Acórdão nº 823/12.8JACBR.C1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 12 de Novembro de 2015

Magistrado ResponsávelMANUEL BRAZ
Data da Resolução12 de Novembro de 2015
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: O tribunal de 1ª instância, por acórdão de 23/04/2014, condenou o arguido AA -a 15 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artº 171º, nº 1, do CP; -a 4 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artº 171º, nº 2; -a 3 anos e 4 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, da mesma previsão legal; e -em cúmulo jurídico, na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão.

O arguido interpôs recurso para a Relação de Coimbra, que, por acórdão de 18/03/2015, decidiu: -considerar apenas tentado o primeiro dos indicados crimes, aplicando por ele a pena de 9 meses de prisão; -manter as penas singularmente aplicadas pelos dois outros crimes; -aplicar, em cúmulo jurídico, a pena única de 6 anos de prisão.

Ainda inconformado, o arguido interpôs recurso do acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a sua motivação nos termos que se transcrevem: «1. A Douta decisão tirada pelo Tribunal da Relação de Coimbra interpreta o disposto no artigo 374º, nº 2 do CP Penal como apenas impondo ao Decisor Judicial a obrigação de se pronunciar sobre a prova que serviu para formar a sua convicção.

  1. Salvo o devido respeito tal espécie de hermenêutica é absolutamente insustentável e colide fragorosamente com as repercussões associadas ao dever de fundamentação.

  2. Na verdade, este implica que se explicite expressamente a razão da opção seguida, examinando criticamente a prova, para o que deve explanar - ainda que sucintamente - as razões por que valorou ou deixou de valorar os momentos probatórios produzidos.

  3. Com efeito, a fundamentação é um exercício dialógico de persuasão para o que é indispensável a discussão com o que corrobora a acusação, bem como o que dela disside, 5. Sob pena da sentença se tomar um monólogo opaco em que o arguido de sujeito processual passa a mero ouvinte, passivo e alheado, da prova carreada aos autos por quem o acusa.

  4. Assim, tal concepção do dever de fundamentação baseado numa interpretação unívoca do citado artigo 374º/2 do CP Penal viola a disposição contida no artigo 205º, nº 1 da CRP.

  5. Na verdade, tal inciso da Lei Fundamental estrutura uma aspiração crucial de um processo penal Democrático que é dotar as decisões judiciais - principalmente as tendencialmente finais - de transparência, enquanto garantia da operatividade do Estado de Direito.

  6. Por outro lado, sempre salvaguardando o respeito devido, a Douta decisão incorre na nulidade por omissão de pronúncia, prevista na aI. c) do nº 1 do artigo 379º, também do CP Penal.

  7. Na verdade, propugna pela improcedência do recurso em matéria de facto, sem curar de reapreciar a prova indicada pelo recorrente nas conclusões que teceu, em cumprimento do disposto no artigo 412º, nº 3, aIs. b) e c).

  8. Desde logo, dir-se-á, o recorrente cumpriu - ao que se crê, escrupulosamente - tal injunção legal.

  9. Com efeito, isolou os factos tidos por "incorrectamente julgados", baseou tal asserção lapidar nos meios de prova que confortarão essa conclusão e remeteu expressamente para os minutos, de acordo com a acta da audiência de discussão e julgamento, em que tais declarações se produziram.

  10. Neste conspecto, a objecção de que o recorrente quer ver substituída a respectiva convicção em detrimento daquela dos Julgadores é um ininteligível jogo semântico.

  11. Efectivamente, o que o recorrente almejava - e segundo uma faculdade que a Lei lhe assegura - era a ponderação de momentos probatórios - individualizados - bem como a discussão ampla e abrangente da globalidade da prova produzida, 14. Onde avultariam, designada e necessariamente, os segmentos em que incidiu o seu esforço recursivo, exactamente por que os mesmos foram desconsiderados pelo Tribunal a quo.

  12. Ou seja, não se trata da substituição da convicção de um leigo por uma de Juízes; trata-se, tão só mas indiscutivelmente, de trazer à liça elementos probatórios que foram ignorados sem que a decisão de que se recorria houvesse justificado racionalmente tal omissão.

  13. Nesta confluência, estava-se (segundo se julga) dentro do âmbito do direito ao recurso em matéria de facto que postularia uma reapreciação da globalidade da prova produzida e a resposta à questão verdadeiramente essencial, até para a ideia do Estado de Direito: 17. Por que razão se valoram umas provas e não outras? 18. E será bastante, paradigmaticamente, dizer que não se crê numa testemunha porque ela quer acreditar na inocência de quem está acusado? 19. Ora, ao não debater estas questões, nomeadamente não reapreciando a prova indicada pelo arguido/recorrente, o Douto Acórdão deixou de conhecer questão que a Lei lhe impunha a cognitividade, 20. Incorrendo no referido vício elencado na citada aI. c) do nº 1 do art. 379º do CPP, aplicável por força do nº 4 do artigo 425º do mesmo diploma.

  14. Por outro lado, resulta da Douta Peça em recurso que o arguido/recorrente e a testemunha/ofendida mantiveram sempre versões diametralmente opostas sobre o que ocorreu entre eles.

  15. Também resulta da leitura do Douto Acórdão recorrido que a testemunha teve declarações distintas relativamente aos únicos episódios minimamente concretizados que são imputados ao recorrente.

  16. Como resulta que o recorrente sofre de uma patologia peniana traduzi da numa curvatura bastante pronunciada, resultante de uma atrofia muscular, que torna tal órgão de aspecto anormal - circunstancialismo em que a menor não reparou.

  17. Por outro lado, o exame médico-legal (constante de fls. 248 a 250 dos autos) atesta a inexistência de vestígios físicos de actos sexuais.

  18. E o exame "avaliação psicológica" adverte que haverá indícios comportamentais e psicológicos - não constituindo tal nada de definitivo - de que a menor poderá ter sido vítima de abusos.

  19. Neste quadro, sacrificou-se - inexoravelmente - o princípio da presunção da inocência com plasmação constitucional no artigo 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, 27. Exactamente enquanto princípio probatório traduzido na ideia do in dubio pro reo.

  20. Este postulado impunha, de facto, que a escassez probatória demonstrada nos autos fosse valorada a favor da posição processual do arguido, ora recorrente.

  21. Na medida em que, de acordo com a respectiva impressiva formulação, mais vale absolver um culpado do que condenar um inocente.

    Sem prescindir, 30. Todavia, mesmo que assim se não entenda, a dupla condenação por um crime de trato sucessivo, ou exaurido, do artigo 171º/2 do CP (por factualidade compreendida até ao Verão de 2012) e por um acto isolado que terá sido perpetrado em 14/09/2012 emerge juridicamente insustentável.

  22. Com efeito, a lógica imanente à dita categoria de crime ancora na reiteração sucessiva de factos de idêntica natureza e na subsequente impossibilidade de os determinar.

  23. Supõe, assim, a convenção da existência de um só crime - apesar das condutas que, isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave quanto mais repetido.

  24. Ora, a espécie de condenação, pela natureza da figura, é unificadora e esgotante, como inculca o sentido da palavra exaurido.

  25. No entanto, em absoluta antinomia com tal significado semântico e jurídico, condenou-se o arguido por conduta isolada, já contida no período temporal abrangido pela sobredita condenação.

  26. Ou seja, o episódio de 14 de Setembro de 2012 é punido como actividade integrada nos abusos diários decorridos até ao Verão de 2012 e como acto isolado … 36. Em flagrante colisão com o disposto no artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa que comanda que "ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime", assim consagrando o chamado princípio do non bis in idem.

  27. Princípio que proíbe a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime.

  28. Sendo certo que as objecções que o Douto Acórdão em recurso efectua no que tange à sobredita leitura não colhem.

  29. Na verdade, o arguido nunca defendeu a existência de um crime continuado (antinómico, até, com o dito crime de trato sucessivo), nem de um crime único.

  30. Por outro lado, a argumentação da diferente contextualização espacial e temporal dos factos não colhe relativamente a este pedaço de história supostamente ocorrido em 14 de Setembro de 2012.

  31. Na verdade, relativamente a ele inexiste qualquer novidade espacial e, tão pouco, existe qualquer ruptura temporal.

  32. Ou seja, ressuma perspícuo que o mesmo se integra na amálgama inserta na condenação por "crime de trato sucessivo" preconizada pelo Tribunal de primeira instância.

  33. Sendo irrelevante a declaração do Acórdão agora recorrido de que não se revê em tal qualificação - de facto, da mesma não é extraída qualquer repercussão jurídica, razão por que se mantém a operação subsuntiva levada a cabo pelo tribunal Colectivo; i. é, a condenação concomitante por um crime de trato sucessivo ocorrido entre fim de 2010 e o Verão de 2012 e de um acto isolado, da mesma espécie, em 14 de Setembro...

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