Acórdão nº 2386/12.TVLSB.L1-7 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 02 de Junho de 2015

Magistrado ResponsávelORLANDO NASCIMENTO
Data da Resolução02 de Junho de 2015
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa.

1.

RELATÓRIO: … Merchandizing, Lda, propôs contra Companhia de Seguros … S. A. e Maria … esta ação declarativa de condenação, ordinária, pedindo a condenação destas a entregarem-lhe a quantia de € 200.000,00, despesas com a realização de uma escritura e despesas com a propositura da ação, correspondes aos prejuízos sofridos com a omissão da 2.ª R na verificação da autenticidade de uma procuração que lhe foi presente numa escritura de mútuo com hipoteca, perante ela outorgada, tendo esta celebrado contrato de seguro de responsabilidade civil profissional com a 1.ª R, titulado pela apólice n.º 2030209/00.

Citadas as RR, contestou a R, Companhia de Seguros, por exceção, dizendo que celebrou um contrato de seguro de grupo com a Ordem dos Notários, sendo a 2.ª R “pessoa segura” nos termos e para os efeitos desse contrato, até ao limite máximo de € 99.000,00, pois o contrato prevê uma franquia de € 1.000,00, que só teve conhecimento dos fatos através desta ação, não lhe tendo sido feita reclamação nem comunicação em prazo, pelo que os fatos, a terem ocorrido, se não enquadram no âmbito da cobertura da apólice, e por impugnação, dizendo que a 2.ª R não é responsável pelos danos, pois, não havia motivos para desconfiar da veracidade da documentação, pedindo a absolvição do pedido.

Contestou também a 2.ª R, deduzindo a exceção da litispendência com fundamento em que um terceiro propôs ação contra a A ela própria, entre outros, em que é pedida a declaração de falsidade da procuração e da escritura, sendo idêntico o objeto de ambos os processos, relativamente ao pedido e causa de pedir, pelo que existe risco de contradição ou de mera repetição das decisões, aduzindo por impugnação que a decisão de contratar pertenceu à A, sobre ela recaindo os riscos do negócio e que os documentos apresentados não suscitavam dúvidas quanto à sua veracidade, pedindo a procedência da exceção da litispendência e a absolvição da instância e se assim se não entender a absolvição do pedido.

Realizada audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença, julgando a ação improcedente e absolvendo as RR do pedido.

Inconformada com essa decisão, a A dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação e a substituição por outra que condene as RR no pedido, formulando as seguintes conclusões:

  1. A decisão recorrida incorreu em erro de apreciação da prova e na aplicação do direito ao caso.

  2. Pela Sentença exarada sob conclusão de 15 de Outubro de 2014, decidiu a Mmª Juiz a quo absolver as Rés Notária e Seguradora do pedido de indemnização pelos danos causados à A. derivados do acto profissional negligente da Ré Notária, ao permitir, no exercício da sua profissão de notária, a realização de uma determinada escritura de mútuo com hipoteca, C) Por entender, basicamente, que não estavam reunidos os pressupostos da responsabilidade civil para tanto, nomeadamente quanto à ilicitude do facto e quanto ao nexo de causalidade entre o facto e o dano.

  3. Sem razão porém.

  4. Pois está provado que a Ré instruiu o acto com uma procuração, F) E essa procuração era nula, G) Pelo que, consequentemente, a Ré realizou uma escritura com base nessa procuração quando não o deveria ter feito - pois deveria antes ter declarado que não realizava a escritura com aquele documento - logo actuou negligentemente e do seu comportamento negligente, em não impedir a realização da escritura com base nesse facto, resultou um dano patrimonial para a Autora.

  5. Mas a sentença recorrida incorre em erro porque entende que aquela procuração não era nula pois tal questão não era à data pacífica e era discutível em face da redacção da lei à data vigente.

  6. Erradamente, porquanto estamos perante uma suposta procuração celebrada por ajudante de notário quando obrigatoriamente deveria ser celebrada por notário.

  7. Pois a lei dispunha então, no art.º 8º do Estatuto do Notariado em vigor à data dos factos, que não era permitido delegar nos ajudantes de notário (portanto era da exclusiva competência do notário) a prática de “todos os actos em que seja necessário interpretar a vontade dos interessados ou esclarecê-los juridicamente”.

  8. Ora uma procuração é um instrumento que titula um mandato ou seja um contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra, ou seja, um acto que manifestamente impõe a quem o celebra o dever de interpretar a vontade do outorgante e o esclarecer juridicamente quanto ao conteúdo do documento; L) Obrigações que, segundo a lei aplicável, só ao notário eram assacadas porque só este tem competência técnica para tanto.

  9. Sendo que o Bastonário da Ordem dos Notários, ouvido na qualidade de testemunha, foi inequívoco ao classificar a procuração em causa como nula, respondendo peremptoriamente que esta procuração não devia ter sido efectuada pelo ajudante de notário, que era de competência exclusiva do notário, portanto não poderia ter sido aceite, não era válida na escritura, e ainda que: N) “ Tenho uma procuração nula, não posso instruir este acto. Quantas vezes isso não nos acontece.” O) E também: “No meu entendimento houve uma falha na qualificação jurídica que a notária fez desta procuração e que … se tivesse sido bem feita (a qualificação jurídica da procuração) obstaria à outorga da escritura em causa. ” P) Ou seja, era evidente que a procuração utilizada era nula em face da lei (não tinha sido celebrada perante notário e faltava-lhe a assinatura do notário – art.º 70º, n.º 1 al. f) do Código do Notariado) e que a Ré não devia ter celebrado a escritura em causa com base naquela procuração.

  10. No entanto, a decisão sob recurso fez uma interpretação errada da lei e não deu devida relevância a este depoimento, julgando erradamente a matéria de facto, em consequência, ao não dar como provado que a escritura foi celebrada pela negligência da Sr.ª Notária e que por isso a Autora perdeu € 200.000,00 que não tem como recuperar (pontos 38 e 39 dos temas de prova).

  11. Com efeito, é sabido que relativamente às condições que, em concreto, se têm de verificar para que o notário possa ser civilmente responsabilizado, assiste-se, em geral, à necessidade da verificação dos pressupostos exigidos para o direito privado em geral: facto voluntário do agente, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade.

  12. Ora a realização de uma escritura pública por uma notário no exercício da sua função tendo por base um instrumento de representação nulo, consubstancia forçosamente um acto ilícito; T) Pois o notário deve recusar a prática do acto que lhe seja requisitado se o mesmo for nulo (artigo 173.º, n.º 1, alínea a), do Código do Notariado) e os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, conforme resulta dos art.ºs 280.º e 294º do Código Civil.

  13. E existe obviamente também culpa da Ré sua neste caso porque infelizmente actuou com menos cuidado do que o que lhe era exigível; V) Ou seja, faltou-lhe neste acto a diligência e zelo a que estava obrigada em razão do cargo que ocupa e a que socialmente é reconhecido rigor e confiança enquanto função pública (embora agora de actividade privada) e que é exigível a um notário mediano.

  14. Aliás, a culpa da Ré presume-se, pois a actuação do notário não pode deixar de ser vista como a prestação de um serviço mediante o pagamento de um preço (responsabilidade contratual) e nesta sede presume-se que a R. é culpada pelo defeito do serviço, salvo prova em contrário (art.º 799.º 1, do CC).

  15. E existe também dano, já que com a realização daquele acto que a Ré não impediu e que devia ter impedido, a Autora entregou a um vigarista a quantia de € 200.000,00 a título de mútuo, que este não lhe devolveu no prazo acordado e que está impossibilitada de reaver por accionamento da garantia prestada, já que o imóvel dado em garantia do pagamento da dívida não foi hipotecado pelo seu verdadeiro dono.

  16. Dano esse de que a conduta negligente da Ré é causa adequada, no sentido em que, independentemente da vigarização havida, foi ela mesma, notária, que adoptou um comportamento profissional que, ainda que o documento fosse verdadeiro, sempre geraria a sua responsabilidade, na medida em que permitiu a realização de uma escritura nula, baseada numa procuração nula! Z) Concluindo, não fora a negligência da Ré, a Autora teria evitado a desvantagem do prejuízo reclamado, pelo que é manifesto que existe um nexo de causalidade adequada entre os danos sofridos pela Autora e a conduta da Ré.

    A

  17. Pelo que mal andou a sentença recorrida ao decidir em sentido contrário, fazendo uma incorrecta apreciação da prova e do Direito aplicável nessa exacta medida e devendo ser revogada em conformidade.

    As apeladas contra-alegaram, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

    2. FUNDAMENTAÇÃO.

  18. OS FACTOS.

  19. O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos: 1. Em dezembro do ano de 2010, a Autora tomou conhecimento que se encontravam à venda seis frações autónomas designadas com as letras “B”, “C”, “D”, “E”, “F” e “G”, correspondentes ao primeiro andar direito, ao primeiro andar esquerdo, segundo andar direito, segundo andar esquerdo, terceiro andar direito e terceiro andar esquerdo, respetivamente, todas sitas no prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na Rua Penha de França, freguesia dos Anjos, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob nº … e inscrito na matriz sob o artigo … (1.º) 2. A Autora deslocou-se ao local para conhecer o referido prédio, e também conhecer o proprietário do mesmo – Sr. António.... (2.º) 3. Aí chegada, uma pessoa que se apresentou como António... e dono do edifício, apresentou as partes comuns do mesmo, não tendo mostrado as frações autónomas em virtude de as mesmas se encontrarem arrendadas, mas exibiu e entregou à Autora os correspondentes contratos de arrendamento de todas as frações. (3.º) 4. O alegado...

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