Acórdão nº 132/21 de Tribunal Constitucional (Port, 18 de Março de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução18 de Março de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 132/2021

Processo n.º 85/2021

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. Correu os seus termos no Juízo de Comércio do Funchal com o número 3062/20.0T8FNC um Processo Especial de Revitalização (PER), sendo devedora a sociedade comercial “A., Lda.”.

Por despacho de 07/08/2020, foi declarado iniciado o processo.

1.1. O Ministério Público interpôs recurso do referido despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando o artigo 4.º, n.º 1, alínea j), do Estatuto do Ministério Público como norma habilitadora da sua legitimidade, “[…] em defesa da legalidade das decisões […]”. Alegou, em síntese, que o despacho recorrido padece de erro na aplicação do direito, por falta de requisitos para sujeição do devedor a PER, e é nulo nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil (CPC).

1.1.1. No Tribunal da Relação de Lisboa, foi proferida pelo relator decisão singular, datada de 20/11/2020, na qual se decidiu o seguinte:

“[…]

a) declara-se oficiosamente que a norma que constitui a alínea j) do n.º 1 do art. 4.º do EMP aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, é parcialmente inconstitucional por violação do disposto nos arts. 2.º, 111.º, n.º 1, e 203.º da Constituição da República, decretando-se que na mesma apenas se estatui validamente que compete especialmente, ao Ministério Público recorrer de todas as decisões e deliberações judiciais que não estejam em conformidade com a Constituição e as leis,

b) declara-se que o recorrente tem legitimidade para intentar a apelação que a este Tribunal Superior cumpre apreciar na presente instância recursória e julga-se esse recurso procedente e, consequentemente:

i) declara-se nula a decisão recorrida

ii) decreta-se que não estão verificadas as exigências legalmente previstas para permitir declarar iniciado o processo especial de revitalização previsto nos artigos 17.º-A a 17.º-J do CIRE, relativo à devedora “A., Lda.”

[…]”.

Assentou tal decisão nos fundamentos seguintes:

“[…]

2.2. (…) [A]s questões de que, em termos lógicos e ontológicos, este Tribunal Superior tem de conhecer são as seguintes e por esta ordem:

a norma que constitui a alínea j) do n.º 1 do art.º 4.º do EMP aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, é ou não constitucional?

o Ministério Público tem ou não legitimidade para deduzir o recurso por si apesentado em Juízo que deu origem ao presente processado subido em separado?

a decisão recorrida é ou não nula?

estão ou não verificadas no caso dos autos as exigências legais que permitem a admissão do PER apresentado pela Requerente/apelada?

[…]

2.3. A decisão recorrida encontra-se integralmente transcrita no ponto 1. da presente decisão do relator.

2.4. Discussão jurídica da causa.

2.4.1. A norma que constitui a alínea i) do n.º 1 do art.º 4.º do EMP aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, é ou não constitucional?

2.4.1.1. De acordo com o estatuído nos art.ºs 110.º, 202.º a 218.º, 219.º a 220.º e 221.º a 224.º da Constituição da República Portuguesa, só os Juízes compõem o Órgão de Soberania denominado “Tribunais” – e, portanto, de todos os profissionais forenses, só eles – em linha com o que acontece com o Presidente da República, os Deputados da Assembleia da República e os Membros do Governo – são titulares de um Poder de Soberania.

O que muito vincadamente se sublinha.

[…]

2.4.1.2. Voltando ao escrutínio do teor da alínea j) do n.º 1 do art.º 4.º do EMP aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, para além de haver que sublinhar que o mesmo permite interpretações insultuosas não apenas para todos os Juízes, mas também e de igual modo, para todos os demais Titulares de Poderes de Soberania, incluindo o Presidente da República, pois a mais ninguém é expressamente atribuída essa tão ‘especial’ função/tarefa institucional, ao ser estabelecido que um corpo especial da Administração Pública (v. n.º 1 do art.º 3.º do EMP em vigor, o qual está escrito – O Ministério Público goza de autonomia em relação aos demais órgãos do poder central, regional e local, nos termos da presente lei. – sublinhado que não consta do texto original) tem uma especial competência para defender a independência de um Órgão de Soberania como são os Tribunais, na área das suas atribuições e, pior ainda, que é necessário veiar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as Leis, está-se a atribuir, repete-se, a corpo especial da Administração Pública uma assaz desproporcionada preponderância institucional que é desconforme com vários princípios éticos estruturantes do Estado de Direito, a começar pelo princípio da independência dos Tribunais.

Tudo isto quando na alínea a) daquele n.º 1 do art.º 3.º do EMP em vigor já está estabelecido que compete ao Ministério Público (defender) a legalidade democrática.

Há aqui, no mínimo, muita redundância – indesejável redundância, acrescenta-se, sendo que a palavra agora usada é um enorme eufemismo (ou a major understatement, para usar uma adequada expressão em língua inglesa).

De facto, repete-se, nem ao Presidente da República, nem aos Deputados da Assembleia da República, nem aos Membros do Governo, nem aos Juízes, a Constituição da República atribui uma tal ‘competência’ […].

E, já agora, cumpre perguntar: quem poderão ser as entidades contra as quais o Ministério Público tem de defender a independência dos Tribunais?

Tendo em conta o presente recurso, uma dessas entidades será o próprio Tribunal – ou, pelo menos, o Juiz que proferiu a decisão apelada e, por tabela, os Juízes em geral.

E no que respeita ao Ministério Público? Ou será que, com a fraseologia em causa, se está a afirmar que esse corpo especial da Administração Pública nunca será uma dessas entidades?

Que fique claro: em Democracia não existem poderes absolutos e insindicáveis – mas também o Ministério Público tem de estar sujeito a esse escrutínio e, como já assinalado, não o está totalmente (ou, pelo menos, não suficientemente) – e, sim, podem ocorrer situações em que os Juízes, nas suas decisões ou deliberações, procedam a interpretações inconstitucionais e até ilegais.

Aliás, em termos ontológicos, é admissível conceber que o mesmo possa acontecer com os demais titulares de Órgãos de Soberania – sendo que, tal como está previsto para os julgamentos emitidos pelos Tribunais, em tais casos, está atribuída competência ao Ministério Público para agir em defesa da legalidade democrática (‘defender’ e não ‘velar’, porque, realmente, esta última palavra, pelo seu muito específico significado etimológico, não será, de todo, a melhor escolha).

Curiosamente, um tal controle externo (porque é disso que se trata) não existe para o Ministério Público.

E, manifestamente, em termos ético e ontológicos, a circunstância de esse corpo especial da Administração Pública ser uma estrutura hierarquizada, não é de todo suficiente para salvaguardar o perigo de atuações inconstitucionais ou tão só ilegais por parte de membros desse corpo especial – ou deste no seu conjunto.

Ou até para garantir a defesa da independência dos Tribunais se for o Ministério Público o ‘atacante’.

Tudo isto seria risível se a expressão em causa não estivesse escrita (com todo o respeito, de uma maneira totalmente despropositada) num diploma com a importância institucional que o EMP inegavelmente tem.

2.4.1.3. Mas há nesta previsão normativa algo ainda pior do que tudo o já apontado.

Efetivamente, como já se referiu, se o Ministério Público é o “defensor” da independência dos Tribunais – contra tudo e contra todos –, tal significa que se concebe ontologicamente como possível a existência na Sociedade de um corpo especial da Administração Pública (e só ele, que nem sequer a restante parte da mesma) incorrupto e incorruptível, guardião supremo de toda a Virtude e dos Princípios Ético-constitucionais que estruturam e dão consistência ao tecido social comunitário (e ao Estado), e que paira puro, imaculado e impoluto acima das demais instituições e dos restantes comuns mortais, todos eles (o resto da Humanidade que não pertence a esse corpo especial, entenda-se) manchado pelo efeito conspurcador do “pecado original”. 

E, claro, insuscetível de ser um dos ‘atacantes’ (ou ‘violadores’) da independência dos Tribunais.

Acontece que uma tal conceção ideológica traduz uma socialmente muito perigosa pulsão no mínimo iliberal – se não mesmo claramente totalitária – totalmente incompatível com os Princípios Éticos e o pensamento cultural formador/fundador do Estado de Direito e da Democracia consagrados no conjunto de Estados que integram o chamado Mundo Ocidental – e que assenta no pressuposto ontológico de que, porque todos os seres humanos são uns imperfeitos “pecadores”, têm de existir na Sociedade freios e contrapesos (checks and balances, para usar a expressão em língua inglesa), que impeçam a preponderância de certos indivíduos ou grupos sobre os demais membros da Comunidade e o controle, pelos mesmos, do Estado.

E é essa visão do Mundo e da Natureza Humana que está inscrita na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente no seu art.º 2.º, em particular quando no mesmo comando se afirma, muito claramente, que a “República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas”.

Logo, também por essa razão, não pode aceitar-se que um tal dispositivo seja considerado conforme a Constituição da República Portuguesa.

Todavia, e exatamente pelos motivos apontados (isto é, para assegurar a existência desse...

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