Acórdão nº 223/18 de Tribunal Constitucional (Port, 24 de Abril de 2018

Data24 Abril 2018
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 223/2018

Processo n.º 40/18

2.ª Secção

Relatora: Conselheiro Pedro Machete

Conselheira Maria Clara Sottomayor

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1. Pelo Tribunal da Relação do Porto foi julgada improcedente a apelação apresentada por A. e, por conseguinte, confirmada a decisão proferida pelo Juízo de Execução do Porto, que indeferiu o incidente de diferimento de desocupação do imóvel apresentado pela apelante nos autos de execução comum que o B., S.A. move contra C. (fls. 94 a 100).

2. Inconformada, a Apelante, aqui Reclamante, deduziu recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC, nos termos e com os fundamentos seguintes (fls. 108 a 112):

«A., Recorrente nos autos à margem indicados, notificada do Acórdão datado de 11.09.2017, não se conformando, dele vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do art. 70º nº 1-b) da LTC, nos termos seguintes:

O presente recurso vem interposto do douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que julgou a apelação interposta improcedente por não provada e, consequentemente, confirmou a decisão recorrida.

A recorrente não se conforma com a interpretação aí plasmada, segundo a qual o diferimento da desocupação do imóvel arrendado para habitação, consignada no art.º 864.º do CPC, não poderá ser reconhecida a detentores do imóvel, relativamente aos quais se verifiquem razões sociais imperiosas.

Uma vez que, segundo a interpretação do Tribunal a quo, tal norma - o art.º 864.º do CPC, sendo uma norma excecional, não permite aplicação analógica, nos termos do art.º 11.º do CC, nem interpretação extensiva.

Mais não se conforma a recorrente, que essa circunstância - o não reconhecimento do diferimento da ocupação ao detentor do imóvel - permita que o Tribunal possa decidir pelo indeferimento, sem audição das testemunhas arroladas, por entender que se trata de um ato inútil.

Considera a recorrente que tais entendimentos violam de forma ostensiva o direito à habitação e o direito ao acesso aos tribunais previsto nos art.º 65.º e 20.º da CRP

Foram, pois, violados, com a decisão de indeferimento, o n.º 4 e 5 do artº 20.º da CRP que consagra o princípio da tutela jurisdicional efetiva, prescrevendo-se que nas causas em que as partes intervenham, a decisão deve ser tomada mediante processo equitativo, nomeadamente à luz do princípio do contraditório.

E, foi ainda violado, com esta decisão, o disposto no art.º 6.º n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que prescreve: "Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativamente (...) por um tribunal (...)

O Tribunal recorrido, ao não permitir que a recorrente fizesse prova dos factos alegados, indeferindo liminarmente o pedido de diferimento de desocupação do imóvel, violou o seu direito à tutela efetiva, consagrado no artigo 268.º, n.º 4, da CRP.

É sustentado no douto Acórdão o Acórdão da Relação de Lisboa, de 01/07/2010, Processo 11/03.4TBALM, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrl, que o artigo 930.º-C, atual art.º 864.º do CPC, se poderia aplicar analogicamente a situações em que se trate de imóveis arrendados a não arrendados, desde que semelhantes e justificadores de tal aplicação analógica.

Decidiu este douto Aresta que Posto isto e olhando agora mais de perto para o art. 930º-C do CPC, temos que neste se prevê, no caso de imóvel arrendado para habitação, o diferimento da sua desocupação, por razões sociais imperiosas.

É apodítico que esta norma foi pensada para os casos em que o uso e fruição do imóvel estava legitimado por uma relação contratual de cedência desse uso e fruição, com a contrapartida do seu pagamento, traduzida na respetiva renda, criando-se como que um retardamento legal das consequências normalmente associadas ao termo dessa relação contratual.

O que não é o caso dos autos, pois não se está aqui perante imóvel que tenha sido objeto de um contrato de arrendamento outorgado pela opoente, não obstante esta o ter vindo a ocupar para a sua habitação e do seu agregado familiar.

Dispõe a art. 10º do CC que "os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos" (nº 1), havendo ‘analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas de regulamentação do caso previsto na lei" (nº 2).

Por outro lado, o art. 11 º do CC proíbe a aplicação analógica das normas excecionais.

Para se poder dizer que uma norma é excecional importa verificar se se está ou não perante um regime oposto ao regime regra.

As normas excecionais são, pois normas que, "regulando um sector restrito de relações com uma configuração particular, consagram para o efeito uma disciplina oposta à que vigora para o comum das relações do mesmo tipo, fundada em razões especiais, privativa daquele sector de relações" (Pires de Lima e Antunes Varela, ob cit, pág. 76).

Destas distinguem-se as normas especiais que, regulando igualmente um sector restrito de casos, consagram uma disciplina diferente, mas que não é diretamente oposta à do direito comum, não valendo para estas a proibição do art. 11º do CC, que apenas vale para as normas excecionais (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., págs. 79 e sgs.).

Cremos, mau grado poder admitir-se que tal não se apresenta com nitidez evidente, que na norma em referência, mais do que uma solução claramente oposta à da lei geral, se contém antes uma solução específica diferente da nesta estabelecida, fundada em razões de conveniência e oportunidade, principalmente de justiça concreta em que a equidade se funda e, nessa medida, não nos custa entendê-la como norma especial e, logo, suscetível de aplicação analógica.

O ponto de partida para a analogia é a similitude das situações.

O art. 930º-C do CPC permite ao executado, no caso de pedido de entrega de imóvel arrendado para habitação, diferir a desocupação por razões sociais imperiosas, devendo, nomeadamente, ponderar-se a circunstância de o executado não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que com ele habitam, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas (nº 3 do art. 930º-C, igualmente introduzido pela Lei nº 6/2006).

In casu, o que escapa à previsão da lei é apenas o facto de se não estar perante um imóvel arrendado, nela cabendo o demais circunstancialismo factual que, de resto, vai de encontro aquilo que é o seu nuclear e final escopo - minorar as consequências sociais e humanas da falta de habitação -, a justificar algumas limitações ao direito de propriedade, por apelo à função social que a propriedade assume no nosso projeto económico-social constitucional (cfr. Ac. do TC nº 420/2000, de 21-10-2000, DR II, de 22-11-2000).

Efetivamente, a recorrente tinha legitimidade para requerer o diferimento da desocupação do imóvel, pois só esta extensão do artigo 864.º do CPC, a situações análogas se compagina com os postulados da justiça e da boa-fé que devem presidir ao pensamento legislativo, tanto mais que no articulado apresentado, alegou factos demonstrativos das razões sociais imperiosas do requerido, ofereceu provas e indicou testemunhas, pelo que tal pedido não deveria ser indeferido, sob pena de violação ostensiva do direito à habitação previsto no art. 65.º da CRP.

Devendo, para esse efeito ser declarado inconstitucional o art.º 864.º do CPC, quando se considera que por se tratar de uma norma excecional, não admite a aplicação analógica a situações de imóveis não arrendados, como é o caso dos autos.

Assim, entende a recorrente que a interpretação dada ao art.º 864.º do CPC, no Acórdão sob recurso, é violadora do princípio do direito à habitação previsto no art.º 65.º da CRP, e, outrossim, do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20º, n.º 1, da CRP), por compressão dos direitos de defesa.

O artigo 20º, nº 1 da CRP – acesso ao direito e aos tribunais – garante que a todos é assegurado o direito a que a sua causa seja submetida a um juiz, para a declaração e o exercício de direitos, e é constitucionalmente assegurado com a disponibilidade processual adequada, que pode limitar-se a um único grau de jurisdição; a norma constitucional e a substância do direito não exigem, apenas por si, a organização de competências e do processo em vários graus de jurisdição.

Conclui-se, pois, que no caso concreto não está satisfeita a exigência constitucional vertida no art.º 65.º e 20.º, n.º 1 da CRP.

Com efeito, é inconstitucional, o art.º 864.º do CPC, quando considerado uma norma excecional, que não admite a aplicação analógica a situações de imóveis não arrendados.

Sendo que a questão de inconstitucionalidade do art.º 864.º do CPC e violação dos art.º 65.º e 20.º, n.º 1 da CRP foi já suscitada nas alegações de recurso apresentadas para o Tribunal da Relação do Porto, tem a recorrente o direito a ver apreciado o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.

Termos em que deve ser admitido o presente recurso, a subir imediatamente, nos autos, com efeito suspensivo, nos termos do art. 78º da L TC, com as legais consequências».

3. Por meio de despacho proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, o recurso não foi admitido (fls. 123):

«Como se evidencia das alegações recursivas a recorrente estrutura o recurso para o Tribunal Constitucional com fundamento na al. b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82 de 15/11 (LOTC).

Ora estatui a referida alínea que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.

Acontece que nos autos...

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