Acórdão nº 00356/12.2BEVIS de Tribunal Central Administrativo Norte, 05 de Março de 2021

Magistrado ResponsávelMaria Fernanda Antunes Apar
Data da Resolução05 de Março de 2021
EmissorTribunal Central Administrativo Norte

Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:*RELATÓRIO M., com domicílio na Rua (…); S., com domicílio no Largo (…), e C., com domicílio na Rua (…), vieram, por si e em representação da herança aberta por óbito de M., instaurar ação administrativa comum contra o Centro Hospitalar (...), E.P.E., com sede na Avenida (…), pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 150.000,00, a título de responsabilidade civil extracontratual, acrescida de juros vincendos, à taxa legal em vigor, até efectivo pagamento.

Por despacho proferido em 04/01/2014 foi admitido o incidente de intervenção principal provocada de C., médica, e de F., enfermeiro.

E, por despacho proferido a 26/01/2016 foi admitida a intervenção principal da “Companhia de Seguros (...), SA”.

Por sentença proferida pelo TAF de Viseu foi julgada improcedente a acção e absolvidos o Réu e os Intervenientes do pedido.

Desta vem interposto recurso.

Alegando, os Autores formularam as seguintes conclusões: A) os recorrentes discordam da análise crítica das provas feita pela Meritíssima Juiz “a quo”, em especial a desconsideração da consulta técnico-científica elaborada pelo Conselho Médico-Legal do INML, IP.

  1. a análise da questão em discussão, existência ou não da violação dos deveres impostos pelas legis artis da medicina no tratamento feito a M., carece, acima de tudo, de uma avaliação científica e técnica.

  2. o Conselho Médico-Legal do INML tem especiais competências técnicas e cientificas no âmbito da medicina legal fazendo, também, o acompanhamento e avaliação da actividade pericial desenvolvida pelo Instituto de Medicina Legal e Ciência Forense, sendo composto por elementos de reconhecido mérito académico e clínico.

  3. o conteúdo de tal consulta foi discutido por mais de 40 conselheiros e os esclarecimentos prestados em audiência de julgamento foram feitos pelo seu relator.

  4. a Meritíssima Juiz “a quo” fundamentou a desconsideração de tal consulta no seguinte: a. “… da leitura do indicado relatório, limitou-se o mesmo a tomar em consideração, para a análise efectuada, as informações da doente M., e constante do processo de inquérito.” b. “Por outro lado, o indicado relatório faz menção a um processo que se desconhece, com o nº 21/2009.” c. “Finalmente, e não despiciendo, chamado que foi o Senhor Perito à audiência de julgamento, revelaram-se os seus esclarecimentos erráticos, contraditórios, não logrando explicar qual era o referido processo 21/2009, nem tampouco qual a hora que considerou, no quesito três, para concluir existir atraso entre o início das queixas e o diagnóstico, bem como a respectiva correcção (não indicando se foi às 21h00 do dia 21/07/2008, 02h00, 05h00 ou 10h00 do dia 22/07/2008). Tampouco soube concretizar em que se baseou para fundamentar a resposta ao quesito 2, quando questionado para o efeito.”.

  5. o resumo da consulta técnico-científica refere os factos seguintes: d. “Doente do sexo feminino, à data dos factos com 54 anos de idade; (dado como provado na alínea FF) da Fundamentação de Facto); e. Internada para recolocação de um cateter duplo J. (dado como provado na alínea D) da Fundamentação de Facto); f. Terá regressado do bloco operatório por volta das 18h. (dado como provado na alínea D) da Fundamentação de Facto); g. Durante a noite queixou-se ao Sr. Enfermeiro de que deixara de sentir os membros inferiores e de que "por mais que tentasse não conseguia mexer as pernas” (dado como provado na alínea E) a I e L) da Fundamentação de Facto, com excepção de "por mais que tentasse não conseguia mexer as pernas”); h. Foi sossegada pela equipe de enfermagem.

    1. Mais tarde voltou a insistir com as mesmas queixas e foi observada pela médica pelas 5:00h, a qual a sossegou dizendo que se trataria de efeitos da anestesia, mandando administrar diazepan 5mg. (dado como provado na alínea J), N) e O) da Fundamentação de Facto); j. No dia seguinte, na visita familiar pelas 14:30h, como as queixas continuassem e tivesse cianose e arrefecimentos dos membros inferiores foi finalmente levada ao Bloco Operatório, tendo-lhe sido feita tromboembolectomia ilíaca esquerda e poplítea direita, com tasciotomia desta perna, tendo sido antes avisada pela médica da cirurgia vascular de que a situação era grave e bastante avançada, correndo o risco de perder imediatamente um membro. Síndrome de reperfusão e gangrena bilateral, vindo a necessitar de ambos membros, poucos dias depois. Posteriormente foi diagnosticada com cardiopatia embolígena com aneurisma do septo interauricolar (foramen ovale) com pequeno shunt. Comunicação interauricolar com aneurisma do septo. (dado como provado nas alíneas W), X) e Y) da Fundamentação de Facto).

    2. Esta sequência de factos ocorreu em 2008. (dado como provado na alínea C) da Fundamentação de Facto).

    3. Seguida regularmente em virtude do linfoma, vindo a falecer em 12/05/2011.” (dado como parcialmente provado na alínea AA da Fundamentação de Facto).

  6. como resulta das referências à matéria de facto dada como provada os pressupostos considerados no resumo da consulta técnico-científica foram, no essencial, declarados verdadeiros.

  7. assim, parece, não existir fundamento para desconsiderar a consulta técnico-científica, por ter seguido as informações da doente, do processo de inquérito e registos clínicos, informações que vieram a demonstrar-se verdadeiras.

  8. quanto à referência ao processo 21/2009 que é desconhecido, é manifesto que tal indicação resulta de mero erro como, aliás, foi esclarecido pelo Exmo. Relator (gravação de 25/06/2019 – Relator A., hora e minuto 4:04:23) J) finalmente, quanto aos apontados “… esclarecimentos erráticos, contraditórios…” facilmente se compreende tal conclusão após a audição da gravação do depoimento prestado num ambiente de intervenções de grande intensidade que são sempre adequadas a gerar ruido e perturbação.

  9. não obstante, expurgado o ruído gerado pela referida dinâmica do interrogatório, verifica-se que o Exmo. Relator apresenta esclarecimentos que nos parecem simples, objectivos e sustentados reafirmando as conclusões dos pontos 2 e 3 (gravação de 25/06/2019 - Relator A., hora e minuto 3:40:17 e seguintes).

  10. assim, perante a análise da prova que se apresentou e que será escalpelizada com maior rigor por este Tribunal, parece-nos, que deverá ser valorada a consulta técnico-científica e consequentemente afirmada a prova dos factos constantes dos pontos 1, 2 e 3 dos factos não provados e, em especial, considerada a afirmação constante da resposta quesito 3 da consulta.

  11. o Tribunal “a quo”, parece, ter acentuado a necessidade de determinar com rigor o momento em que ocorreu a isquemia, o que, pelo relator da consulta técnico-científica e médicos que prestaram depoimento foi perentoriamente afirmado não ser possível fazer.

  12. no entanto, a indeterminação da hora não obsta a que seja apurada a existência de violação de deveres, designadamente se foram cumpridos procedimentos adequados a evitar o desenvolvimento de um episódio de isquemia e prevenir a ocorrência de uma gangrena, como veio ocorrer.

  13. o lapso ou janela temporal que existe entre a ocorrência do evento embólico e a gangrena dos tecidos, é indicado pelo Exmo. Relator e médicos que testemunharam como superior a 5 horas. (gravação de 25/06/2019 - Relator A., hora e minuto 3:40:17 e seguintes e testemunha A. minuto 12:24).

  14. durante o processo que se desenrola desde a isquemia até à gangrena, foi suficientemente esclarecido pelo Exmo. Relator e testemunhas que ocorrem sinais, que apelidaram de P´s, que se manifestam de diversas formas, designadamente dor, redução da sensibilidade (parestesias) palidez.

  15. estando a doente internada no estabelecimento hospitalar da Recorrente, sujeita a vigilância e tratamento especializado, não é normal que durante, pelo menos, 5 horas não tenha sido diagnosticado o episódio de isquemia que ocorreu.

  16. sendo certo que, efectivamente se encontram registados no diário clínico e notas de enfermagem dor, formigueiro, diminuição de sensibilidade, S) tais circunstâncias, em especial, a omissão de exames complementares para apurar a origem da dor ou diminuição de sensibilidade, fundamentam as conclusões da consulta técnico-científica.

  17. existindo, apenas, o registo da realização de um Exame Neurológico Sumário (ENS) que o Exmo. Relator da Consulta qualifica como incongruente com conter a menção de “sem alterações” quando a existência de “dores e sensação de falta de sensibilidade” são, por si só, alterações.

  18. censurando a actuação de tal médica por tal incongruência e, em especial, pela inexistência de exames físicos que se impunham como obrigatórios, designadamente apalpação dos pulsos, o que é, igualmente, afirmado pelas testemunhas A. (acima transcrito hora e minuto 4:35:33) e A. (acima transcrito minuto 54:42) V) pelo que o registo das referidas evidências pelas 5h e o deficiente procedimento que foi usado levam o Exmo. Relator a localizar o evento da isquemia nesse momento.

  19. não obstante, pelas 8h 30 m registam-se novas evidências de isquemia, designadamente “dores nos membros inferiores e falta de sensibilidade” e, também, não é implementado qualquer procedimento.

  20. só pelas 11h 30 m com a apresentação de um membro “muito “cianosado” é chamada a urgência de cirurgia, cfr. notas de enfermagem, Y) nesse momento, é diagnosticada uma isquemia aguda num estado muito avançado, com mais de 5 horas e poucas possibilidades de reversibilidade, cfr. depoimento do médico assistente acima transcrito minuto 12: 24.

  21. ou seja, existe uma demonstração inequívoca de que a doente esteve um longo período de tempo sem qualquer acompanhamento, em especial sem o acompanhamento que se impunha perante os sinais que apresentou, seja, às 0h:30m, às 5h ou às 8h 30m.

    AA) mesmo em casa a doente teria a preocupação de quem a acompanhasse para encontrar as causas para as queixas de dor, formigueiro ou falta de sensibilidade, pelo que maiores cuidados se...

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