Acórdão nº 736/19 de Tribunal Constitucional (Port, 05 de Dezembro de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Pedro Machete
Data da Resolução05 de Dezembro de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 736/2019

Processo n.º 48/19

2.ª Secção

Relator: Conselheiro Pedro Machete

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. A., recorrente nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, inconformado com o despacho proferido pelo juiz de instrução criminal que indeferiu a separação de processos por si requerida, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por decisão sumária do relator, foi rejeitado.

Inconformado, o arguido reclamou para a conferência. Por acórdão de 5 de junho de 2018, o Tribunal da Relação de Lisboa indeferiu a reclamação, confirmando a decisão reclamada.

O ora recorrente arguiu então a nulidade deste acórdão, pedido esse que foi indeferido por acórdão de 4 de dezembro de 2018.

2. É do referido acórdão de 5 de junho de 2018 que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), nos seguintes termos, no que ora releva (cf. fls. 225/v.º-227/v.º):

«I. Norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie e sua projeção no Acórdão recorrido

3. A norma resultante do artigo 310.º, n.º 1, do CPP, interpretada e aplicada no sentido de não ser admissível o recurso de despachos que decidem sobre questões prévias anteriores ao (e não constantes do) despacho instrutório.

[…]

A norma [– aqui o preceito objeto da interpretação normativa sindicada –] em causa dispõe:

“A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.”

A norma em causa, portanto, excecionando o princípio geral afirmado no artigo 399.º do CPP, fixa, apenas para certas decisões de pronúncia, um regime de irrecorribilidade - que foi exatamente o regime que o Acórdão recorrido considerou aplicável (e concretamente aplicou) a decisões prévias à decisão instrutória, quando não há (e pode nunca haver) despacho final de pronúncia.

Como se lê no Acórdão recorrido, tendo a decisão em causa (visada por recurso interposto pelo Arguido ora Recorrente) sido “sido tomada em momento anterior à decisão de pronúncia, não deixa de ser uma decisão tomada sobre uma questão prévia em sede de instrução, não podendo, por essa razão, deixar de seguir o mesmo regime de sindicabilidade da decisão instrutória de pronúncia ou não pronúncia prevista no art.º 310º, nº 1, do C.P.Penal” (cf. p. 5).

Foi, pois, com base na norma constante do citado artigo 310.º, n.º 1, do CPP, e no assinalado pressuposto normativo dele extraído, que o Acórdão ora recorrido rejeitou o recurso interposto pelo Arguido aqui Recorrente.

II. Normas e princípios constitucionais que se considera terem sido violados

3.2. A dimensão normativa do artigo 310.º, n.º 1, do CPP, acolhida e aplicada pelo Acórdão recorrido, viola, entre o mais, os direitos de defesa e de recurso do arguido e, bem assim, o princípio da presunção de inocência (artigos 20.º, n.º 1 e 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição).

[…]

3.3. Além disso, a solução normativa adaptada no Acórdão recorrido viola igualmente o princípio da legalidade em matéria penal (artigos 29.º, n.º 1 e 3, da Constituição), também com incidência processual, e o princípio da legalidade da restrição de direitos, liberdades e garantias, na dimensão de reserva de lei (artigos 18.º, n.ºs 2 e 3, e 165.º, n.º 1, alíneas b) e e), da Constituição), consagrados nos artigos 20.º, n.º 1 e 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.

[…]

III. Peças processuais em que foi suscitada a questão de (in)constitucionalidade

3.4. A questão de (in)constitucionalidade normativa sindicada no presente recurso foi suscitada nas pp. 6-8 (pontos 33-42) da reclamação para a conferência apresentada pelo Arguido aqui Recorrente a fls. 167-177, sendo reiterada nas pp. 6-10 (pontos 29-41) do requerimento posterior apresentado pelo Arguido ora Recorrente a fls...., em que foi arguida a invalidade do Acórdão recorrido (a qual foi desatendida in totum por via do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04.12.2018).

[…]»

3. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal Constitucional, foi determinado o prosseguimento do processo, tendo o recorrente apresentado alegações, que concluiu da seguinte forma:

«I. Enquadramento

A. No presente Recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do artigo 70.º, n.º 1, da LTC, está em causa a (in)constitucionalidade da norma resultante do artigo 310.º, n.º 1, do CPP, interpretada e aplicada - como foi no acórdão recorrido - no sentido de não ser admissível o recurso de despachos que decidem sobre questões prévias anteriores (e não constantes do) despacho instrutório.

II. O princípio da legalidade em matéria penal, com direta incidência processual

[…]

D. Quando a dimensão normativa extraída de um determinado preceito processual atributivo de direitos é restringida e fica aquém do que resulta da própria letra da lei (e dos direitos ou garantias do arguido por essa via reconhecidos) ou quando, na hipótese simetricamente inversa, uma norma excecional e/ou restritiva de direitos processuais é interpretada analogicamente, são verdadeiramente as garantias do arguido que saem diminuídas.

E. O artigo 310.º, n.º 1, do CPP consagra uma exceção pontual à regra da recorribilidade das decisões judiciais em processo penal (prevista no artigo 399.º do CPP), tornando inadmissível o recurso da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação deduzida pelo MP, incluindo na parte em que nessa decisão são apreciadas nulidades e outras questões prévias.

F. Se, no momento em que é apreciada nulidade ou questão prévia, ainda não tiver sido proferida decisão instrutória, não é possível nem legítimo antecipar se a mesma será de pronúncia ou de não pronúncia, ou se se verificará uma concordância entre juízos valorativos emitidos por duas magistraturas distintas (o MP e o juiz de instrução criminal), quanto à qualificação como suficientes dos indícios recolhidos na fase de inquérito.

G. Como tal, a dimensão normativa interpretada e aplicada no acórdão recorrido comporta, em face do texto do artigo 310.º, n.º 1, do CPP – em que supostamente se baseia –, uma manifesta violação do princípio da legalidade em matéria penal, na sua dimensão com incidência processual, pois amplia contra reum (e sem respaldo na letra ou no espírito da norma em causa) o âmbito de aplicação de uma norma excecional e desfavorável ao (porque restritiva de direitos do) arguido.

H. A norma do artigo 310.º, n.º 1, do CPP, interpretada e aplicada no sentido da irrecorribilidade de um despacho que aprecie questão prévia suscitada perante o tribunal, em momento anterior ao (e não constante do) despacho instrutório, viola ainda o princípio da legalidade da restrição de direitos, liberdades e garantias, na sua específica dimensão de reserva de lei, consagrado nos artigos 18.º, n.º 2 e 3, 20.º, n.º 1, 32.º, n.ºs 1 e 2, e 165.º, n.º l, alíneas b) e c), da Constituição, na medida em que restringe direitos fundamentais, como o direito ao recurso, sem respeitar a reserva de lei, redundando assim em norma materialmente inconstitucional.

[…]

III. O princípio da presunção de inocência

J. Ao considerar irrecorríveis, com base no artigo 310.º, n.º 1, do CPP, despachos que apreciem e decidam questões prévias suscitadas na fase de instrução em processo penal, em momento anterior ao despacho instrutório, e portanto num momento cm que ainda não existe decisão instrutória (desconhecendo-se, por conseguinte, se a mesma, a final, será de pronúncia ou de não pronúncia), o acórdão recorrido acolhe dimensão normativa que viola também o princípio constitucional da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição.

K. Com efeito, a dimensão normativa do artigo 310.º, n.º 1, do CPP, tal como interpretada e aplicada pelo acórdão recorrido, presume prospectivamente que a decisão instrutória que vier a ser proferida será de pronúncia, e totalmente conforme com a acusação do MP, pois é esse o pressuposto factual-processual de que depende a aplicação do regime legal aí vertido.

L. A dimensão normativa em causa subverte, desse modo, a lógica intrínseca do processo penal – que impõe uma regra de injunção de tratamento transversal a todo o processo, no sentido de o arguido se presumir inocente até ao trânsito em julgado de decisão condenatória, a qual é sempre apenas hipotética –, impondo antes uma presunção de responsabilização criminal do arguido, ao assumir, designadamente para efeitos de definição do regime recursório, que a final será proferida decisão de pronúncia.

[…]

IV. As garantias de defesa do arguido e o direito ao recurso

[…]

P. Interpretar-se e aplicar-se a norma constante do artigo 310.º, n.º 1, do CPP no sentido de limitar o direito ao recurso de que é titular o arguido, para além dos casos aí expressamente previstos, contende com aquele direito fundamental ao recurso.

Q. A esta luz, a dimensão normativa do artigo 310.º, n.º 1, do CPP, tal como interpretada e aplicada pelo acórdão recorrido, ao vedar a possibilidade de sindicância judicial superior de despacho anterior à prolação de decisão instrutória viola os princípios dos direitos de defesa e de direito ao recurso de que é titular o arguido, consagrados nos artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição, redundando também por esta razão em inconstitucionalidade material.»

O Ministério Público apresentou contra-alegações, nas...

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