Acórdão nº 163/21 de Tribunal Constitucional (Port, 19 de Março de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução19 de Março de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 163/2021

Processo n.º 702/20

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público e o Município de Santarém, foi pelo primeiro interposto recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), do acórdão proferido por aquele Tribunal (fls. 212-235), em 21 de agosto de 2020, indicando, no requerimento de interposição, como objeto “o entendimento normativo dado pelo Supremo Tribunal de Justiça ao art. 432.º, n.º 1, a) do CPP, segundo o qual o acórdão do Tribunal da Relação proferido ao abrigo do n.º 3, do art. 135.º, do CPP, não constitui uma decisão proferida em 1.ª instância, é inconstitucional, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso, previsto no art. 32.º, n.º 1 da CRP” (fls. 246).

2. No curso do processo a quo, o ora recorrente teve intentado contra si despacho de acusação pela prática, em coautoria material e em concurso real, de três crimes de prevaricação e de dois crimes de participação económica em negócio. O arguido-recorrente requereu a abertura da instrução e solicitou a prestação de depoimento de uma testemunha que, à data dos factos, era o advogado da sociedade de construções envolvida no diferendo com a Câmara Municipal de Santarém, a respeito de obras públicas, que deu origem ao processo penal. Neste contexto, aberta a instrução, o referido advogado comunicou nos autos o seu pedido de dispensa do segredo profissional, apresentado ao Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados. Em seguida, ele próprio, sem intervenção judicial, veio informar que tal dispensa havia sido indeferida, impedindo-o, assim, de depor relativamente aos factos relevantes. Importa notar que a informação dada pelo advogado ao juízo contém apenas o ofício expedido pela Ordem dos Advogados, no sentido do indeferimento da dispensa requerida, sem que, no entanto, constem dos autos os fundamentos e razões que culminaram nessa decisão (cf. fls. 227).

Com isso, o arguido-recorrente suscitou perante o Juiz de Instrução Criminal o incidente processual de levantamento do sigilo profissional, na forma do artigo 135.º do CPP, a ser tramitado junto do Tribunal da Relação de Évora. Esse tribunal apreciou, então, o incidente da quebra de segredo devido pelo advogado (fls. 84-101), tendo considerado que o seu depoimento “não se mostra, no caso concreto, imprescindível à descoberta da verdade material, que se pretende alcançar e, na perspetiva da defesa do arguido, ora requerente, não se vislumbra que sem esse depoimento, fique inviabilizada a possibilidade de fazer prova da matéria que alegou”. Desta forma, o TRE julgou improcedente o incidente de quebra do segredo profissional.

3. Inconformado, o ora recorrente interpôs recurso para o STJ (fls. 109-116), alegando que a gravidade do crime em causa justificaria a relevância do depoimento para a defesa, como interesse preponderante no litígio. Nesse aspeto, a par da argumentação sobre o direito infraconstitucional, formula, inicialmente, duas questões de constitucionalidade, a saber, quanto ao sentido extraído do artigo 135.º, n.º 3, do CPP de que o segredo profissional prevalece sobre o interesse da descoberta da verdade e da defesa do arguido, sem que se conheça a razão da recusa do seu levantamento e, também, quanto à eventual inadmissibilidade do recurso interposto contra a decisão do Tribunal da Relação, na hipótese de se concluir que ela não constitui uma decisão proferida em 1ª instância, à luz do artigo 432.º, n.º 1, al. a), do CPP face ao artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (conforme, efetivamente, sustentou o Ministério Público naquela sede). No julgamento, o STJ entendeu não se verificar qualquer inconstitucionalidade e, atendendo à questão prévia aventada pelo representante do Ministério Público, concluiu pela inadmissibilidade do recurso (fls. 174-193).

Ainda inconformado, o recorrente apresentou reclamação para a conferência do STJ, na forma do artigo 417.º, n.º 8, do CPP, argumentando o seguinte (fls. 200-202):

«1. O arguido, no recurso para este Supremo Tribunal, já se havia debruçado previamente sobre a admissibilidade de recurso do acórdão proferido pela Relação de Évora, que julgou improcedente o incidente de quebra do segredo profissional.

2. Na sua peça recursória, o Arguido já havia justificado a razão pela qual entende que a decisão da Relação de Évora é recorrível, nos termos do art. 423.º, n.º 1, a), do CPP, por ser uma decisão proferida em primeira instância.

3. Ao invés, na decisão sumária ora reclamada, sustenta a Senhora Juíza Conselheira Relatora que a questão controversa foi suscitada no âmbito do Tribunal da Comarca de Santarém, razão pela qual a Relação de Évora atuou como um verdadeiro tribunal de 2ª instância.

[…]

6. Como decorre da jurisprudência divergente que tem vindo a ser produzida sobre esta matéria, a questão não é líquida.

7. Porém, salvo melhor opinião, não parece que assista razão à decisão sumária.

8. O tribunal da 1ª instância, ou seja, o tribunal onde corre o processo, analisa e decide da (i)legitimidade da escusa; mas a quebra do segredo só foi analisada e decidida pela Relação de Évora.

9. Ou seja, o tribunal de 1ª instância não julgou o incidente de quebra de segredo profissional oportunamente suscitado, quem o julgou foi o Tribunal da Relação, pelo que, independentemente da questão ter sido suscitada na 1ª instância, a única decisão tomada foi aquela que foi objeto do acórdão do TRE, ora recorrido.

10. In casu, a Relação de Évora apreciou pela primeira vez a questão da quebra do segredo, a qual não foi apreciada pelo Tribunal da Comarca de Santarém, que se limitou a verificar a legitimidade da escusa.

11. Pelo exposto, a garantia constitucional do direito ao recurso só é assegurada se efetivamente o julgamento efetuado em 1ª instância pelo Tribunal da Relação puder ser reapreciado, por via de recurso, pelo Supremo Tribunal de Justiça.

12. Como já se expendeu na motivação do recurso e na resposta ao Parecer do Ministério Público, entende-se que padece de inconstitucionalidade o entendimento normativo dado ao art. 432.º, n.º 1, al. a), do CPP, no sentido de que não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação que, em 1ª instância, decide o incidente de levantamento do sigilo profissional previsto no art. 135.º, n.º 3, do CPP, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso, previsto no art. 32.º, n.º 1, da CRP.

[…]

20. Os arguidos são condenados ou absolvidos em função da prova produzida; se ao Arguido é cerceado o direito a produzir prova, pode de nada lhe servir ter direito ao recurso da decisão de mérito final.

21. Assim sendo, entendemos que o art. 432.º, n.º 1 do CPP não pode ser lido de forma restritiva, de forma a excluir do seu âmbito o recurso de uma decisão proferida pela Relação que decide em 1ª instância o incidente de quebra do sigilo profissional previsto no art. 135.º, n.º 3 do CPP.

22. Neste quadro, renova-se a inconstitucionalidade arguida, relativamente ao entendimento normativo adotado à norma do art. 432.º, n.º 1 do CPP, devidamente conjugado com o art. 434.º do mesmo código, no sentido supra exposto.»

Antes de mais, como é bom de ver desde logo, o recorrente, nesta que é a peça de suscitação prévia, no momento processualmente adequado, para efeitos do presente recurso de constitucionalidade e do preenchimento dos seus requisitos de admissibilidade, cinge-se a uma única questão jusconstitucional como objeto da sua pretensão submetido à apreciação, a saber, a dimensão normativa extraída da interpretação do artigo 432.º, n.º 1, alínea a) do CPP, no sentido de que não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação que, em 1ª instância, decide o incidente de levantamento do sigilo profissional previsto no art. 135.º, n.º 3, do CPP, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso, previsto no art. 32.º, n.º 1, da CRP. Desta forma, há que se constatar que o recorrente abandonou a anteriormente explicitada (v. ponto 3, supra) questão quanto ao sentido extraído do artigo 135.º, n.º 3, do CPP, nos termos do qual o segredo profissional prevalece sobre o interesse da descoberta da verdade e da defesa do arguido, sem que se conheça a razão da recusa do seu levantamento.

Nesta sequência, a conferência do STJ, em 21 de agosto de 2020, proferiu o acórdão ora atacado, em que decidiu indeferir a reclamação, tendo determinado, no essencial, que:

«O Ministério Público junto deste STJ entende que o recurso, embora tendo sido tempestivamente interposto, não é admissível para o STJ, nos termos do artigo 432º do CPP, não cabendo a decisão proferida pelo Tribunal da Relação, enquanto tribunal imediatamente superior aquele onde foi suscitada a quebra de segredo, no conceito de “decisão das relações proferidas em 1ª instância” prevista no n.º 1, do artigo 432.º do CPP, pelo que deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal.

O arguido vem defender e manter na reclamação, o contrário, ou seja, que a decisão do tribunal da Relação é uma decisão proferida em 1ª instância, sendo, por isso, recorrível, nos termos do disposto no artigo 432.º, n.º 1, al. a), do CPP.

Como se disse na decisão reclamada, e transcreve-se:

(…) a obtenção de prova sobre factos ou documentos abrangidos por segredo profissional, invocado como escusa a depor ou como recusa de apresentação, é suscetível de gerar um incidente processual com vista a obter a quebra do segredo mediante a...

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