Acórdão nº 175/21 de Tribunal Constitucional (Port, 06 de Abril de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução06 de Abril de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 175/2021

Processo n.º 1204/2019

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. A., S.A. (a ora recorrente) pretendeu reagir (através de peça processual que qualificou como recurso, dirigida ao Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão) a atos praticados pela Autoridade da Concorrência no âmbito do processo de contraordenação número PRC/2018/05, atos esses que consistiram na análise, exame e visualização de correio eletrónico, elementos protegidos por sigilo profissional (no entender da recorrente) e elementos fora do âmbito da autorização e mandado do Ministério Público (também no entender da recorrente). O processo correu termos naquele tribunal com o número 18/19.0YUSTR-B.

1.1. Pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão foi proferido despacho, datado de 03/04/2019, no sentido da rejeição do recurso, por irrecorribilidade daqueles atos. Assentou tal decisão nos fundamentos seguintes:

“[…]

Da admissibilidade do presente recurso interlocutório

1. A visada, aqui recorrente, A., S.A., veio apresentar recurso de medidas de análise, exame e visualização ilegal de correio eletrónico, de análise, exame e visualização de elementos protegidos por sigilo profissional e de análise, exame e visualização de elementos fora do âmbito da autorização e mandado do Ministério Público, tomadas pela Autoridade da Concorrência – AdC e na sequência de diligência de busca e apreensão no PRC/2018/05.

[…]

6. Efetivamente, a visada/recorrente pretende sindicar a validade, legalidade e regularidade de medidas de análise, exame e visualização ilegal de correio eletrónico, de análise, exame e visualização de elementos protegidos por sigilo profissional e de análise, exame e visualização de elementos fora do âmbito da autorização e mandado do Ministério Público, tomadas pela AdC e na sequência de diligência de busca e apreensão realizada entre os dias 28 de novembro e 21 de dezembro de 2018.

7. Durante tais diligências os funcionários da AdC, devidamente credenciados, efetuaram ações de pesquisa e análise de documentos potencialmente relevantes para a investigação, incluindo mensagens de correio eletrónico.

8. Mercê dessas ações foi determinada a apreensão de um conjunto de documentos em 21 de dezembro de 2018, sendo que o presente recurso não visa qualquer sindicância sobre essa apreensão.

9. Incontroverso também se afigura a pendência de recurso interlocutório dessa decisão de apreensão interposto pela visada/recorrente, que corre termos nos autos principais, e a interposição de requerimento junto da AdC e para arguição de nulidades da diligência.

10. Enquanto elemento de contexto das pronúncias que este Tribunal tem vindo a proferir no âmbito do controlo judicial da admissibilidade de recursos previstos no NRJC, cumprirá notar que, desde 2017 até hoje, deram entrada no Tribunal 3 recursos de decisões finais condenatórias da AdC , enquanto que, no mesmo período, deram entrada cerca de 56 recursos interlocutórios de medidas da mesma autoridade .

11. A legítima litigância desses cerca de 56 recursos interlocutórios visou, numa primeira fase, sindicar tendencialmente o acesso à prova eletrónica, digital e documental recolhida pela AdC no âmbito das diligências de busca e apreensão previstas no art.º 18.º do NRJC, e, numa segunda fase, passou a sindicar tendencialmente, mediante a arguição de nulidades junto da AdC, a legalidade, validade e regularidade da recolha dessa prova.

12. O objeto processual dos recursos mais recentes parece inaugurar uma terceira fase desta litigância pela qual se sindicam diretamente os atos de apreensão ou, como está em causa nos presentes autos, se sindicam os atos preparatórios e/ou de execução que antecedem essa mesma decisão de apreensão.

13. Acresce que, como é de conhecimento público e amplamente divulgado, a AdC tem incrementado as suas ações de obtenção de prova junto de visadas através de downraids e ao abrigo de mandados de busca e apreensão.

14. Daí que o controlo da admissibilidade recursiva pelo Tribunal neste tipo de processos se imponha como um momento decisivo e que reclama ponderação rigorosa e criteriosa.

*

15. Postos estes termos de circunstanciação procedimental, somos a avançar que o regime recursivo do NRJC em confronto com o objeto do recurso obsta à admissibilidade e prossecução do presente recurso de impugnação judicial interlocutória.

16. Para tanto, por referência ao argumentário dos intervenientes, veiculamos as razões, preposições e juízos interpretativos do regime legal aplicável a seguir expostas.

17. Em primeiro lugar, como temos vindo a reiterar constantemente nos despachos de admissibilidade deste tipo de recursos interlocutórios ‘o novo RJC veio expressamente regulamentar os recursos das decisões interlocutórias e fê-lo de forma que se pode considerar completa, não deixando por isso, margem para aplicação subsidiária do art.º 55.º do RGCO’ – Maria José Costeira e Fátima Reis Silva, Lei Da Concorrência, Comentário Conimbricense, Almedina, pág. 822.

18. O que vale por dizer que o NRJC há de configurar lei especial que afasta a necessidade de aplicação subsidiária para o processo contraordenacional da concorrência, não só do art.º 55.º do R.G.CO., mas também do demais regime jurídico que enquadra aquele normativo, visto que o NRJC consagra, de modo pleno, um regime próprio, autónomo e tendencialmente autossuficiente no que respeita aos meios de aquisição de prova, à intervenção das autoridades judiciárias, à competência instrutória da autoridade administrativa, aos meios de reação interlocutórios e ao direito de defesa durante a fase organicamente administrativa do procedimento.

19. Neste sentido, o art.º 85.º, n.º 1 do NRJC encerra uma afirmação derrogativa da amplitude recursiva do art.º 55.ª do R.G.CO., enquadrada por um regime processual e autónimo, o qual, entre o mais, faz depender o interesse e a legitimidade recursiva da preexistência de um ato decisório ou de uma atuação de conteúdo decisório por parte da AdC.

20. Por consequência, a visada/recorrente, ao recorrer de atos preparatórios e de execução, antecedentes de uma eventual decisão de apreensão faz retroagir, ‘contra legem’, a tutela recursiva interlocutória, preterindo o art.º 85.º, n.º 1 do NRJC e, como tal, violando norma processual expressa sobre a admissibilidade de tal objeto de recurso.

21. Em segundo lugar, ainda que assim não fora e se admitisse a existência de uma lacuna do NRJC perante tais atos preparatórios e/ou de execução de atos decisórios e que legitimasse o chamamento subsidiário do art.º 55.º, n.º 1 do R.G.CO., a inegável amplitude literal do artigo não pode obscurecer a necessidade de verificar criticamente a aplicação casuística desse normativo.

22. Assim, apesar da doutrina de referência consignar, em anotação do elemento literal decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo e sem ulterior casuísmo relevante para o caso, a possibilidade recursiva de tais atos, impõe-se sublinhar que tais qualificadas opiniões não deixam de fazer menção ao critério de lesão imediata de direitos e interesses.

23. Ora, certamente que não se pode tresler tal critério operacional à luz de um entendimento de que a mera afetação de direitos no âmbito de uma diligência particularmente invasiva, como é o caso de buscas e apreensão, confere, ipso facto, o direito de recorrer direta e autonomamente de tais medidas.

24. Na verdade, os direitos fundamentais que a visada invoca são necessariamente direitos fundamentais postos em crise com qualquer diligência de busca e apreensão coativamente efetuada em ambiente de prova digital e/ou eletrónica, pelo que o reconhecimento desta legitimidade recursiva deve exigir uma grau mais profundo de análise hermenêutica, sob pena de defendermos que qualquer ato de colaboradores da autoridade administrativa durante tais diligências poder encerrar tal lesão processualmente relevante.

25. Neste particular, a exemplificação de possíveis atos recorríveis que a interpretação proposta pela visada/recorrente envolve pode conduzir, até, ao esvaziamento material da tutela jurisdicional interlocutória e na medida que bastará ocorrer compressão de um direito ou interesse para garantir uma via processual autónoma.

26. O critério de lesão imediata de direitos e interesses deve subentender, em nosso parecer, a existência de ofensa potencial desses direitos e interesses que configure um ato cuja proteção do alcance lesivo não se encontre processualmente acautelado e que, por isso mesmo, mereça uma tutela antecipada, direta e imediata.

27. Neste conspecto, como temos vindo a assinalar em várias decisões, os poderes de busca, exame, recolha e apreensão previstos nas alíneas c) e d) do n.º 1 do art.º 18.º do NRJC traduzem-se numa “das linhas de força do novo RJC: a maior agressividade em termos de meios coativos”, tanto nos locais onde as diligências podem ser efetuadas como em relação à documentação, independentemente da sua natureza e suporte – Lobo Moutinho e Pedro Duro, Lei da Concorrência, Comentário Conimbricense, Almedina, pág. 209.

28. Todavia, por uma opção expressa e inequívoca do legislador, tais diligências estão sujeitas a um regime de controlo e validação de autoridade judiciária, integrando a proteção qualificada de espaços domiciliários ou equiparados (dependência fechadas, escritórios de advogados ou consultórios) e de apreensão de documentos – cfr. artigos 19.º, 20.º e 21.º do NRJC – em linha com os poderes de investigação criminal.

29. Por via da tutela e da dignidade constitucional conferida aos direitos,...

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