Acórdão nº 6183/13.2TBOER.L1-1 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 05 de Abril de 2016

Magistrado ResponsávelMARIA ADELAIDE DOMINGOS
Data da Resolução05 de Abril de 2016
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.

I–RELATÓRIO: O. Produtos Farmacêuticos, Ld.ª, em 27/09/2013, intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, que corre termos no Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, Cascais, Instância Central, 2.ª Secção Cível, contra: - Hospital Amadora Sintra – Sociedade Gestora, S.A. (1.ª ré); - J. de M. Saúde, SGPS, S.A.

(2.ª ré); - Estado Português (3.º réu), formulando os seguintes pedidos: a)Declaração dos réus devedoras da autora das quantias referentes a todas e cada uma das faturas objeto da ação, e constantes dos documentos n.ºs 9 e 10, num total de €270.156,77, e devedoras de juros legais comerciais vencidos, às taxas legais em vigor, desde a data de vencimento de cada uma das faturas que, à data de 26/09/2013, e computados no doc. n.º 11, ascendem à quantia de €101.979,10.

b)Condenação dos réus a pagarem solidariamente à autora a quantia total em dívida à data de 26/09/2013, no valor de €270.156,77, acrescida de juros vencidos a esta data, no montante de €101.979,10, num total de 372.135,87.

c)Condenação das rés no pagamento de juros comerciais legais vincendos, calculados sobre aquela quantia líquida de €270.156,77, desde 27/09/2013 e até à data do seu efetivo pagamento.

Para fundamentar a responsabilidade dos réus, alegou, em suma: A 1.ª ré, sociedade de direito privado, tem como objeto social a gestão integral do Hospital Professor Doutor .. …. (HFF).

A 1.ª ré, desde 10/10/95 até 31/12/2008, através de um contrato de gestão, vulgo parceira público-privada (PPP), que celebrou com a ARSLVT- Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (Estado), obrigou-se a garantir o acesso a cuidados de saúde prestado pelo HFF a todos os utentes do SNS.

No âmbito da sua atividade comercial de distribuição e comercialização de produtos farmacêuticos, forneceu à 1.ª ré, entre julho de 2008 a dezembro de 2008, diversos medicamentos que a ré não pagou.

A 2.ª ré, sociedade gestora de participações sociais, é responsável solidária pelo pagamento da quantia em dívida por desconsideração da personalidade coletiva, assumindo perante os credores o cumprimento das obrigações da 1.ª ré, sociedade dominada, já que detém o poder de decisão e administração da mesma.

O Estado Português, 3.º réu, é solidariamente responsável ao abrigo dos artigos 500.º e 501.º do Código Civil, por ter celebrado o referido contrato de gestão com a 1.ª ré e por a aquisição e administração de medicamentos à população ter sido feita no interesse e por conta do Estado.

Contestou o ré Estado Português arguindo, para além do mais, a exceção de incompetência absoluta dos tribunais judiciais para julgar a ação, por serem competentes para o efeito os tribunais administrativos, por aplicação do artigo 4.º, n.º 1, alínea f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, já que na alegação da autora estão em causa prejuízos resultantes da sua atividade contratual administrativa desenvolvida para e no interesse público.

Excecionaram, igualmente, as rés a competência material dos tribunais judiciais para conhecerem da ação, por serem competentes os tribunais administrativos, ao abrigo do artigo 4.º, n.º 1, alínea e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, uma vez que são da competência destes tribunais conhecer dos litígios emergentes de contratos de aquisição de bens e serviços celebrados pela 1.ª ré no âmbito do contrato de gestão do Hospital Dr. .... .....

O alegado fornecimento de medicamentos encontra-se, assim, sujeito a um regime pré-contratual de direito público, cuja interpretação e aplicação se encontra na órbita dos tribunais administrativos.

A autora respondeu defendendo a não aplicação ao caso das alíneas e) e f) do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, por a atribuição de competência material assentar na natureza jurídico-privada da relação material controvertida e não na natureza dos respetivos titulares.

Em 18/11/2014, foi proferido despacho que apreciou a exceção da incompetência material dos tribunais comuns para a tramitação da ação (cfr. fls. 2032 a 2041), concluindo nos seguintes termos: “(…) julga-se procedente a excepção dilatória de incompetência material, declarando-se incompetente para a tramitação e julgamento da presente acção os tribunais comuns (designadamente esta 2ª secção da instância central cível do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste) e competentes os tribunais administrativos, e, em consequência, absolvem-se os RR. da instância.” Inconformada, apelou a autora O. apresentando as conclusões de recurso infra transcritas.

Respondeu a 2.ª ré defendendo a improcedência do recurso e a manutenção do despacho recorrido.

O recurso foi admitido conforme despacho de fls. 2209, como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Conclusões da apelação: A.

A sentença recorrida considera competentes as instâncias administrativas para os termos da acção, radicando essa competência na pré-existência de um contrato entre o Estado Português e a 1ª R. através do qual o Estado transferiu para o 1º Réu as funções de prestação de cuidados de saúde às populações (uma Pareceria Público-Privada) e através do qual o 1º R. passou a gerir o Hospital Amadora-Sintra, que será um contrato público, contrato esse que faz caír o mesmo 1º Réu no “regime jurídico do DL 185/02, de 20.08, no tocante às relações da sociedade gestora com terceiros no domínio da contratação, dada a revogação do artigo 31º da Lei 11/93”, e o que determinaria que todos os contratos que o mesmo 1º R. tenha celebrado de fornecimento de bens e serviços ao Hospital que geria, fora, ou deveriam ter sido , celebrados nos termos e no âmbito do regime jurídico do DL 185/02, de 20.08. Ora, “estando em causa o pagamento do preço do fornecimento de bens, o objecto do litígio abrange a execução dos respectivos contratos de fornecimento, que se mostra serem susceptíveis de serem submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público”, pelo que serão competentes os Tribunais administrativos.

B.

Assim não é. Como cremos.

C.

Segundo o artigo 212º, n° 3 da CRP e artigo 1.°, n.º 1, do ETAF a atribuição de competência baseia-se essencialmente num critério material, assente na natureza das relações jurídicas em causa (e não na natureza dos respectivos titulares), sendo que os termos da acção aferem-se em face da natureza da relação material em litígio tal como a autora a configura na acção.

D.

A responsabilidade que nesta acção é assacada ao 1º R. não tem origem na prática de qualquer acto de gestão pública, não podendo, nem de perto nem de longe, afirmar-se que estamos perante uma relação materialmente administrativa, a reclamar a intervenção da correspondente jurisdição para o respectivo julgamento.

E.

A relação jurídica estabelecida por via da celebração destes contratos de compra e venda é uma relação estritamente de direito privado. E a condenação no pagamento ou indemnização peticionadas fluem de patologias de incumprimento de um contrato de direito privado e, portanto, de situações jurídicas exclusivamente reguladas pelo direito privado.

F.

O artigo 4.º, n.º 1, alínea e) do ETAF refere-se a questões relativas à validade de actos pré contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeitos dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré contratual regulado por normas de direito público. E a al. f) a questões decorrentes de contratos administrativos, ou contratos de objecto passível e acto administrativo, ou com regime de direito administrativo, o que não é evidentemente o caso.

G.

Em bom rigor, a pretensão da Autora não é subsumível a qualquer “execução de contrato”, aliás extinto, porque incumprido definitivamente, em função da execução do seu núcleo central: a transmissão da propriedade a título oneroso. A Autora pretende apenas uma indemnização pelo pagamento do valor das facturas que emitiu por fornecimentos que efectuou e cuja validade ou execução não foi posta em causa pelo 1º Réu.

H.

O artigo 38.º do diploma que define o regime jurídico das parcerias em saúde com gestão e financiamentos privados (DL 185/2002, de 20 de Agosto), estipula que “a aquisição de bens e a contratação de serviços necessários à implementação das parcerias em saúde regem-se pelas normas do direito privado, sem prejuízo da aplicação das directivas comunitárias e do acordo sobre mercados públicos, celebrado no âmbito da Organização Mundial do Comércio.”.

I.

Está bom de ver que por directa imposição de lei, estes contratos de compra e venda de medicamentos em causa nos autos estão fora de qualquer relação de natureza administrativa. A aquisição de bens – como os medicamentos que o 1º R. adquiriu – é, e foi, uma aquisição de direito privado, e a condenação no pagamento ou indemnização peticionadas e que são discutidas nos autos fluem assim de patologias de incumprimento de uma relação jurídica de direito privado.

J.

A norma do artigo 38º do DL 185/2002, de 20.08, diz mais: “sem prejuízo da aplicação das directivas comunitárias”. Ora, a directiva comunitária – Directiva 93/36/CEE do Conselho – estipula regras de contratação pública mas apenas para os contratos de fornecimento celebrados por “organismos de direito público”, que não é o caso do 1ª Réu, que é apenas e uma sociedade comercial. E a quem a PPP por si celebrada não travestiu em organismo público, para-público, quase público, ou dotado de poderes de autoridade….

K.

As regras da contratação pública, tal como previstas na lei, designadamente no Código dos Contratos Públicos, ou a Directiva 93/36/CEE do Conselho, são inaplicáveis ao 1º R. Aliás, como ao 2º R., que nem sequer as aplicaram às suas compras.

L.

Ao contrário do sentenciado, nenhuma lei da República, ou da União, atribuiu poderes públicos de contratação ao 1º R.. Pelo contrário, o artigo 38.º do diploma que...

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