Acórdão nº 225/16.7T8FAR.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 17 de Janeiro de 2019

Magistrado ResponsávelANA MARGARIDA LEITE
Data da Resolução17 de Janeiro de 2019
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora: 1.

Relatório BB e marido, CC, intentaram a presente ação declarativa, com processo comum, contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, pedindo: a) se declare que os autores são donos e legítimos proprietários por usucapião desde agosto de 1976 de um prédio urbano sito no Núcleo do Farol Nascente da Ilha da Culatra, freguesia da Sé, concelho de Faro, com a área total não inferior a 140,40 m2, a determinar com maior precisão nestes autos, composto por: i. edifício térreo com a área de implantação mínima de 63,92 m2, composto por alpendre frontal, zona de estar, 3 quartos, casa de banho, cozinha e duas arrecadações, área de duche e BBQ e respetivo subsolo e espaço aéreo; ii. área descoberta com a área mínima de 76,48 m2, composta por alegrete frontal, área pavimentada frontal e lateral, área arenosa (jardim) e pátio traseiro e respetivo subsolo e espaço aéreo; situado no arruamento denominado Rua do Sol e tem o número de porta …, confrontando: a norte com Maria B…, a sul com João P…, a nascente com passagem denominada Rua das Aves e a poente com passagem denominada Rua do Sol; b) se ordene a consequente inscrição do prédio descrito em a) a favor dos autores na Conservatória do Registo Predial de Faro; c) se condene o Estado Português a reconhecer e a respeitar na sua plenitude o direito absoluto de propriedade dos autores sobre o imóvel identificado em a).

Alegam, para o efeito, em síntese, que, no ano de 1976, ocuparam a parcela de terreno que identificam, na qual iniciaram a construção de um edifício que concluíram em agosto de 1977, passando desde então a utilizá-lo, bem como ao respetivo logradouro, como proprietários, à vista de todos e sem oposição, com conhecimento das autoridades, sendo reputados como proprietários. Sustentam, ainda, que a Ilha da Culatra, onde se localiza a parcela de terreno, é uma formação natural de terra, rodeada de água, uma ilha no sentido próprio, não se subsumindo ao conceito de leito, não pertencendo a parcela de terreno ao domínio público do Estado, como tudo melhor consta da petição inicial.

Polis Litoral Ria Formosa — Sociedade para a Requalificação e Valorização da Ria Formosa, S.A.

deduziu incidente de intervenção acessória como assistente do réu e apresentou contestação, na qual impugna a fundamentação de facto e de direito constantes da petição inicial, invocando a falta de condições de procedência da ação, sustentando, em síntese, que o terreno em causa pertence ao domínio público do Estado e é insuscetível de aquisição por usucapião, sendo os autores meros detentores que se aproveitaram da tolerância do titular do direito, inexistindo licenciamento da construção realizada, impossibilidade legal de desanexação do prédio e oposição do Estado interruptiva do prazo estabelecido na lei para a aquisição por usucapião, como tudo melhor consta do aludido articulado.

O Estado Português, representado pelo Ministério Público, contestou, defendendo-se por impugnação e invocando a falta de condições de procedência da ação, sustentando que o terreno integra o domínio público do Estado e é insuscetível de aquisição por usucapião, inexistindo licenciamento das construções realizadas, concluindo, em síntese, que os pedidos deduzidos pelos autores não têm fundamento, não podendo ser declarado que adquiriram por usucapião a propriedade do prédio, área, parcela ou terreno em causa, nem podendo ser procedente o mais que pretendem.

Por despacho de 08-07-2016, foi admitida a intervenção de Polis Litoral Ria Formosa — Sociedade para a Requalificação e Valorização da Ria Formosa, S.A., como assistente do réu.

Notificados para o efeito, os autores apresentaram articulado no qual se pronunciam sobre a matéria de exceção deduzida nas contestações.

Foi realizada audiência prévia, na qual, após comunicação de que o estado do processo permite decidir as questões suscitadas e conhecer do mérito da causa, se facultou às partes a discussão de facto e de direito, conforme consta da respetiva ata.

Foi proferida decisão, na qual se elaborou despacho saneador, se discriminou os factos considerados provados e se conheceu do mérito da causa, tendo a ação sido julgada improcedente e o réu absolvido do pedido, sendo os autores condenados nas respetivas custas.

Inconformados, os autores interpuseram recurso desta decisão, pugnando para que seja revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos, com a identificação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem: «

  1. Em conformidade com o imperativo processual da al. c) do art.º 572.º do C.P.C., jamais a eventual falta de contestação pelos Recorrentes de quaisquer factos relacionados com a matéria da inserção da parcela de terreno reivindicanda do domínio privado ou público marítimo do Estado alegados pelos RR. (ou outra matéria de exceção) poderá ter o efeito cominatório de os mesmos se considerarem admitidos por acordo.

  2. Nos art.ºs 5.º a 17.º do articulado de resposta às exceções que apresentaram em juízo em 20.10.2016, os Recorrentes impugnaram o conteúdo da certidão da APA, tendo de se considerar que o fizeram de forma suficiente e adequada para abalar a força probatória desse conteúdo, que assim passou ser controvertido.

  3. Na interpretação que os Recorrentes fazem dos art.ºs 371.º e 372.º do C.C. é entendimento destes que para se impugnar o teor de um documento autêntico (o conteúdo documentado e não o próprio documento) não tem necessariamente de se invocar a falsidade do mesmo.

  4. Da conjugação do art.ºs 371.º, n.º 1 e 372.º, n.º 2 do C.C. resulta que a invocação da falsidade de um documento autêntico só faz sentido e é imposto por lei, quando se pretenda demonstrar que (a) o documento atesta como tendo sido objeto da perceção da autoridade ou oficial público qualquer facto que na realidade se não verificou e que a autoridade ou oficial público não podia ter percecionado, ou que (b) o documento atesta como tendo sido praticado pela entidade responsável qualquer ato que na realidade o não foi. Ou seja, o documento só é falso quando se mostrar afetada a fé pública do documentador, ou porque atestou ter percecionado algo que não aconteceu e que não podia ter percecionado (ex. atesta o reconhecimento presencial da assinatura de uma pessoa pré-falecida) ou porque atestou ter percecionado algo que realmente aconteceu mas que aquela autoridade ou oficial público não percecionou (ex. algo acontecer em Portugal e o documentador nesse momento encontrar-se incomunicável noutro país); E) Ergo, não tem de se invocar a falsidade do documento quando se pretenda (apenas) demonstrar que os factos embora validamente documentados não correspondem à verdade.

  5. Um documento não é falso porque alguém perante o documentador declarou algo que não corresponde à verdade mas que o documentador efetivamente percecionou e documentou. O documento autêntico só é falso quando a atinge o facto documentado em si (não o conteúdo deste).

  6. In casu, os Recorrentes não colocaram em questão que a APA tivesse emitido aquela certidão. O que os Recorrentes impugnaram nos termos descritos, foi o conteúdo do facto documentado. No entender dos Recorrentes, o que está em causa e o que importa, não é o facto da APA ter documentado um qualquer facto (imagine-se que era da sua competência afirmar que o planeta terra tem a forma de cubo), mas sim se este facto documentado corresponde ou não à verdade. E é esta verdade que se discute nestes autos.

  7. Acresce que esta questão não pode ser resolvida pura e simplesmente, por uma das partes (por um organismo do Estado), sem ser verificada pelo Tribunal, sob pena de violação dos princípios constitucionais de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (arts.º 2.º e 20.º, n.º 1 da CRP).

  8. Os Recorrentes impugnaram o teor do documento autêntico (não por ser falso, mas por o conteúdo do facto documentado não corresponder à verdade), impugnaram a falta de autenticidade da informação alegadamente anexa porquanto não se encontra numerada, rubricada nem (pasme-se!!) sequer assinada. Apresentando essa certidão (estes) vícios formais (e materiais, pois que se falta a informação anexa, falta a fundamentação e conteúdo da mesma) apontados, em condições normais (entre outros intervenientes ou interesses em jogo) seriam seguramente razões suficientes para a julgar inidónea para convencer o julgador ou mesmo oficiosamente falsa, nos termos do n.º 3 do art.º 372.º C.C..

  9. Tendo em consideração o acabado de referir, o Tribunal a quo violou necessariamente do n.º 3 do art.º 372.º C.C..

  10. Discorda-se pois que o conteúdo da certidão da APA não tenha sido posto em causa e que só o pudesse ser por via da invocação da falsidade do documento.

  11. Ao entender de forma contrária, a douta sentença recorrida violou os art.ºs 371.º e 372.º do C.C.

  12. Pelos vícios apontados à informação alegadamente anexa à certidão da APA (falta de numeração, rubrica e assinatura) não se pode garantir que o teor da mesma seja aquele que alguma vez foi considerado na certidão, se é que o foi efetivamente. Daí que com propriedade se tenha de designar como alegada informação anexa à certidão da APA.

  13. Não pode o Tribunal, com imparcialidade, tecer considerações nesta fase processual, sobre se os técnicos que alegadamente intervieram na informação alegadamente anexa à certidão da APA foram ou não ao local, ou concluir desde já que se encontram bem alicerçados em estudos científicos quanto à natureza do solo.

  14. Se os livros da antiga 4.ª classe ou do atual 4.º ano do 1.º ciclo fizessem ciência ou jurisprudência, seguramente não seria necessário estudar mais do que 4 anos. A verdade é que o que nos é ensinado na escola primária e durante a vida muitas vezes é cientificamente desmentido posteriormente.

  15. O que nos é eventualmente ensinado na escola primária, reflete o estado do conhecimento em...

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