Acórdão nº 664/05.9TBENT.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 01 de Junho de 2017
Magistrado Responsável | TOMÉ GOMES |
Data da Resolução | 01 de Junho de 2017 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: I – Relatório 1. AA (A.) intentou, em 26/09/2005, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra a sociedade BB - Construção Civil de O..., Lda. (1.ª R.), e CC (2.º R.), alegando, no essencial, que: .
O A. celebrou com a 1.ª R., em 03/03/2003, um contrato-promessa para aquisição de uma moradia pelo valor de € 184.555,23, entregando a quantia de € 10.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento, tendo acordado que o pagamento do remanescente seria liquidado através da entrega, por parte do A., do seu apartamento correspondente à fração G, no valor de € 54.867,77, bem como de outro apartamento correspondente à fração L e da garagem correspondente à fração C, aos quais atribuíram o valor € 69.831,71, ficando o remanescente do preço de ser pago aquando da outorga da escritura do contrato prometido; .
A fim de realizarem o negócio prometido, o A. e a 1.ª R. celebraram um contrato de permuta, pelo qual aquele entregou as frações C e L, nos valores de € 4.000,00 e de € 61.000,00, recebendo em troca a moradia, a que atribuíram o valor simulado de € 115.000,00, tendo ainda o A. entregue à 1.ª R. € 50.000,00; .
Foi também outorgada pelo A. ao sócio-gerente (aqui 2.º réu) da 1.ª R. uma procuração irrevogável, tendo por referência a fração G, como forma de dar cumprimento ao contrato-promessa; .
Assim, para a realização do contrato prometido, o A. pagou aos R.R. o total de € 184.699,48, compreendendo a entrega dos seguintes valores: € 10.000,00, em 03/03/2003, com a assinatura do contrato-promessa; € 54.867,77, em 26/03/2003, equivalente ao valor da fração G; € 69.831,71, em 26/03/2003, equivalente ao valor da frações L e C; € 50,000,00 entregues na data da escritura prometida; .
Em virtude de problemas de saúde, o A. solicitou aos R.R. o distrate do contrato de permuta celebrado, bem como a revogação da procuração referida, de forma a ser-lhe restituída a importância por si entregue, o que obteve a concordância dos R.R.; .
Porém, os R.R. apenas restituíram ao A. as duas frações mas não a quantia de € 10.000,00; e do montante de € 50.000,00 foi-lhe entregue um cheque “dobrado” no valor de € 29.927,87, estando, portanto, em dívida o total de € 30.072,13.
Concluiu o A. a pedir que os R.R. fossem condenados, solidariamente, a pagar-lhe: i) - a quantia de € 10.000,00, relativa ao preço que lhes entregou a título de sinal e de princípio de pagamento; ii) - a quantia de € 20.072,13, respeitante ao valor restante do preço que o A. pagou pela diferença de valores a mais do negócio distratado; iii) – os juros de mora, à taxa legal, desde a citação, sobre aquelas quantias.
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Os R.R. contestaram, arguindo as exceções da falta de representação judiciária e da ilegitimidade do 2.º R., sustentando, no mais, que: .
Não foi alegada matéria factual bastante para a demonstração da simulação nem que suporte a invocada solidariedade da dívida; .
O A. foi quem incumpriu o contrato-promessa, já que não ocorre sobreposição entre o mesmo e o contrato de permuta celebrado, não abrangendo este uma fração que constava daquele e que não estava registada em favor do A.; .
Não existiu a entrega de qualquer “cheque dobrado”; .
O A. atuou com abuso de direito, ao lembrar-se dos € 30.072,13 decorridos dois anos sobre o distrate.
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O A. apresentou réplica, a pugnar pela improcedência das exceções deduzidas e a refutar o alegado abuso de direito, afirmando que o lapso temporal decorrido se deveu às tentativas de resolução da questão.
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Findos os articulados, foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual foram julgadas improcedentes as exceções dilatórias de falta de representação judiciária e de ilegitimidade do 2.º R, bem como a invocada falta de alegação de matéria factual, na eventual perspetiva de ineptidão da petição inicial, seguindo-se a seleção da matéria de facto tida por relevante com a organização da base instrutória.
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Realizada a audiência final e decidida a matéria de facto controvertida conforme despacho de fls. 232-233, foi proferida a sentença de fls. 236-257, datada de 10/04/2014, a julgar a ação parcialmente procedente e consequentemente: a) – a condenar a 1.ª R. BB – Construção Civil de O…, Ld.ª, a pagar ao A. a quantia de € 20.072,13, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento, e a absolvê-la no mais contra ela peticionado; b) – a absolver o 2.º R. CC do pedido.
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Inconformada, a 1.ª R. recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, mediante impugnação de facto e de direito, tendo a apelação sido julgada improcedente, confirmando-se a sentença recorrida, conforme o acórdão de fls. 399-414, datado de 08/09/2016.
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Mais uma vez inconformada, vem a mesma R. pedir revista, formulando as seguintes conclusões: 1.ª - A matéria de facto impugnada pelo recorrente foi art.º 14.º-A da base instrutória onde se perguntava se “os réus deixaram de entregar ao A. as quantias referidas nos pontos 13 e 14 da base instrutória por assim o terem acordado com este”, o qual foi dado como “não provado” e cuja resposta ao quesito deveria ter sido provado, o que facilmente se constata da análise do recurso, bastando atentar nos artigos 39.º, 40.º e 42.º das alegações de recurso, conjugados com o depoimento das testemunhas transcrito pelo recorrente e com a análise que é feita aos mesmos depoimentos; 2.ª - O recorrente indicou a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre as concretas questões impugnadas, ou seja, o artigo 14.º-A da base instrutória; 3.ª - Logo não poderia o recurso apresentado pela recorrente ser rejeitado com base na inobservância do disposto no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPC, porquanto o recorrente deu cumprimento a tais disposições; 4.ª - Em consequência disso, deveria o Tribunal “a quo” ter apreciado recurso quanto à matéria de facto; 5.ª - Face aos factos considerados provados na sentença verifica-se a existência de um contrato-promessa de compra e venda efetuada entre o A. AA e a 1.ª R. BB – Construção Civil de O…, Ld.ª, em 03/03/2003 e a entrega de € 10.000,00 pelo A. à 1.ª R.; 6.ª - Tendo a mesma escritura de promessa de compra e venda sido concretizada através de uma escritura de permuta e ainda na constituição de uma procuração irrevogável passada pelo A. a favor do gerente da 1.ª R., o 2.º R. CC, ocorridas a 26/03/ 2003; 7.ª - Verifica-se, face ao descrito, que o A. entrou na posse do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial do Entroncamento sob o n.º 57…, omisso na respetiva matriz mas solicitada a sua inscrição em 24/10/2002; 8.ª - E a escritura de distrate do negócio efetuado apenas ocorreu a 14/05/2003 e a procuração irrevogável apenas foi revogada com o consentimento do 2.º R. no dia 15/05/2003; 9.ª - Tendo, portanto, decorrido um período de quase dois meses, que o A. tomou posse e ocupou o imóvel objeto de permuta e referido no artigo 13.º; 10.ª - E apenas em 14 e 15 de maio de 2003 foram efetuadas as escrituras de distrate e revogação com consentimento da procuração irrevogável; 11.ª - Atentando no critério do homem médio, que este tipo de negócio não era do interesse da R. e apenas e só do interesse do A., uma vez que o interesse e o fim das sociedades é o lucro, e o negócio tal como configurado pelo A., nenhum lucro trouxe à sociedade; 12.ª - Nenhuma sociedade aceitaria distratar uma permuta sem qualquer contrapartida, muito menos uma sociedade que se dedica precisamente à compra e venda de imóveis, motivo pelo qual o A. acordou receber apenas e só a quantia de € 29.297,87 € e declarar na escritura que recebera os € 50.000,00; 13.ª - Ora, é justamente este padrão abstrato, meio estatístico, meio normativo, como critério para aferir os cuidados devidos nas mais variadas circunstâncias. O bom pai de família é, por isso, um padrão para aferir a culpa, mas a palavra «culpa» tem aqui um significado também técnico. Não está em causa toda e qualquer apreciação dos comportamentos, mas apenas a aferição dos cuidados que, em certa ocasião, devam ser tomados; 14.ª - Assim verifica-se que, face ao conceito plasmado no artigo 487.º do CC, isto é, o conceito de um bom pai de família, jamais se poderia sequer pensar que, após se ter efetuado o negócio constante dos presentes autos, o mesmo seria desfeito sem quaisquer contrapartidas, tanto mais sendo um dos intervenientes uma sociedade; 15.ª - Ao ser desfeito o negócio através da escritura de distrate e da revogação da procuração irrevogável, o conceito do “bom pai de família” obriga a aceitar que a R. tenha de ser ressarcida de algum valor; 16.ª - É este mesmo conceito que deve ser aplicado ao chamado cheque “dobrado”, pois é impossível alguém receber um cheque e, após o ter recebido não o ter verificado, se fizesse logo pelo menos tê-lo-ia verificado, no caso dos presentes autos até à assinatura da escritura de distrate; 17.ª – Porque, recebendo um cheque no valor de € 29.297,87, ninguém vai posteriormente assinar uma escritura a dizer que recebeu € 50.000,00 senão tiver acordado previamente isso mesmo, obviamente que o A. se recusaria a assinar a escritura de distrate, como qualquer comum mortal, o que não aconteceu; 18.ª - E não aconteceu porque obviamente era o que estava previamente acordado entre as partes e só por má fé pode o A. alegar o contrário. Pede a Recorrente que se revogue o acórdão recorrido e se absolva a 1.ª R. do pedido.
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O Recorrido apresentou contra-alegações em que começa por arguir a inadmissibilidade da revista por verificação de dupla conforme e, quanto ao objeto do recurso, pugna pela confirmação do julgado.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Quanto à questão prévia da inadmissibilidade da revista arguida pelo Recorrido O A. Recorrido arguiu, a título de questão prévia, a inadmissibilidade da revista por considerar que se verifica dupla conforme nos termos prescritos no n.º 3 do artigo 671.º do CPC.
Sucede que, tendo a ação sido proposta em 26/09/2005 e as...
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