Acórdão nº 1733/19.3BELSB de Tribunal Central Administrativo Sul, 13 de Fevereiro de 2020

Magistrado ResponsávelPAULO PEREIRA GOUVEIA
Data da Resolução13 de Fevereiro de 2020
EmissorTribunal Central Administrativo Sul

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul I – RELATÓRIO A………., apresentando-se como nacional da Gâmbia, atualmente ao cuidado do Conselho Português para os Refugiados, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de LISBOA processo administrativo impugnatório urgente contra MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA.

A pretensão formulada perante o tribunal a quo foi a seguinte: - Anulação da decisão que lhe indeferiu o pedido de proteção internacional e determinou a retoma a cargo na Itália, proferida pela Diretora Nacional do SEF, e a condenação da entidade intimada à admissão do pedido de asilo ou admissão do pedido de proteção internacional.

Por sentença, o tribunal a quo decidiu absolver do pedido o réu.

* Inconformado, o autor interpôs o presente recurso de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação o seguinte quadro conclusivo: A. A Lei n°. 27/2008, de 30 de Junho estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária com vista à concessão dos estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária, transpondo para a ordem jurídica interna as Diretivas n°. 2004/83/CE, do Conselho, de 29 de Abril e n° 2005/85/CE, do Conselho, de 01 de Dezembro, ou seja, que existe um procedimento comum e um procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional ou procedimento Dublin, previsto nos Artigos 36°. a 40°. da Lei do Asilo, quando se considere que a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional pertence a outro Estado membro, de acordo com o previsto no Regulamento (UE) n°. 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Jjunho que suspende o prazo de decisão, conforme Artº. 39º. da Lei 27/2008, de 30 de junho e, uma vez aceite a responsabilidade pelo Estado requerido, deverá a Diretora Nacional do SEF proferir decisão de inadmissibilidade do pedido e ordenar a transferência do interessado, conforme disposto nos seus nº. 2 do Artº. 37°. e alínea a) do nº. 1 do Artº. 19°-A.

B.

Ora na falta de resposta de Itália, que nunca aceitou a retoma a cargo do ora Recorrente, incumbia ao SEF aceitar e processar o pedido de proteção do ora Recorrente, pois, nos termos do parágrafo 2 do nº. 2 do Artº. 3°. do Regulamento, quando se verifiquem deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e estas sejam de tal modo evidentes que os Estados-membros não possam ignorá-las, os Estados não podem proceder a transferências para esses Estados com sistemas em colapso ou com dificuldades, o que é, manifestamente, o caso do ora Recorrente.

  1. O Estado português deveria, assim, ter utilizado, no caso concreto em apreço e de acordo com decisões já proferidas nesse sentido, da prerrogativa que lhe é concedida ao abrigo do disposto no Artº. 17° do Regulamento de Dublin, que dispõe que “… cada Estado-Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força de critérios definidos no presente regulamento”, que constitui uma cláusula discricionária, em derrogação do disposto no art 3°, n° 1 do mesmo Regulamento e que faculta ao Estado o poder de decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por uni apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no referido Regulamento.

  2. Os Estados que pretendam executar transferências estão obrigados a não transferir requerentes de asilo para os Estados responsáveis de acordo com os critérios do Regulamento quando, nesses Estados, se verifiquem deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes, que impliquem o risco de ser desrespeitado o direito absoluto dos requerentes a não ser sujeitos a penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, impondo, assim, ao Estado português, a referida cláusula de soberania, prevista no Art. 3°. do Regulamento, um juízo de prognose relativamente à situação a que ora Recorrente ficará exposto após a transferência Dublin, caso esta ocorra (nesse sentido a decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia, nos processos n°. C-411/10 e n°. C-493/10, conforme enunciado no parágrafo 2º. do nº. 2 do Art 3°. do Regulamento Dublin e reiterado no acórdão do TJUE de 19/03/2019, relativo aos processos apensos C-297/17, C-318/17, C- 319/17 e C-438/17).

  3. Devia, assim, ter o Estado português paralisado o processo de transferência, já que a transferência pode significar a sujeição do ora Recorrente a tratamento degradante ou desumano em Itália, que não tem, manifestamente, capacidade para acolher e processar em tempo útil e compatível com a dignidade devida a qualquer requerente de proteção, sendo previsível que em consequência de tal transferência o ora Recorrente vá passar anos a fio internado em campos de refugiados sem saber qual vai ser o seu destino.

    F.

    In casu, face à concreta situação alegada e provada nos autos, se indiciam claramente as falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional no Estado italiano, que implicarão para o ora Recorrente, caso seja transferido, um número indeterminado de anos de internamento noutro campo de refugiados, com sérias dúvidas quanto ao seu futuro, se de mera sobrevivência enquanto o seu processo não é analisado, por oposição a uma vida plena, livre e em segurança, sem medo de, inclusivamente, por falha de condições de análise do seu processo em Itália, se ver de repente, expulso para a Gâmbia, onde corre sério risco de ofensas à sua integridade física.

  4. A cláusula discricionária constante do Artº. 17º. desse Regulamento dispõe que “… cada Estado-Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força de critérios definidos no presente regulamento” deve servir, precisamente, para casos como o do ora Recorrente, tendo em conta que “ninguém pode ser afastado, expulso ou extraditado para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes”.

  5. Termos em que deverá ser devidamente apreciado o recurso interposto pelo Recorrente, dando-lhe o devido provimento, revogando a decisão recorrida, substituindo-a por outra que anule a decisão da Senhora Diretora Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que considerou inadmissível o pedido de proteção internacional formulado pelo ora Recorrente e determinou a sua transferência para Itália, mais condenando o SEF apreciar o pedido de proteção do ora Recorrente ou, ao menos, condenando o SEF a instruir o procedimento, com informação fidedigna atualizada sobre o funcionamento do procedimento de asilo italiano e as condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Itália.

    * Cumpridos que estão neste tribunal superior os demais trâmites processuais, vem o recurso à conferência para o seu julgamento.

    * Delimitação do objeto da apelação - questões a decidir Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal a quo, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso. Esta alegação apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de Direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

    * II – FUNDAMENTAÇÃO II.1 – FACTOS PROVADOS O tribunal a quo fixou o seguinte quadro factual: 1. O autor, nasceu a 27.01.1995, em N……., na Gâmbia, (cfr. fls. 1 e 13 do Processo Administrativo [PA]); 2. No sistema Eurodac, consta com o n.º de referência IT……., S......, datado de 15/05/2015, um pedido de proteção internacional formulado pelo autor em Itália (cfr. fls.2 do PA); 3. A 24/06/2019, o autor pediu proteção internacional ao Estado Português (cfr. fls.1 e 2ª do PA); 4. A 24/06/2019, o aqui autor prestou declarações no SEF, nas quais se pode ler o seguinte (cfr. fls. 21 a 28 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido): “[…] Sai da Gâmbia fui para o Senegal e fiquei lá cerca de 8 a 9 meses. Depois fui para o Malí, dai segui para o Burkina Faso e depois para Níger, Agadez onde estive um ano. Daquele país segui para a Líbia. Estive na Líbia cerca de 6 a 8 meses. Entrei na Itália a 16 de fevereiro de 2015. Fui primeiro para Sicília, S...... . Foi lá que pedi asilo. Depois fui transferido para BARI. A primeira vez que saí de Itália foi no dia 10 de janeiro de 2019, tinha como destino Portugal. Estava no campo de acolhimento antes de vir para Portugal, era em Bari, na cidade de Gravina. Viajei para França e fui para Espanha, fiquei em Huelva cerca de três meses para conseguir dinheiro para comer e para fazer a viagem para Lisboa. Cheguei a Lisboa no dia 22 de junho de 2019.

    […] Sai da Gâmbia por ter problemas de família. Eu perdi o meu pai e a minha mãe à nascença- Quando o meu pai morreu eu tinha já quatro irmãos mais velhos do que eu da parte do meu pai. Quando foi altura de dividir a herança não houve acordo entre nós, e eu decidi ir embora do país. […] Não quero regressar a Itália, porque não quero voltar ao campo. Desde que eu entrei em Portugal estou a ser bem tratado. Aqui estou mais tranquilo. Quero poder ficar aqui em Portugal para poder trabalhar mesmo que não seja no ofício de alfaiate que eu aprendi, mas farei outro trabalho”.

    5. A 17/07/2019 o SEF, formulou um pedido de tomada a cargo do ora autor à Itália, por registo existente no “Eurodac – Article 18 (1) b) [..]” - (cfr. fls. 33 do PA); 6. A 02/08/2019, Portugal informou as autoridades italianas que ao abrigo do artigo 25.º, n.º 1 do Regulamento (EU) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de...

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