Acórdão nº 8/21 de Tribunal Constitucional (Port, 06 de Janeiro de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Pedro Machete
Data da Resolução06 de Janeiro de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 8/2021

Processo n.º 863/18

2.ª Secção

Relator: Conselheiro Pedro Machete

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., interpôs o primeiro recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), do despacho Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto – Juiz – 6, que, com fundamento na violação dos artigos 20, n.º 1, e 13.º, n.º 2, da Constituição, recusou aplicação à norma do artigo 248.º, n.º 4, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), «na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram suficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de insolvências e do incidente de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica».

2. Admitido o recurso e subidos os autos, foram as partes notificadas para alegar.

Só o Ministério Público apresentou alegações, tendo, a final, formulado as seguintes conclusões:

«1.ª) Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, al. a), e n.º [3], da Constituição da República Portuguesa e arts. 70.º, n.º 1, al. a), 72.º nº 1 a) e n.º 3, ambos da LOFPTC, “do douto despacho de 17 de dezembro de 2018, proferido nos autos à margem referenciados [proc. n.º 694/12.4TJPRT, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto / Instância Local Cível do Porto – Juiz 6 (Insolvência pessoa singular (Apresentação), fls. 228 a 230] onde se decidiu não aplicar a norma prevista no artº 248º, nº 4 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, considerando que tal norma padece de inconstitucionalidade material por violação dos art.ºs 20º nº 1 e 13º nº 2 da Constituição da República Portuguesa”.

2.ª) O sentido normativo imputado à norma jurídica enunciada no n.º 4 do artigo 248.º do CIRE pelo despacho recorrido, tem por efeito privar os membros da categoria legal de “devedores que obtiveram a exoneração do passivo restante...”, dos direitos fundamentais de acesso aos tribunais e ao patrocínio judiciário que para tanto seja necessário, sem embargo decorrente da insuficiência de meios económicos, através das pertinentes “modalidades” da lei concretizadora desses direitos fundamentais, que visa “assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos (…) a defesa dos seus direitos” [RADT, arts. 1.º, n.º 1, e 16.º, n.º 1, alínea a)].

3.ª) E não decorre da lei justificação material e constitucionalmente adequada para a emanação desta restrição legal (Constituição, art. 18.º, n.º 2).

4.ª) Nestes termos, por privação, desprovida de justificação material e constitucionalmente adequada para o efeito, do direito fundamental de “todos” terem acesso aos tribunais, e ao patrocínio judiciário que para tanto seja necessário, em ordem à defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, sem embargo decorrente de insuficiência de meios económicos, concorre violação do princípio da universalidade dos direitos fundamentais consignados na Constituição (arts. 12.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, e 20.º, n.ºs 1 e 2).

5.ª) Por outra parte, do sentido normativo imputado à norma jurídica em apreço no despacho recorrido, decorre que os “devedores que obtiveram a exoneração do passivo restante…”, não obstante se poderem encontrar em situação de “insuficiência de meios económicos”, estão legalmente impedidos de aceder ao regime do apoio judiciário e assim, nomeadamente, de virem a beneficiar da “dispensa da taxa de justiça e demais encargos do processo e da nomeação e pagamento da compensação de patrono”.

6.ª) Deste modo, é legal e praticamente comprometido o exercício do direito de ação judicial, para defesa dos respetivos direitos e interesses, sem embargo decorrente de insuficiência de meios económicos dos interessados.

7.ª) Portanto, tomada a mesma questão de outro ponto de vista, o sentido normativo imputado à norma jurídica enunciada no n.º 4 do artigo 248.º do CIRE, consubstancia uma norma especial, veiculando a discriminação de tratamento dos “devedores que obtiveram a exoneração do passivo restante…”, face à generalidade dos demais interessados, na medida em define um âmbito pessoal de aplicação da lei recortado com base em critério que tem cariz meramente subjetivo.

8.ª) Importa recordar, a este propósito, a linha jurisprudencial assente sobre o ponto, desde os primórdios da justiça constitucional: “O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio, ou seja, proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes” (acórdão n.º 39/88, proc. n.º 136/85, de 9 de fevereiro, do Tribunal Constitucional – 2.ª secção).

9.ª) Por outra parte, não decorre da lei justificação material e constitucionalmente adequada para a emanação desta restrição legal (Constituição, art. 18.º, n.º 2).

10.ª) Nestes termos, o sentido normativo imputado à norma jurídica enunciada no n.º 4 do artigo 248.º do CIRE, consubstancia uma norma especial, veiculando a discriminação de tratamento da categoria legal dos “devedores que obtiveram a exoneração do passivo restante…”, face à generalidade dos demais interessados, na medida em que define um âmbito pessoal de aplicação da lei recortada com base em critério que tem cariz meramente subjetivo, desprovido de justificação material e constitucionalmente adequada, concorrendo assim violação do princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio (Constituição, arts. 13.º, n.ºs 1 e 2, e 18.º, n.º 2).»

3. Em virtude da cessação de funções da primitiva relatora, foram os autos objeto de redistribuição.

Por estar em causa questão de constitucionalidade idêntica à que é objeto do Processo n.º 665/18, pendente nesta 2.ª Secção, o relator determinou que os presentes autos ficassem a aguardar a prolação de decisão naquele processo. Tal veio a acontecer por via do Acórdão n.º 489/2020, já transitado (e que pode ser acedido, assim como os demais adiante citados, a partir da ligação https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

4. Como se referiu no citado Acórdão n.º 489/2020, «o sentido normativo aqui questionado encontra-se contido no n.º 4 do artigo 248.º do CIRE, o qual comporta disciplina específica em matéria de proteção jurídica no âmbito do processo de insolvência. A sua compreensão e alcance não dispensa, porém, a convocação de outros elementos do sistema normativo em que se enquadra, designadamente aqueles que definem a responsabilidade por custas no âmbito do processo de insolvência, na sua globalidade, abrangendo o processo principal e os seus incidentes, com destaque para o procedimento de exoneração».

Importa, então, começar por atentar no enunciado do artigo 248.º e, bem assim, dos artigos 240.º, n.º 1, 303.º e 304.º...

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