Acórdão nº 418/20 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Julho de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Pedro Machete
Data da Resolução14 de Julho de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 418/2020

Processo n.º 390/20

2.ª Secção

Relator: Conselheiro Pedro Machete

Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. A., notificado da Decisão Sumária n.º 355/2020, que determinou o não conhecimento do recurso de constitucionalidade por si interposto ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), vem reclamar para a conferência nos termos do artigo 78.º-A, n.º 3, da mesma Lei.

2. O reclamante, recorrente nos presentes autos, em que é recorrido o Ministério Público, inconformado com o acórdão de 10 de outubro de 2019, proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, que negou provimento ao recurso por si interposto da decisão de declarar a perda do seu mandato, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo.

Admitida a revista, o Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 2 de abril de 2020, negou provimento ao recurso.

Deste acórdão foi interposto o presente recurso de constitucionalidade, tendo em vista a apreciação da inconstitucionalidade dos artigos 8.º, nº 2, da Lei 27/96, de 1 de agosto, 4.º, alínea b), subalínea iv, da Lei nº 29/87, de 30 de junho, e 69º do Código de Procedimento Administrativos quando interpretados no sentido de que:

i) Pode ser decretada a perda de mandato de autarca democraticamente eleito «sem que seja feita a prova do facto de ter visado (dolo específico) a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem, ao intervir em procedimento administrativo, ato ou contrato de direito público ou privado relativamente ao qual se verifique impedimento;

ii) Existe uma presunção absoluta e inilidível de parcialidade e culpa grave decorrente da mera prática pelo autarca de ato em relação ao qual se verifique impedimento, o que, só por si, determina a proporcionalidade e adequação da sanção da perda de mandato.

3. Na decisão ora reclamada entendeu-se não tomar conhecimento do recurso, quanto à primeira questão, por inutilidade do recurso, em virtude de o critério normativo sindicado não coincidir com o critério normativo aplicado pela decisão recorrida; e, subsidiariamente, por inidoneidade do objeto do recurso, uma vez que tal objeto se prende exclusivamente com a eventual inconstitucionalidade da decisão recorrida.

Relativamente à segunda questão, entendeu-se igualmente não tomar conhecimento do recurso, por inutilidade.

4. O reclamante não se conforma com o assim decidido, procurando na presente reclamação refutar as razões que fundaram a não verificação dos pressupostos de conhecimento do recurso de constitucionalidade (cfr. fls. 17-33).

O Ministério Público, ora reclamado, pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação (cf. fls. 35-41).

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

§ 1.º Quanto à primeira questão

5. Na reclamação ora em análise, o reclamante insiste que o tribunal a quo aplicou a norma sindicada, sustentando que a questão por si enunciada tem correspondência com o objeto do recurso e com o critério normativo adotado pelo tribunal recorrido; acrescenta não pretender a fiscalização da correção da própria decisão recorrida face ao direito infraconstitucional, nomeadamente no que se refere à subsunção da situação dos autos ao tipo subjetivo ilícito que lhe é imputado, concluindo que, por estas razões, deve ser conhecido o objeto do recurso nesta parte.

5.1. Conforme resulta claramente da decisão recorrida (acessível a partir de http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/e465bba2261e771180258553004d4e5b?OpenDocument), o tribunal a quo, remetendo para o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul) a cuja fundamentação aderiu (e que transcreveu em parte), considerou que um dos pressupostos necessários à declaração da perda de mandato em causa nos autos era que «o Réu tenha intervindo em procedimento contratual relativamente ao qual se constate a existência de um impedimento legal que obstasse a essa intervenção (artigos 7° e 8°, n° 2 da Lei n° 27/96)» e que tal intervenção «tenha sido efetuada com vista a proporcionar alguma situação de vantagem para a empresa STRUALBI (artigo 8°, n° 2, última parte da Lei n° 27/96)», tendo concluído que o referido acórdão do TCA Sul, «seguindo esta linha de raciocínio julgou verificados todos os pressupostos da perda de mandato, nos termos que dele constam» (cf. páginas 11 e 12 do acórdão recorrido).

Por outro lado, ao analisar tais pressupostos, tendo por referência a lei atualmente em vigor (a Lei n.º 52/2019, de 31 de julho), o tribunal recorrido, a respeito dos requisitos/pressupostos necessários à declaração da perda de mandato, voltou a salientar ser exigível: «(ii) que o réu tenha intervindo em procedimento contratual relativamente ao qual se constate a existência de um impedimento legal que obstasse a essa intervenção (artºs 7º, 8º, nº 2 da Lei nº 27/96);» e «(iv) que a mesma tenha sido efetuada com vista a proporcionar alguma situação de vantagem para a empresa STRUALBI (artº 8º, nº 2, última parte da Lei 27/96)». De novo conclui que tais requisitos se mostravam todos provados, remetendo, nessa parte, para o que havia sido consignado na decisão proferida em 1ª instância, acolhida pelo acórdão do TCA Sul, e que seguidamente transcreveu, na parte relevante (cf. página 14, ibidem).

Ora, nessa decisão, transcrita no acórdão recorrido, é expressamente analisado o pressuposto «atinente à situação de vantagem proporcionada à empresa STRUALBI», afirmando-se, a propósito, o seguinte:

«[V]erificando-se a intervenção ilegal do Réu nos procedimentos contratuais em causa, cumpre apurar se o mesmo visou a obtenção de alguma “vantagem patrimonial para si ou para outrem” (conforme exigido pelo artigo 8°, n° 2 da Lei n° 27/96), o que “pressupõe a existência de uma intenção dirigida a um fim específico... Daí deriva que essa intervenção, além de ser antijurídica, terá de ser dolosa (dolo direto)’’ (assim o frisa o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão proferido no processo n° 0248/04, de 22-04-2004, disponível em www.dgsi.pt (cf. página 17, ibidem).

Ou seja, segundo o tribunal a quo, a verificação deste pressuposto exige a demonstração da «existência de uma intenção dirigida a um fim específico» (itálico acrescentado), implicando uma conduta dolosa, na modalidade de dolo direto.

Seguidamente, tendo por base estes pressupostos, foi efetuada a apreciação do caso concreto, concluindo-se no sentido de os mesmos se deverem ter por verificados.

5.2. O reclamante argumenta que a decisão ora reclamada atribuiu ao «sintagma “prova dos factos”, aposto na enunciação sintética da questão de constitucionalidade» em análise, o sentido de que o recorrente pretenderia discutir a correção do julgamento efetuado pelo tribunal a quo do facto relativo ao dolo específico exigido pelo artigo 8.º nº 2, da Lei 27/96 – a intenção de obter uma vantagem patrimonial (“visando a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem”) –, sentido esse que nunca lhe atribuiu. Segundo o reclamante, o sentido de tal expressão por si utilizada tem que ver com a omissão absoluta do facto na descrição da matéria de facto (provada e não provada), e não com a circunstância de o tribunal ter julgado tal facto correta ou incorretamente (o facto em causa não existe no processo).

Todavia, não foi esse o entendimento da decisão reclamada.

Conforme resulta da respetiva fundamentação, salientou-se que, ao analisar os pressupostos de que depende a perda de mandato, designadamente o respeitante à “intenção de obter uma vantagem patrimonial”, previsto no artigo 8.º, n.º 2, da Lei 27/96, o tribunal recorrido considerou que a verificação deste pressuposto exige a demonstração da «existência de uma intenção dirigida a um fim específico», implicando uma conduta dolosa, na modalidade de dolo direto e que, tendo efetuado a apreciação do caso concreto, concluiu que tal pressuposto se encontrava verificado (cf. pontos 5.1 e 5.2 da decisão reclamada).

E foi por essa razão que se considerou, na mesma decisão:

«[O] tribunal a quo não aplicou, enquanto ratio decidendi, qualquer critério normativo extraído dos aludidos preceitos no sentido de poder ser decretada a perda de mandato sem que seja feita a prova do facto de um autarca eleito ter visado a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem. Bem pelo contrário: no critério normativo adotado pela decisão recorrida, um dos pressupostos tidos por necessários para a perda de mandato foi justamente a necessidade de verificar uma intenção dirigida a um fim específico, como foi in casu a obtenção de alguma vantagem patrimonial para si ou para outrem.»

5.3. Aliás, o reclamante reconhece que o tribunal recorrido «postula que a sanção da perda de mandato assenta, entre outros, no requisito da demonstração e prova do dolo específico da obtenção da vantagem e, portanto, proclama a norma numa interpretação cuja conformidade à Lei Fundamental não suscita reparo».

Simplesmente, na perspetiva do próprio reclamante, aquele tribunal teria aplicado a referida norma «com o sentido muito diverso e mesmo diametralmente oposto, segundo o qual a norma fica satisfeita e preenchida através do simples dolo na intervenção ilícita em procedimento administrativo, assumido como equivalente ao dolo específico (intenção de obter uma vantagem patrimonial)». Concretizando, o reclamante salienta que, no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade duma norma, não releva o sentido em que o Tribunal que a aplicou afirma tê-la aplicado, mas o sentido em que...

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