Acórdão nº 00022/20.5BEPRT-S1 de Tribunal Central Administrativo Norte, 09 de Abril de 2021
Magistrado Responsável | Frederico Macedo Branco |
Data da Resolução | 09 de Abril de 2021 |
Emissor | Tribunal Central Administrativo Norte |
Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:* I Relatório O Ministério Público, “agindo em nome próprio, como defensor da legalidade democrática”, veio Recorrer para esta Instância do “despacho proferido a 22 de Outubro de 2020, notificado a 26-10-2020 (...) que indeferiu o requerimento do Ministério Público no âmbito do qual foi arguida a inconstitucionalidade material das normas constantes do segmento final do n.º 1 do artigo 11.º e do n.º 4 do artigo 25.º do CPTA, na redação da Lei n.º 118/2019, de 17/09 e, arguida a nulidade por falta de citação do réu Estado” Apresentou no seu Recurso o Ministério Público as seguintes conclusões: 1 – A presente ação foi intentada por F. contra “o Estado Português, representado pelo Ministério Público e estabelecimento prisional do Porto”, tendo, nos termos do disposto no artigo 25.º, n.º 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), a citação do réu Estado Português sido dirigida unicamente para o Centro de Competências Jurídicas do Estado; 2 – A lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, que entrou em vigor no dia 16-11-2019, introduziu no CPTA nova norma acima referida, que estabelece que quando seja demandado o Estado já não é citado o Ministério Público, em representação deste, como até agora sempre esteve consagrado, mas sim o Centro de Competências Jurídicas do Estado, designado por jurisapp, que é um serviço central da administração direta do estado, integrado na presidência do Conselho de Ministros; 3 – Sob a sua aparência puramente procedimental e regulamentar — o que bastaria para a considerar deslocada num diploma sobre processo administrativo —, trata-se de uma norma revolucionária, sobretudo quando conjugada com o disposto na parte final do n.º 1 do artigo 11.º do CPTA, na redação igualmente conferida pela mesma lei n.º 118/2019; 4 – Com efeito, onde na anterior redação desta norma se previa ”(…) sem prejuízo da representação do estado pelo ministério público” passou, com a referida alteração, a prever-se ”(…) sem prejuízo da possibilidade de representação do estado pelo ministério público”, o que transformou numa exceção o que era uma regra, pois o possível tanto é o que pode ser como o que pode não ser vez alguma, sendo que não se vislumbra qualquer possibilidade de o Ministério Público ser eliminado, ao menos potencialmente, da representação do Estado no domínio do contencioso administrativo sem que daí resulte uma flagrante ofensa da primeira proposição do n.º 1 do artigo 219.º da CRP; 5 – Pelo que, esse conjunto normativo esvazia o essencial da função do Ministério Público nos tribunais administrativos, enquanto representante do estado-administração, mostrando-se desconforme ao parâmetro normativo consagrado na primeira proposição do n.º 1 do artigo 219.º da CRP; 6 – A norma do artigo 219.º, n.º 1 da CRP configura um imperativo constitucional, a observar pelo legislador ordinário, que contém a regra da atribuição de competência ao Ministério Público para representar o Estado; 7 – Em 1 de janeiro de 2020 entrou em vigor o novo estatuto do Ministério Público, aprovado pela lei n.º 68/2019, de 27 de agosto — i.e, menos de um mês antes da publicação da lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, que contém as normas cuja inconstitucionalidade se invoca, que continuou a confiar a representação do Estado ao Ministério Público (artigo 4.º, n.º 1, al. b)) e a prever a existência de um departamento central de contencioso do estado e interesses coletivos e difusos da procuradoria-geral da república‖, o qual passará a intervir também em matéria tributária e não apenas na cível e administrativa (artigo 61.º, n.º 1 e 2); 8 – A lei n.º 114/2019, de 12 de setembro, que procedeu à 12.ª alteração no ETAF/2002, — i.e., menos de uma semana antes da edição da lei n.º 118/2019, a que pertencem as normas aqui questionadas —, não introduziu qualquer alteração ao disposto no artigo 51.º; 9 – A representação do Estado em juízo foi sempre confiada, a nível constitucional e da lei ordinária, ao Ministério Público (com a única exceção da hipótese residual contemplada na parte final do n.º 1 do artigo 24.º do vigente CPC), estando essa representação, nas áreas cível, administrativa e até tributária, inequivocamente prevista em diplomas recentíssimos e de uma evidente centralidade na conformação dos nossos sistemas jurídico e judiciário; 10 – A norma do n.º 1 do artigo 219.º da CRP, que confia ao Ministério Público a representação judiciária do estado-administração (central), possui natureza Auto exequível, incondicionada, sem necessidade de densificação pela legislação ordinária, configurando-se como uma intencional e estrutural opção constitucional, em consonância com a tradição jurídica do país; 11 – Tanto o legislador constituinte originário como o derivado ponderaram os atributos do Ministério Público como magistratura dotada de autonomia (artigo 219.º, n.º 2 da CRP), com a sua atuação sempre vinculada a critérios de legalidade e objetividade (artigo 3.º, n.º 2 do EMP) e, em razão desses atributos, confiaram-lhe a tarefa representativa do estado em juízo, justamente a título de representação e não como advogado, patrono ou mandatário judicial; sendo a representação do estado nos tribunais por parte do ministério público é configurável como um verdadeiro princípio judiciário constitucional, com alcance material; 12 – Porém, em flagrante contradição sistémica e teleológica, a parte final do n.º 1 do artigo 11.º do CPTA, na redação conferida pelo artigo 6.º da lei n.º 118/2019, vem reduzir a representação do estado por parte do ministério público a uma pura eventualidade; 13 – A nova redação limita-se a acrescentar o substantivo possibilidade, mas desse modo transforma a regra da representação do estado pelo ministério público em exceção, pois o possível tanto é o que pode ser como o que pode não ser vez alguma, não sendo inócuo que o conjunto de alterações legislativas no âmbito da jurisdição administrativa que ocorreram em 2019, de que faz parte aquele preceito, não tenha introduzido, paralelamente, o referido substantivo no artigo 51.º do ETAF.
14 – Do confronto da fórmula usada no CPTA (parte final do n.º 1 do artigo 11.º sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público) com a acolhida no CPC (artigo 24.º, n.º 1: ¯o estado é representado pelo ministério público, sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio…), resulta segura a conclusão de que, no âmbito do primeiro diploma, a representação do estado por parte do ministério público tem carácter eventual e subsidiário, ao passo que no segundo constitui a regra, só passível de afastamento por lei concreta; 15 – A nova redação do artigo 11.º, n.º 1, in fine, do CPTA torna meramente eventual e subsidiária a intervenção do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo, pelo que, mesmo numa apreciação isolada, dificilmente a norma se compatibilizaria com o princípio judiciário constitucional da representação do Estado nos tribunais através do ministério público, imposta pelo primeiro segmento do n.º 1 do artigo 219.º da CRP; 16 – A desarmonia dessa norma com a lex fundamentalis torna-se ainda mais clara quando se proceda à sua interpretação conjugadamente com a do n.º 4 do artigo 25.º, também aditado pela referida lei n.º 118/20, que estabelece que quando seja demandado o Estado a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado; 17 – No que se reporta ao Estado, a norma destrói a mais elementar lógica de constituição da instância processual administrativa, visto que, por um lado, o réu Estado-administração é unicamente citado numa entidade que não possui poderes legais para a sua representação em juízo e, por outro, não é citado através do órgão que possui tais poderes, por força de disposição constitucional (e também legal); 18 – Por outro lado, nos termos do artigo 223.º, n.º 1 do CPC, subsidiariamente aplicável ao contencioso administrativo, a citação das pessoas coletivas - como é o caso indiscutível do estado-administração - realiza-se na pessoa dos seus legais representantes; 19 – O único representante do Estado em juízo, pelo menos enquanto o Estado não manifestar a vontade de pretender ser patrocinado de outro modo (pressuposta, por necessidade de raciocínio, a validade dessa declaração), é o seu representante natural, o ministério público, em quem deve ser realizada a citação; 20 – O mecanismo implementado pelo n.º 4 do artigo 25.º, conjugado com a parte final do n.º 1 do artigo 11.º do CPTA, ambos na redação da lei nº 118/2019, conduz em linha reta, de forma necessária, a uma presença subsidiária e minimalista do ministério público como representante do estado no processo administrativo; 21 – Acresce que a norma do n.º 4 do art.º 25.º CPTA, na redação da lei n.º 118/2019, vem atribuir ao centro de competências jurídicas do Estado a competência para coordenar os termos da (…) intervenção em juízo dos serviços a quem aquele entenda transmitir a citação, que, no caso dos autos (tal como noutros), não a transmitiu ao ministério público, estando sob sua decisão escolher quem vai representar o estado; 22 – Só um construtivismo artificial e preordenado pode...
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