Acórdão nº 01469/14 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 12 de Março de 2015

Magistrado ResponsávelMARIA BENEDITA URBANO
Data da Resolução12 de Março de 2015
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: I – Relatório 1.

Município de Pampilhosa da Serra, devidamente identificado nos autos, recorreu para este Supremo Tribunal do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), de 18.12.14, invocando para o efeito o n.º 1 do artigo 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

1.1.

O recorrente apresentou alegações, concluindo, no que concerne especificamente ao mérito da causa, do seguinte modo (fls 616 e ss): “ (…) 8.ª No que se refere à questão de direito submetida a revista, é forçoso considerar que, no âmbito de um procedimento destinado à correção dos vícios ocorridos na execução de uma obra anterior, a participação do autor da obra viciada ofende claramente o princípio da concorrência (na sua dimensão de exigência de igualdade entre os concorrentes), sendo juridicamente correta uma decisão de exclusão nos termos referidos na conclusão 1.ª.

  1. É certo que o CCP não estabelece, em termos diretos e explícitos, um impedimento no caso dos presentes autos. Porém, esta circunstância não exclui que a situação de impedimento (ou de exclusão) possa e até deva ser determinada em ordem a garantir o respeito pelos princípios da concorrência e da igualdade de tratamento de todos os concorrentes (como resulta aliás também da jurisprudência do TJUE).

  2. Num caso como o dos presentes autos, existem razões bastantes para determinar um impedimento e a exclusão de um concorrente que pretenda participar no procedimento de adjudicação de empreitada unicamente destinada à reparação de defeitos em obra por si construída em execução de contrato anterior.

  3. Enquanto concorrente neste procedimento, o autor da obra viciada surge colocado numa clara situação de privilégio decorrente do facto de possuir conhecimentos e informações que nenhum outro operador detém sobre os contornos específicos da obra a realizar.

  4. É evidente que esse concorrente possui informação privilegiada sobre a extensão e o alcance das obras de reparação e que essa circunstância lhe proporciona uma posição de vantagem concorrencial face os demais operadores no mercado (e no procedimento), vantagem que viola nitidamente o princípio da igualdade entre os concorrentes e o princípio da concorrência (artigo 1.º, n.º 4, do CCP).

  5. Trata-se de um conhecimento específico e completo dos contornos do objeto do contrário a celebrar e que não se resume ao conhecimento acessível a qualquer concorrente. O autor da obra viciada não conhece apenas a parte visível da obra construída. Conhece os defeitos e erros da construção, mas também conhece as respetivas causas. Este conhecimento completo, profundo e histórico coloca-o numa situação ímpar.

  6. A relação contratual anterior não é apenas uma relação que antecede logicamente a que agora se pretende estabelecer. A relação anterior, e os termos da execução da mesma pela empresa, é a causa direta e exclusiva da relação contratual a estabelecer. Existe, entre eles, uma relação específica de causa-efeito: o contrato de reabilitação é uma consequência direta do contrato de execução e do modo como este foi executado.

  7. Assim, foi inteiramente correta a conclusão contida na sentença do TAF de Coimbra no sentido de que «a [ora Recorrida], como empreiteira que executou a empreitada anterior, está em posse de informações que necessariamente colocam em causa o princípio da igualdade e da concorrência. Mais ninguém tem essas informações, pelo que ao entrar no concurso, em pé de igualdade com os outros concorrentes, está a falsear a concorrência».

  8. Perante estas considerações, facilmente se detetam os flagrantes erros contidos na decisão ora recorrida. O primeiro consistiu em considerar que, ao contrário das situações pressupostas na alínea j) do artigo 55.º do CCP, a anterior intervenção do interessado em causa (execução defeituosa da obra inicial) não afeiçoa ou molda o novo procedimento.

  9. Ora, numa situação como a dos presentes autos, a anterior intervenção é evidentemente a causa direta da nova empreitada. Mais: o modo como é executada a empreitada inicial define (afeiçoa e molda) diretamente o âmbito da empreitada destinada à correção dos vícios da obra inicial.

  10. Em segundo lugar, o Tribunal recorrido admite que o autor da obra inicial possa até deter “um melhor conhecimento do estado de coisas”, considerando porém que essa circunstância não falseia a concorrência.

  11. Ora, é manifesto que um concorrente nas citadas condições possui um conhecimento direto relativamente às anomalias e defeitos verificados numa obra por si construída e tem um conhecimento específico e completo dos contornos do objeto do contrato a celebrar, que não se resume ao conhecimento acessível a qualquer concorrente. Este conhecimento profundo e histórico coloca o empreiteiro numa situação ímpar e confere-lhe uma vantagem sobre os demais concorrentes que falseia, necessariamente, as condições normais da concorrência.

  12. Em terceiro lugar, o Tribunal recorrido sustenta a sua oposição à aplicação analógica da alínea j) do artigo 55.º do CCP na circunstância de todos os concorrentes (incluindo o autor da obra a reabilitar) serem confrontados com a mesma descrição nas peças do procedimento do que “é para fazer”. Para o TCA Norte, a informação adicional detida pela Recorrida seria equiparável à informação que os demais concorrentes poderiam alcançar formulando pedidos de esclarecimento, apresentando listas de erros e omissões ou visitando a obra in loco.

  13. Contudo, o facto de todos os concorrentes serem confrontados com a mesma descrição do objeto do contrato a celebrar não altera o facto de o autor da obra a reabilitar possuir informação privilegiada e não anula a vantagem concorrencial face aos demais concorrentes. Esta vantagem assenta num conhecimento sobre os contornos da obra a realizar inalcançável pelos demais interessados.

  14. Em quinto lugar, o TCA Norte considera erradamente que «as proibições que têm em conta anteriores relações» se resumem ao disposto no artigo 113.º do CCP. Sendo certo que a citada norma se refere a um impedimento fundado em anteriores relações de “intimidade” com a entidade adjudicante, a verdade é que a alínea j) do artigo 55.º consubstancia também, justamente, um impedimento dessa natureza.

  15. Por fim, o Tribunal a quo compara a situação dos autos à do lançamento de um procedimento destinado à realização de trabalhos a mais ou de suprimento de erros e omissões, defendendo aparentemente que a simples determinação legal de uma “abertura à concorrência” afastaria a existência de um impedimento relativamente ao empreiteiro inicial.

  16. Ora, é desde logo manifesto que as situações não são comparáveis. No caso dos trabalhos a mais, está em causa a realização de trabalhos novos, necessários em virtude de circunstâncias imprevistas. Pelo contrário, numa situação como a dos presentes autos, a segunda empreitada (de reabilitação) é resultado direto e exclusivo dos termos em que foi executada a empreitada inicial. É esta circunstância (que não se verifica no caso dos trabalhos a mais) que confere ao empreiteiro da obra inicial um conhecimento específico e completo dos contornos do objeto do contrato a celebrar e justifica a aplicação analógica do disposto no artigo 55.º, alínea j), do CCP.

  17. Tão-pouco no caso do suprimento de erros e omissões estamos perante trabalhos suplementares devidos a vicissitudes da execução da empreitada inicial. Além disso, não se vislumbra por que motivo a simples abertura à concorrência neste caso afastaria a aplicabilidade de um impedimento ao empreiteiro inicial. Na verdade, nestas situações, o CCP obriga à adopção de um dos procedimentos previstos no CCP (de acordo com o Título I da sua Parte II) e não prevê qualquer inaplicabilidade específica relativamente ao disposto no artigo 55.º do citado diploma.

  18. A título subsidiário, o TCA Norte invoca ainda uma crítica formulada na doutrina à estatuição automática do impedimento com base na simples constatação de uma relação anterior de intimidade entre o interessado e a entidade adjudicante.

  19. Ora, desde já, afigura-se que, à luz da atual redação da norma legal em causa, já não se coloca esta questão. Em todo o caso, a verdade é que a conclusão do júri pela exclusão da ora Recorrida assentou na verificação de uma efetiva posição de vantagem que falseia as condições normais de concorrência.

  20. Decorre de uma indicação elementar de experiência comum, de forma evidente, que a empresa que, a partir do zero, construiu uma obra que apresenta defeitos (defeitos que ela conheceu e que lhe foram notificados) possui um conhecimento privilegiado dessa mesma obra e, para o que aqui interessa, possui claramente um conhecimento privilegiado dos defeitos da obra. Ao admitir a presença de um concorrente investido nesta posição, verifica-se uma assimetria informativa que necessariamente falseia as condições normais de concorrência.

  21. Perante tudo o que ficou exposto, é forçoso concluir que o Tribunal a quo incorreu num manifesto erro de julgamento e violou as normas jurídicas contidas nos artigos 146.º, n.º 2, alínea c), 55.º, alínea j) e 1.º, n.º 4, todos do CCP, impondo-se a revogação do Acórdão recorrido e a prolação, em sua substituição, de uma decisão no sentido da improcedência dos pedidos formulados pela ora Recorrida no presente processo”.

Termina o autor solicitando que seja dado provimento ao recurso “com as devidas consequências legais”.

1.2.

A recorrida contra-alegou, procurando rebater ponto por ponto os argumentos do recorrente relativos ao mérito da causa, concluindo, no essencial, da seguinte maneira (fls 753 e ss): (i) “No que toca à matéria em apreciação na presente revista, e caso a mesma venha a ser admitida, não procede nenhuma das razões invocadas pela Recorrente para sustentar a revisão da decisão recorrida” (fl. 753).

(ii) “Ainda que se admita que a Recorrida possua um conhecimento mais profundo da obra anterior que os outros...

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