Acórdão nº 2004/08.6TVLSB.L2.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 10 de Novembro de 2020

Magistrado ResponsávelJOSÉ RAINHO
Data da Resolução10 de Novembro de 2020
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Processo n.º 2004/08.6TVLSB.L2.S1 Revista Tribunal recorrido: Tribunal da Relação de Lisboa + Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção): I - RELATÓRIO Cervejaria Petrópolis, S.A.

intentou oportunamente (10 de julho de 2008), perante o Tribunal Judicial da Comarca de …, ação especial de revisão e confirmação de sentença arbitral estrangeira contra AA, pretendendo que fosse confirmada a sentença arbitral de 10 de dezembro de 2007 proferida no Brasil pelo Tribunal Arbitral do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara do Comércio Brasil-Canadá, de modo a ser-lhe conferida força executiva ao abrigo da Convenção de Nova Iorque de 10 de Junho de 1958 sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras.

Alegou para o efeito que pela referida sentença foi o Requerido condenado a pagar à Requerente as quantias indicadas no artigo 1º da petição inicial, e que a sentença foi proferida ao abrigo do convencionado entre as partes, que firmaram termo e compromisso arbitral. Mais disse que a decisão de reconhecimento da sentença não conduz a resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português e que preenche os requisitos do artigo I da dita Convenção de Nova Iorque, a que Portugal aderiu oportunamente.

O Requerido deduziu oposição, concluindo pelo indeferimento do pedido.

Entre o mais que já não está em causa, sustentou que o pretendido reconhecimento seria contrário à ordem pública internacional do Estado Português, por isso que a condenação decretada pela decisão revidenda não corresponde a qualquer ato ilícito por si praticado nem a qualquer dano sofrido pela Requerente, antes se traduzindo na imposição de uma autêntica pena à margem do dano. Na realidade, afirmou o Requerido, a cláusula ao abrigo da qual foi proferida a condenação tem um teor punitivo, à imagem dos chamados punitive damages do direito americano, sendo, desse modo, inadmissível e nula à luz do direito português.

O Ministério Público pronunciou-se no sentido de que a sentença revidenda não contende com a ordem pública internacional do Estado Português.

O Requerido fez juntar ao processo quatro pareceres da autoria dos Senhores Professores de Direito BB, CC, DD e EE, e FF, que se pronunciam no sentido da tese que defende e em cuja bondade se louva.

A Requerente fez juntar ao processo dois pareceres da autoria dos Senhores Professores de Direito GG e HH, que se pronunciam no sentido da tese que defende e em cuja bondade se louva.

A final veio a ser proferida sentença onde, no que para aqui importa, se decidiu o seguinte: “(...) o Tribunal julga improcedente a matéria deduzida em sede de contestação (por referência ao disposto no artigo V, n.º 1, al. e), e n.º 2, al. b), da Convenção de Nova Iorque) e totalmente procedente esta ação, por provada; e, em consequência, confirma a sentença proferida pelo Tribunal Arbitral do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá de 10 de dezembro de 2007 (…), conferindo-lhe força executiva nos termos da Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, de 10 de junho de 1958 (…)”.

Inconformado com o assim decidido, apelou o Requerido.

Fê-lo sem êxito, pois que a Relação de Lisboa manteve a sentença.

Mantendo-se inconformado, pede o Requerido revista.

Introduziu o recurso sob o figurino da revista excecional.

A competente formação admitiu o recurso assim interposto.

Cumpre pois conhecer do seu objeto.

+ São as seguintes as conclusões que o Recorrente extrai da sua alegação (não se transcrevem as conclusões 1 a 20, que se reportam à admissibilidade da revista e aos fundamentos da sua admissão a título excecional, que é assunto já ultrapassado): A DECISÃO REVIDENDA 21. A DECISÃO REVIDENDA condenou o Recorrente a pagar à Recorrida o seguinte: a. Uma cláusula penal no valor de USD 25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de dólares americanos); b. R$ 300.000,00 (trezentos mil reais), a título de honorários de advogado, e 20% de todos os custos e despesas da arbitragem, de modo a que Recorrente e Recorrida suportassem 70% e 30% do total, respetivamente; c. Tudo acrescido de juros de mora mensais de 1% até efetivo pagamento.

22. O seu reconhecimento não passa no crivo do art.º 980 f) do CPC e deve ser recusado, de acordo com art.ºs V n.º 2 al. b) da CONVENÇÃO, 56 n.º 1 al. b) da LAV (a entender-se que esta é aplicável ao caso) e 22 e 280 n.º 2 do CC, porque o seu resultado, constituiria uma afronta inédita à ordem pública internacional do Estado português, como adiante se detalhará.

Arguição de nulidade: 23. Antes dessa análise, contudo, de acordo com o disposto no art.º 615 n.º 1 d), por remissão do art.º 666 n.º 1, importa arguir a nulidade do ACÓRDÃO, na medida em que ele incorreu numa omissão de pronúncia sobre duas questões, suscitadas no recurso da SENTENÇA por ele decidido e que são de uma importância determinante na boa decisão da causa: a. Por um lado (páginas 23 e 26 das alegações desse recurso), a consagração na DECISÃO REVIDENDA, da assunção pela Recorrida da natureza puramente punitiva da cláusula, ao peticionar a condenação do Recorrente no seu pagamento, na ação arbitral, de forma absolutamente independente do pedido de condenação do mesmo numa indemnização por danos; b. Por outro (conclusão 33 desse recurso), a inconstitucionalidade da SENTENÇA e do reconhecimento da DECISÃO REVIDENDA, por violação dos art.ºs 18 n.º 2, 62 n.º 1 e 266 n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

O epicentro da causa: 24. O conceito de ordem pública internacional do Estado português afigura-se como o elemento chave para a decisão da causa. A sua violação, nascida da consagração do resultado que seria produzido pelo reconhecimento da DECISÃO REVIDENDA, é o factor axial para a procedência deste recurso e para a boa decisão da causa.

25. Aquele conceito foi objeto de análise no supra invocado Acórdão de 14/03/2017 do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, que, por ter sido de uma minúcia primorosa, amplamente se cita no presente âmbito destas alegações.

26. A esta luz, o foco da causa está em duas ideias fundamentais: a. A tomada de decisão do reconhecimento é centrada no seu resultado – conforme art.ºs 980 f), V n.º 2 al. b) da CONVENÇÃO e 56 n.º 1 al. b) da LAV; b. A ordem jurídica nacional indexa necessariamente a indemnização ao dano, proibindo, pois, os punitive damages – conforme, sobretudo e sem prejuízo das demais normas que adiante se verão, o disposto no art.º 811 n.º 3 do CC.

Radiografia do ACÓRDÃO: Admissibilidade na apreciação da DECISÃO REVIDENDA: 27. Sendo certo que, como dito na página 13 do ACÓRDÃO, o julgador não pode imiscuir-se no mérito da sentença a rever, o reconhecimento exige, para ser rigoroso no aquilatar do seu resultado e como é ensinado no referido Acórdão de 14/03/2017 desse SUPREMO TRIBUNAL, uma avaliação da sentença arbitral que aprecia, capaz de permitir apurar, não só o decidido, mas também porque e como foi decidido.

A natureza da cláusula em crise: 28. O ACÓRDÃO não o fez, na medida em que: a. Se conformou com uma interpretação achada pelo dispositivo da DECISÃO REVIDENDA, que aceitou, como se a isso fosse obrigado, sem produzir o imperativo juízo crítico; b. E se acantonou na ideia de que a DECISÃO REVIDENDA qualificou a cláusula penal em causa como dotada de uma dupla função, ressarcitória e sancionatória, sem relevar todos os sintomas que dela constam e revelam o contrário, isto é, uma natureza puramente punitiva: i. De acordo com a sua redação expressa, o imediatismo da sua aplicação, inequivocamente sintomático de que a mesma não depende da eclosão de qualquer dano, vivendo totalmente separada dele e dele prescindindo também; ii. A secessão a esta cláusula e o dano é bastamente evidenciado no ponto V da página 8 da DECISÃO REVIDENDA e resulta da formulação adotada pela Recorrida, na ação arbitral, de dois pedidos de condenação do Recorrente que são distintos: um atinente pagamento da cláusula penal em causa e outro, distinto e separado, de indemnização por danos; iii. E a explicação da lavra e do objetivo da cláusula, pela interpretação autêntica do representante da Recorrida citado na pág. 43 da DECISÃO REVIDENDA, ao intitular a cláusula como multa e também, ao explicar que ela teve por mote impedir o Recorrente de incumprir o contrato celebrado entre as partes.

Proibição de cláusulas com esta natureza: 29. A cláusula é, pois, puramente punitiva, embora, por vezes, se apresente disfarçada de indemnização pré-fixada, porque destinada a coagir e punir pela opípara quantia fixada.

30. Mas cláusula travestida não pode ser admitida, atenta a sua vera e confessada natureza estritamente punitiva.

31. E diga o que disser em contrário o tribunal arbitral.

32. Em conformidade com o Acórdão de 14/03/2017 desse SUPREMO TRIBUNAL, esta índole que captura e caracteriza a cláusula é inequivocamente proibida e rechaçada por uma ampla estrutura de princípios e valores fundamentais do ordenamento jurídico português, bem como das normas legais que deles são emanadas: a. Os princípios da justiça, proporcionalidade e equidade; b. Os art.ºs 18 n.º 2, 62 n.º 1 e 266 n.º 2 da Constituição da República Portuguesa; c. A necessária indexação entre a indemnização e o dano que, como dito, é imposta pelo art.º 811 n.º 3 do CC; d. Para além desta regra e ainda no mesmo plano, os art.ºs 437.º n.º 1, 562, 564, 566 n.º 1, 802 n.º 2 e 812 n.º 1 do CC.

33. As dúvidas manifestadas na página 17 do ACÓRDÃO não têm, deste modo, espelho na lei e além do mais, a ordem pública internacional do Estado português não pode, sob pena de não passar do limiar do óbvio, ser circunscrita a um objeto imune a qualquer divergência doutrinária, como nessa página fez o ACÓRDÃO.

Aqui uma vez mais se remete para o detalhe colocado nas presentes alegações.

O resultado do reconhecimento: 34. Como dito em fidelidade com o disposto nos art.ºs 980 f), V n.º 2 al. b) da CONVENÇÃO e 56 n.º 1 al. b) da...

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