Acórdão nº 924/20.9BELSB de Tribunal Central Administrativo Sul, 24 de Setembro de 2020

Magistrado ResponsávelPEDRO NUNO FIGUEIREDO
Data da Resolução24 de Setembro de 2020
EmissorTribunal Central Administrativo Sul

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul I. RELATÓRIO S….., nacional da Guiné-Conacri, intentou ação administrativa urgente contra o Ministério da Administração Interna – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, impugnando a decisão da Diretora Nacional do SEF datada de 28/02/2020, que considerou inadmissível o pedido de proteção internacional por si apresentado e consequente transferência para a Bélgica, pedindo a sua revogação e consequente suspensão da decisão de transferência. Mais requereu, subsidiariamente, que seja admitido o pedido de proteção internacional por si efetuado.

Alega, em síntese, que o risco de refoulement faz perigar a sua vida e integridade e que a decisão impugnada é omissa relativamente à existência de eventuais falhas sistémicas na Bélgica.

Citada, a entidade requerida apresentou resposta, concluindo pela improcedência da ação e respetivos pedidos.

Por sentença datada de 29/06/2020, o TAC de Lisboa julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu a entidade requerida dos pedidos.

Inconformado com esta decisão, o autor interpôs recurso, terminando as respetivas alegações com a formulação das conclusões que de seguida se transcrevem: “i- A decisão do R., datada de 28/02/2020, enferma de défice instrutório, uma vez que a mesma é omissa quanto à obrigação de avaliar e analisar a eventual impossibilidade em proceder à transferência para a Bélgica, nos termos do art.º 3.º, n.º 2, 2.º parágrafo, do Reg. n.º 604/2013, de 26-06, pelo que deve ser anulada; ii- O Tribunal a quo, na douta Sentença proferida, ao decidir pela absolvição do R., cometeu um erro de julgamento tanto no sentido em que decidiu, como na fundamentação da decisão, uma vez que deveria ter decretado a anulabilidade total do ato administrativo impugnado; iii- Existe um risco sério, devidamente fundamentado, de sujeição a tratamentos contrários ao artigo 3.º CEDH na Bélgica, nomeadamente um risco de refoulement para a Guiné-Conacri, país onde o A. pode ser alvo, de forma individualizada, de graves violações dos direitos humanos.” A entidade requerida não apresentou contra-alegações.

* Perante as conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre aferir do erro de julgamento da sentença recorrida, ao decidir que a entidade requerida não tinha a obrigação de avaliar e analisar a eventual impossibilidade de proceder à transferência do recorrente para a Bélgica.

Dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.

* II. FUNDAMENTOS II.1 DECISÃO DE FACTO Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos: 1. Em 05.09.2017, o A. foi identificado pelas autoridades competentes na Bélgica, aí tendo sido recolhidas as suas impressões digitais (cf. cópia do “EURODAC – Fingerprint Form” com a referência ….. junta a fls. 65 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

  1. Em 26.12.2019, o A. apresentou um pedido de protecção internacional junto do R. (cf. declaração comprovativa de apresentação do pedido de protecção internacional junta a fls. 75 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

  2. Em 28.01.2020, o A. prestou declarações junto do SEF, cujo auto se reproduz parcialmente infra: (…) (cf. auto de declarações junto a fls. 77-87 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

  3. A final do auto de declarações a que se alude no ponto anterior, consta um quadro com a designação de “Relatório”, segundo o qual: (cf. cópia do auto de declarações junta a fls. 77-87 dos autos no SITAF).

  4. Em 04.02.2020, o A. apresentou um requerimento junto do R., cujo teor se transcreve parcialmente infra: 1. Por lapso ou por motivo desconhecido ao Requerente, o lugar de nascimento do mesmo foi erradamente registado como natural de Momou, Guiné-Conakry, sendo que ele é natural de Conakry, capital do país anteriormente referido.

  5. Motivo pelo qual se requer a Vª Ex.ª seja retificado o lugar de nascimento do Requerente.

  6. O Requerente discorda do projeto de decisão emitido por Vª Exª, continua a defender a admissibilidade do seu pedido de proteção internacional, e não pode deixar de reiterar os factos seguintes, já referidos durante a entrevista de 28/01/2020; a. O requerente fugiu da Guiné-Conakry aos 14 anos, na minoria de idade sendo que, antes disso, com 11 anos de idade, foi obrigado a abandonar a escola, e foi ainda vítima de trabalho infantil.

    b. As condições de trabalho ilegais e violentas às quais foi sujeito deixaram no Requerente uma marca profunda, cujas consequências psicológicas são gravíssimas e dificilmente reversíveis.

    c. Acresce que, durante aqueles anos, o pai e progenitor do Requerente abandonou a família e desapareceu, deixando esta última em situação muito precária e com dificuldades inclusive para se alimentar.

    d. Por isso também teve de começar a trabalhar e inclusivamente abandonar a casa onde morava a mãe e os restantes irmãos.

    e. Assim, quando o Requerente decidiu fugir da Guiné-Conakry, tinha ainda 14 anos, e fê-lo guiado pelo desespero e pelo medo, sendo que terá alegadamente cometido um roubo, de um valor pouco expressivo, para poder fugir do país.

    f. Importa relembrar que a idade de imputabilidade penal em Portugal é de 16 anos, e que, na nossa ordem jurídica, são os titulares das responsabilidades parentais os que respondem em primeiro lugar quando um menor comete um delito ou um ato infracional.

    g. O Requerente, apesar de ser menor de idade, foi objeto de uma queixa-crime na Guiné-Conakry, e nesta sequência, foi alegadamente emitido um “mandat d’arrêt” ou mandado de detenção, contra a sua pessoa.

    h. Perante tal circunstância, consideramos importante relembrar que o Requerente pertence à etnia Peul (ou Fula/Fulani), que como é sabido, é uma etnia maioritária no país, mas sistematicamente perseguida e atacada sob o atual governo do Dr. Alpha Condé, de etnia malinké. A perseguição contra os Peul também é notória noutros países como é o caso do Mali.

    i. Mais, os problemas da Guiné-Conakry quanto às questões relativas aos direitos humanos, a efetiva proteção dos mesmos perante as autoridades policiais, militares e judiciais, são amplamente conhecidos1.

    j. Neste sentido, sobre o Requerente impende uma ameaça concreta, uma vez que foi alvo de uma queixa-crime e de um mandado de detenção, pelo que a sua deportação para a Guiné-Conakry significaria, necessariamente, um risco muito importante de perseguição, por parte das autoridades daquele país.

    k. Porque existe um risco provável e razoável e captura e detenção sem as devidas garantias legais e/ou processuais, e eventualmente, um risco de penas privativas de liberdade não justificadas, a abusos por parte das autoridades, nomeadamente, tortura e tratos desumanos e degradantes.

    l. Situações todas elas que consubstanciam atos de perseguição, previstos no nº2 do artigo 5º da Lei 27/2008.

    m. E porque, precisamente para fugir daqueles riscos, por medo do que poderá acontecer-lhe caso regressar ao seu país, o Requerente atravessou situações muito delicadas, na Líbia, na passagem do mar Mediterrâneo, e na Itália.

  7. Ainda, o Requerente discorda de uma eventual decisão de transferência para a Bélgica, uma vez que, tal como foi alegado pelo mesmo, neste país foi proferida uma ordem de expulsão é será obrigado a abandonar o território, ou seja, enviado de volta para a Guiné-Conakry.

  8. O Requerente referiu durante a entrevista datada de 28/01/2020 que as autoridades Belgas proferiram decisão mencionada no parágrafo anterior com base em critérios, no mínimo, discutíveis; designadamente, testes ósseos que determinaram uma idade superior àquela declarada pelo Requerente e as certidões de nascimento apresentadas pelo mesmo.

  9. O Requerente também referiu durante a entrevista, datada de 28/01/2020, que na Bélgica não lhe foi dado qualquer apoio jurídico ou legal eficaz ou em tempo útil, sendo que nem teve a possibilidade de impugnação em sede administrativa ou judicial as decisões das autoridades Belgas.

  10. E assim, o mesmo aconteceu em França, onde só através de apoios informais conseguiu evitar a indigência e a vida na rua.

  11. De resto, ressalvar apenas que, conforme alegado peio Requerente durante a entrevista, o mesmo precisou, de apoio psicológico, psiquiátrico e de assistência social durante todo o tempo em que esteve na Bélgica e em França.

  12. E portanto, continua a precisar dos mesmos cuidados em Portugal. Este apoio está a ser facultado, neste momento, pela JRS Portugal.

  13. Em suma, o Requerente preenche todas as condições para que o seu pedido de proteção internacional seja considerado admissível, apesar do disposto do art. 19.º-A da Lei 27/2008, fez um esforço autêntico para fundamentar o seu pedido, e prestou declarações coerentes, plausíveis, e não contraditórias face às informações disponíveis.

  14. E mais, o Requerente apresentou o pedido com a maior brevidade possível, logo após a sua entrada em território nacional, uma vez que, conforme foi já manifestado pelo mesmo, existe um risco provável de deportação para a Guiné-Conakry, peias autoridades Belgas.

    Termos em que se requer a procedência das presentes alegações, por provadas, e consequentemente, a admissibilidade do pedido de proteção internacional melhor Identificado em epígrafe.

    (cf. cópia do requerimento junta a fls. 94-97 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

  15. Em 11.02.2020, o SEF remeteu um pedido de retoma a cargo do A. às autoridades belgas, ao abrigo do 18.º, n.º 1, alínea d), do...

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