Acórdão nº 612/16 de Tribunal Constitucional (Port, 15 de Novembro de 2016

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução15 de Novembro de 2016
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 612/2016

Processo n.º 457/2016

1.ª Secção

Relator: Conselheiro Teles Pereira

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. No âmbito do processo de inquérito n.º 3259/15.5TDLSB, que correu os seus termos no Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos A. (ora Recorrente) e “B., Lda.”, imputando a cada um dos referidos arguidos a prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107.º e 105.º, n.º 1, do RGIT.

1.1. Notificado da acusação, o arguido A. requereu a abertura de instrução, pugnando pela prolação de um despacho de não pronúncia, para tal invocando a não verificação dos elementos objetivos do tipo, a falta de elemento subjetivo e de indícios suficientes e, ainda, a não criminalização da conduta. Relativamente a este ponto, invocou o seguinte:

“[…]

Acresce ainda que, mesmo que as quotizações de todos os trabalhadores que teve a “B., Lda.”, tivessem sido, que, repita-se, não foram, deduzidas, e não fossem entregues na segurança social, fosse, quem fosse, o respetivo agente dessa conduta, ela não constituiria a prática de qualquer crime.

E isto porque, e como da acusação com total clareza resulta, em nenhum mês, ou seja, em nenhuma declaração remetida à segurança social, essas quotizações ultrapassam o limite de 7.500,00 euros, não constituindo pois, na verdade, a respetiva dedução, e não entrega à segurança social, ainda que tivessem ocorrido, que, repise-se, não ocorreram, a prática de qualquer crime, designadamente do crime de abuso de confiança contra a segurança social, a que alude 107.º-1, do RGIT, porque, por força do comandado no artigo 105.º, do mesmo RGIT, tal crime de abuso de confiança contra a segurança social, do artigo 107.º-1, do RGIT, só ocorre quando o montante deduzido e não entregue seja superior a 7.500,00 euros, por declaração, isto é, por mês.

76. E, se é certo que não se ignora que o Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2010, de 14 de julho de 2010 (Souto de Moura, por vencimento, Processo n.º 6463/07.6TDLSB.L1-A.S1), consultável in wwwdgsi.pt, e in Diário da República, I Série, de 24 outubro de 2012, deliberou que assim não é, ou seja, que o limite de 7.500,00 euros, constante do número 1 do artigo 105.º, do RGIT, não tem aplicabilidade ao crime previsto no artigo 107º.-1, do mesmo RGIT, não menos certo é também que tal acórdão foi tirado com 8 votos de vencido, contra 9 votos que fizeram vencimento.

77. O que, só por si, não pode deixar, como não deixa, de significar que a norma em causa, ou seja, a que resulta da conjugação dos artigos 105.º e 107.º, ambos do RGIT, não é uma norma precisa, pois que não é uma norma que qualifique como crime uma conduta, que seja objetivamente determinável, quer, em primeiro lugar, pelos destinatários de tal norma penal, quer, em segundo lugar, pelo próprio julgador, no momento de aplicação da mesma norma penal, pelo que tal aplicação sempre é violadora do princípio segundo o qual nullum crimen sine lege certa.

78. Princípio este que, segundo nos ensina Américo Taipa de Carvalho (Direito Penal, Coimbra Editora, 2.ª Edição, Reimpressão, Coimbra, outubro 2014, pp, 162 e 163), tem dignidade constitucional, por constituir, como constitui, uma vertente do Princípio Constitucional da Legalidade Penal, positivado, designadamente, no artigo 29.º-2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

79. Isto, por um lado, enquanto que, por outro lado, a interpretação do artigo 107.º, do RGIT, segundo a qual, não e aplicável a esse crime, o limite de 7.500,00 euros, constante do artigo 105.º-1, do mesmo RGIT, nem aliás qualquer outro limite, possibilitando, como possibilitaria, que a não entrega à segurança social de, por exemplo, um cêntimo que fosse, de quotizações deduzidas, constituiria a prática de um crime, cuja pena, abstratamente aplicável, poderia ser de prisão até 3 anos, sempre seria violadora do Princípio da Dignidade Penal, o qual tem também cariz constitucional.

Motivos pelos quais, a norma penal resultante da conjugação dos artigos 105.º e 107.º, ambos do RGIT, padece do vício da inconstitucionalidade (seja lá tal vicio o que seja, isto é, uma nulidade, uma anulabilidade, ou um tertium genus), por violação do Princípio da Legalidade Penal, como também a interpretação de tais artigos 105.º e 107.º, ambos do mesmo RGIT, segundo a qual não é aplicável ao crime, a que alude o número 1 do mesmo artigo 107.º do RGIT, o limite de 7.500,00 euros, previsto no artigo 105.º-1, do mesmo RGIT, nem aliás qualquer outro limite, padece igualmente do vicio da inconstitucionalidade, por violação do Princípio Constitucional da Dignidade Penal.

Inconstitucionalidade essa que aqui fica, pois, desde já, invocada, para os devidos e legais efeitos, sendo certo que o Tribunal Constitucional pode sindicar, não só, naturalmente a contrariedade de uma norma à Constituição, mas também uma determinada interpretação ou dimensão normativa de normas, como a jurisprudência constitucional vem defendendo sistematicamente, e resulta aliás, expressamente, do artigo 80.º-3, da Lei do Tribunal Constitucional, que se reporta a verdadeiras e próprias decisões interpretativas do Tribunal Constitucional, abrangendo portanto o caso, a que aqui nos estamos a referir, que se pode considerar como uma decisão interpretativa imprópria, equiparável a uma decisão de inconstitucionalidade parcial vertical ou quantitativa.

O Tribunal Constitucional e quaisquer outros tribunais, que, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, prevista no artigo 280.º, da CRP, tenham para isso competência funcional.

Tribunais esses que, no sistema de fiscalização de constitucionalidade misto que vigora em Portugal, podem ser quaisquer tribunais, pois que, face à vertente difusa ou do Juiz Marschal, de tal sistema misto, qualquer tribunal pode desaplicar uma norma, por, numa decisão positiva da inconstitucionalidade, a julgar inconstitucional, muito embora, a última palavra quanto à inconstitucionalidade das normas, e face à vertente concentrada, austríaca ou de Hans Kelsen, do nosso atrás referido sistema misto, caiba sempre ao TC.

Entre tais tribunais se incluindo pois esse Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, requerendo-se por isso a V. Ex.ª, que, considerando, pelos motivos atrás referidos, inconstitucional, a norma resultante dos artigos 105.º e 107.º, ambos do RGIT, e/ou a interpretação dessa norma, segundo a qual o limite de 7.500,00 euros, a que alude o número 1, do artigo 105.º, do RGIT, não tem aplicação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no número 1 do artigo 107.º, do mesmo RGIT, por violação dos Princípios Constitucionais da Legalidade Penal, e da Dignidade Penal, desaplique tal norma, com todas as consequências legais de tal desaplicação advenientes, designadamente a não pronuncia do A. pela prática do crime pelo qual ele foi acusado, pois que as condutas constantes da acusação, ainda que fossem todas verdadeiras, que não são, não tipificam a pratica de qualquer crime.

[…]”.

1.1.1. Foi declarada aberta a instrução e, findas as diligências tidas por pertinentes, foi proferido despacho de pronúncia dos arguidos pelos factos e com a qualificação jurídica constantes da acusação, para ela remetendo. Relativamente à questão suscitada pelo arguido A. que foi transcrita no ponto anterior, a 1.ª Secção de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – qualificando-a como “questão prévia” – decidiu o seguinte:

“[…]

Inexistem nulidades, quaisquer outras exceções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer, salvo as invocadas no RAI, que infra se conhecerão.

[…]

c) Descriminalização da conduta face aos valores em dívida – inferiores a €7.500,00.

Esta questão foi resolvida pelo Acórdão STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2010, de 23/9, que decidiu o seguinte: ‘a exigência do montante mínimo de (euro) 7500, de que o n.º 1 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias - RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, e alterado, além do mais, pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro) faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107.º, n.º 1, do mesmo diploma’.

Assim, também nesta questão não assiste razão ao arguido.

[…]”.

1.1.2. O arguido A. invocou a nulidade da decisão por omissão de pronúncia relativamente a diversas questões jurídicas que (no seu entender) não teriam sido apreciadas pelo tribunal, incluindo a transcrita no item 1.1. supra, nulidade essa que foi indeferida.

1.2. Ainda inconformado com a decisão proferida relativamente à não punibilidade da conduta, o mesmo arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos que ora se transcrevem:

“[…]

1. O requerente não se pode conformar, nem se conforma pois, com a aliás douta decisão instrutória, prolatada nos autos no dia 22 de janeiro de 2011.

2. Decisão instrutória essa que, nomeadamente:

– numa decisão negativa de inconstitucionalidade, não julgou inconstitucional:

a) a norma que resulta da conjugação dos artigos 105.º e 107.º-1, ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho (RGIT);

b) a interpretação ou dimensão normativa do artigo 107.º, do RGIT, segundo a qual não é aplicável ao crime em tal artigo tipificado o limite de 7.500,00 euros, limite esse constante do artigo 105.º-1, do mesmo RGIT, nem, aliás, qualquer outro limite.

aplicando pois a decisão...

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