPNA, impondo que a vedação do Palácio e Quinta da ....., que integra património classificado como monumento nacional, se fizesse apenas com recurso a vedação em arame e estacas ou em rede ovelheira conflitua sem margem para dúvidas - pela manifesta desfiguração e até degradação que tal tipo de vedação provocaria no monumento em causa - com o disposto em diversas normas legais, constantes, designadamente da Lei n.° 107/2001, de 8 de Setembro, do Decreto-Lei n.° 140/2009, de 15 de Junho, e do Decreto-Lei n.° 309/2009, de 23 de Outubro, que integram o regime da protecção do património cultural, assim como com as regras e princípios constantes de instrumentos internacionais que são parte integrante do ordenamento jurídico português, designadamente na Carta Europeia do Património Arquitectónico, adoptada pelo Conselho da Europa em Outubro de 1975, e na Convenção para a Salvaguarda do Património Arquitectónico da Europa, assinada em Granada a 3 de Outubro de 1985 e aprovada para ratifica-ção pela Resolução da Assembleia da República n.° 5/91, de 23 de Janeiro, tudo conforme melhor se deixou explicitado nos n.°s 34 a 50 antecedentes, que aqui se dão por reproduzidos.
-
E a referida interpretação literal conflitua ainda com o preceituado na al. a) do próprio n.° 4 do art. 31.° do RPOPNA, onde se estabelece que as vedações admitidas «devem ser implantadas de forma a assegurar a sua integração paisagística», pois não é crível que o legislador tenha admitido ficar assegurada a integração paisagística de uma vedação em rede ovelheira ou em arame e estacas quando a mesma se destinasse a vedar um edifício ou um logradouro localizado em pleno meio urbano e, muito menos, quando a mesma se destinasse a vedar património classificado como monumento nacional.
-
Do exposto resulta que, no caso em apreço, se deve concluir que a aplicação literal da norma, entendida no modo geral como está redigida, contradiz diversos outros textos de lei - no caso, até, de leis hierarquicamente superiores, pois que o RPOPNA é um normativo meramente regulamentar pelo que, na senda da lição de Francesco Ferrara, também pelas razões ora aduzidas se justifica a interpretação restritiva do preceituado no n.° 4 do art. 31.° do RPOPNA.
-
Do exposto resulta ainda que improcedem os vários argumentos aduzidos pelo Tribunal a quo na decisão recorrida, pois que, no caso em apreço, os vários princípios interpretativos consagrados no art. 9.° do Código Civil, incluindo a própria letra da lei, justificam e impõem a interpretação do art. 31.°, n.° 4, do RPOPNA propugnada pela a., ora recorrente, deixando incólumes a certeza e a segurança jurídicas na aplicação da lei.
-
Como ensina João Baptista Machado, se, a partir do texto da lei, e dentro dos limites que a sua significação comporta, se conclui que a razão de ser da norma é tal que ela não pode ser aplicada, sem mais, a todas as situações a que ela era aparentemente aplicável, então «o intérprete não deve deixar-se arrastar pelo alcance aparente do texto, mas deve restringir este em termos de o tornar compatível com o pensamento legislativo».
-
É ainda o...
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO