Acórdão nº 3882/14.5T9PRT.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 30 de Abril de 2018

Magistrado ResponsávelMARIA MANUELA PAUP
Data da Resolução30 de Abril de 2018
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo n.º 3882/14.5T9PRT.P1 Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: I) Relatório Nestes autos de instrução com o número acima referido que correram termos veio o Ministério Público interpor recurso da decisão proferida pelo Exmo senhor Juiz de Instrução que decidiu não pronunciar o arguido B..., fazendo-o nos termos e com os fundamentos que constam de folhas que ora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, concluindo pela forma seguinte: (transcrição) «1º O presente recurso vem interposto por se discordar da decisão instrutória de não pronúncia, na qual o M. mº JIC considerou que a prova recolhida em inquérito e instrução não é suficiente para levar o arguido B... a julgamento, em virtude de, analisada toda a prova, verificarmos que, a manter-se em julgamento, é muito mais provável a condenação do arguido do que a sua absolvição.

  1. Com efeito, pretendeu o arguido demonstrar em instrução que a quantia de 1.550.000€, que se encontrava depositada na conta solidária de depósitos à ordem n.º ........, sediada no C..., pertencia, não à sociedade D..., da qual era sócio juntamente com o assistente, mas à sociedade E...

    , por força do acordado anteriormente à cessão das posições contratuais relativas à compra e venda de dois imóveis sitos no Porto, onde a D... figurava como promitente compradora.

  2. E que foi por força desse acordo que aquela quantia foi objeto de restituição, alguns meses depois, por parte do arguido, que o fez através de várias entregas, sempre em dinheiro, ao então administrador da E..., o engenheiro F..., entregas que efetuou em restaurantes sitos no Porto.

  3. Ora, esta versão dos factos apresentada pelo arguido no RAI, algo fantasiosa e pouco credível de acordo com as regras da experiência comum e da razoabilidade, não ficou comprovada nos autos com a prova produzida em instrução, já que apenas se estriba nas declarações do arguido prestadas nesta fase.

  4. Pois que, e embora tenha sido novamente inquirido o assistente, este veio manter o que já havia declarado em inquérito, nomeadamente, negou que a quantia em causa nos autos fosse para pagar comissões aos administradores da E....

  5. Sendo certo que a prova que fundamenta a acusação não são, apenas, as declarações do assistente, mas também a prova documental constante nos autos e indicada na acusação, da qual resulta, inequivocamente, que no dia 22/4/2003 o arguido preencheu e assinou o cheque n.º .........., no montante de 550.000€, sacado sobre a conta solidária de depósitos à ordem n.º ........, sediada no C..., onde se encontravam depositadas as quantias pagas pela E... à D... e que no dia 9/4/2004 o arguido preencheu e deu ordem a que fosse efetuada uma transferência, no valor de 1.000.000 €, da mesma conta para uma conta pessoal de que era titular.

  6. Aliás, o arguido não põe em questão a veracidade de tais factos e documentos, nem na decisão instrutória os mesmos são questionados, sendo, até, dados como assentes.

  7. Ora, nesta fase meramente indiciária, as declarações do arguido, desacompanhadas de outra prova, não são suficientes para abalar a prova que sustenta a acusação, tanto mais que nenhuma outra prova produzida em instrução corrobora a versão do arguido.

  8. De facto, do depoimento da testemunha G...

    , inquirido em instrução, apenas resulta que ele, enquanto TOC da D..., teve conhecimento da cedência da posição contratual nos dois contratos em causa nos autos numa reunião que teve com os sócios da D... (arguido e assistente) por causa das mais-valias que essas cessões geraram, de quase 1.500.000€, num dos contratos, e de 700.000€, no outro, reunião que visava, segundo referiu esta testemunha, calcular o valor dos impostos a pagar em virtude dessas cedências.

  9. No decurso deste depoimento veio a testemunha a referir que soube pelo arguido que 1.500.000€ eram para pagar comissões aos administradores da E..., mas que desconhecia se foram ou não pagos e o que aconteceu ao dinheiro, bem como referiu que mais tarde o assistente ter-lhe-á dito que aquela quantia foi levantada pelo arguido.

  10. Ou seja, e no fundo, esta testemunha sabe apenas o que o arguido e assistente lhe contaram das suas versões dos factos, sendo certo que, e segundo o seu depoimento, temos de concluir que as quantias recebidas e em relação às quais iria calcular o valor dos impostos na referida reunião, eram, efetivamente, o pagamento pela cedência da posição contratual da D... naqueles dois contratos, portanto, eram pertença da sociedade D....

  11. Em relação ao depoimento da testemunha F...

    , na altura administrador da sociedade E..., o mesmo foi bastante lúcido, apesar da idade, sobretudo, quando descreveu como a D... intermediou nos dois negócios de compra e venda de dois terrenos sitos no Porto.

  12. Disse, também, e recorrendo a documentos que trazia, quais os montantes e as datas em que foram entregues à D..., pagos sempre por cheques, que o benefício para esta empresa na cessão da posição contratual nos dois contratos foi, no total, 2.238.950€, tendo frisado, logo desde o início, que destas quantias não houve retorno para a E...

    .

  13. Mais disse esta testemunha, questionada diretamente sobre o que o arguido tinha dito em instrução, nomeadamente, que lhe tinha entregado aquelas quantias, em dinheiro e em restaurantes do Porto, no total de cerca de 1,5 milhão de € e que tais quantias se destinavam a pagar comissões aos administradores da E..., continuou a dizer, embora invocando que já tinha perdas de memória, que não recebeu quaisquer quantias.

  14. E mesmo depois de o Sr. Juiz ter questionado arguido, presente na diligência, se mantinha as suas declarações, o que ele manteve, esta testemunha, confrontada com essas declarações, disse, ao fim de cerca de 2 horas de inquirição, que lamentava que o arguido dissesse isso, mas que “não tinha ideia nenhuma disso”, expressão que o M. mº JIC considerou estranha porque, perante as afirmações do arguido, a testemunha deveria ter reagido “ de modo veemente, e até com indignação”, olvidando o Sr. Juiz o que esta testemunha havia referido no início do seu depoimento e o cansaço que certamente já sentia depois de ter estado aquele tempo a ser inquirida! 16º Assim, temos de concluir que o M. mº JIC incorreu em erro ao apreciar a prova, sobretudo a produzida em inquérito, nomeadamente, a documental, que olvidou, mas também a produzida em instrução, pois que olvidou todo o depoimento da testemunha F...

    , que não corroborou a versão do arguido e, por isso, não lhe deu credibilidade, cingindo-se o Sr. Juiz apenas a uma expressão proferida por esta testemunha, já depois de várias vezes instado sobre a mesma questão.

  15. Em todo o caso, e mesmo que não se valore o depoimento da testemunha F..., porque dele nada se pode retirar quanto à confirmação ou infirmação da versão do arguido em face das suas invocadas falhas de memória, o certo é que, a existir nos autos duas versões diferentes dos factos, como o m. Mº JIC refere na decisão em recurso, a versão da acusação continua oferecer maior credibilidade, segundo as regras da experiência comum e da razoabilidade, do que a versão do arguido, até porque é objetiva, fundada em documentos existentes nos autos e cuja veracidade não foi impugnada pelo arguido.

  16. O M. mº JIC, ao não pronunciar o arguido, para além de incorrer em erro na apreciação da prova, também não a valorou à luz do disposto no artigo 127º do CPP – que refere que, exceto quando a lei disser o contrário, “… a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” -, pois que se o tivesse feito, a decisão teria de ser de pronúncia do arguido.

  17. De facto, e de acordo com aquele preceito legal, embora o juiz tenha alguma discricionariedade na apreciação da prova, deve apreciá-la por apelo à sua experiência (aqui incluída a experiência do homem comum suposto pela ordem jurídica) e ao serviço da averiguação da verdade.

  18. E se é certo que a reconstituição exata dos factos é impossível (porque o juiz não lhes acede), certo é também que o processo não se basta com a verdade formal, visando-se, sempre, a verdade material acessível ao nosso conhecimento, afastada da influência que a acusação e a defesa exerçam sobre ela, verdade material no sentido de verdade judicial, obtida de forma processualmente válida.

  19. Por outro lado, e embora a convicção do julgador não se forme contabilizando os depoimentos e decidindo de acordo com o números de afirmações feitas para cada lado, não exigindo, também, coincidência absoluta entre todos os depoimentos relevados, temos por certo que a liberdade de apreciação concedida ao julgador não pode ser arbitrária.

  20. O juiz pode ter sempre uma margem de liberdade, mas dentro dos limites fixados na lei, constituídos por determinados vetores, essenciais e que integram a base do nosso sistema processual penal, e que são o grau de convicção exigido para a decisão, a proibição de determinados meios de prova e o respeito absoluto pelos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.

  21. Por isso, a apreciação da prova feita pelo Juiz (neste caso o Juiz de Instrução Criminal) está sempre subordinada à lógica, à psicologia, às máximas da experiência e só, então, respeitadas estas máximas, poderá ser formada a sua convicção.

  22. Só depois de percorrido este caminho deve surgir a decisão, que mais não é do que a opção por uma das versões em conflito no processo, já que, conforme nos ensinam as regras da experiência, na esmagadora maioria dos casos defrontam-se, pelo menos, duas versões do julgamento da causa, como se verifica no presente caso.

  23. Pelo que, não sendo opção do julgador não decidir, terá ele que fazer a sua opção, de acordo com as regras supra enunciadas.

  24. Ora, ao decidir como decidiu, que não existiam indícios suficientes de o arguido B... ter praticado os factos de que vinha acusado, suscetíveis de integrar a prática de um crime de abuso de confiança, assim não o pronunciando, o M. mº JIC...

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