Acórdão nº 07P1008 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 25 de Junho de 2008

Magistrado ResponsávelCARMONA DA MOTA
Data da Resolução25 de Junho de 2008
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)
  1. O ACÓRDÃO FUNDAMENTO Em 18Out06, a Relação do Porto (1), no recurso 3539/06-4, «entendeu fundada uma interpretação que não atribuísse ao n.º 2 do artigo 2.º da Lei 30/2000 uma função vinculativa, que arredasse do ilícito de mera ordenação social as situações de consumo e de aquisição ou detenção de droga para consumo em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, mas lhe reservasse uma função meramente indicativa ou orientadora».

  2. O ACÓRDÃO RECORRIDO Porém, a mesma Relação (2), em 22Nov06, veio a sustentar, no recurso 4664/06-1, que «o disposto no artigo 40.2 do DL 15/93 terá sempre a sua aplicação desde que o estupefaciente destinado ao consumo seja de quantidade superior à prevista no artigo 2.2 da Lei 30/2000».

  3. O RECURSO EXTRAORDINÁRIO 3.1. O MP (3) , ante tal «oposição de julgados», deduziu, em 15Dez06, «recurso extraordinário», propondo que o Supremo assente jurisprudência no sentido de que «a aquisição ou detenção de estupefacientes para consumo próprio de uma quantidade superior à necessária para consumo médio individual durante o período de 10 dias integra a contra-ordenação prevista no artigo 2.º da Lei 30/2000, de 29Nov».

    3.2. Em 17Mai07, o Supremo Tribunal de Justiça, reconhecendo a invocada «oposição de julgados», admitiu o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência oposto em 15Dez06, pelo MP, ao acórdão da Relação do Porto que, em 22Nov06, decidira, com trânsito em julgado, que «o disposto no artigo 40.2 do DL 15/93 teria sempre a sua aplicação desde que o estupefaciente destinado ao consumo seja de quantidade superior à prevista no artigo 2.2 da Lei 30/2000».

    3.3. Dos sujeitos processuais interessados, notificados para apresentarem, por escrito, as suas alegações (artigo 442.1. e 2), só o MP (4) as apresentou, promovendo, em 25Jun07, que se uniformizasse jurisprudência no sentido de que «a detenção ou aquisição de produto estupefaciente, para consumo próprio, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias, integra o crime previsto e punido no artigo 40º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro»: «Crê-se que será de toda a conveniência, para já, reflectir por um lado no tratamento dispensado, no âmbito do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, à problemática do consumo de estupefacientes, primeiro em si mesmo e por referência ao tráfico objecto de previsão nos artigos 21º, 25º e 26º e depois por confronto com o ora preconizado na Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro e, por outra via, ponderar as razões de ordem estratégica que, na luta contra a droga, estiveram na génese da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro e de que é dado o devido esclarecimento na Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99 (D.R. n.º 122/99, 1ª Série B, de 26.05.1999), ao abrigo da qual foi aprovada a Estratégia Nacional da Luta contra a Droga (5). Nesta perspectiva, caberá ter presente que no Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro - estabelecendo-se claramente a distinção entre o "tráfico e outras actividades ilícitas" e o "consumo", traduzida na interligação que o artigo 21º fazia com o artigo 40º e definindo-se como crime quer uma quer outra das condutas - contanto que se apurasse que o cultivo, a aquisição ou a detenção de estupefaciente eram para consumo próprio, apartada ficava desde logo a possibilidade de uma dessas actividades vir a ser punida como tráfico, qualquer que fosse a quantidade da droga detida, cultivada ou adquirida. Quer-se com isto dizer que, ao invés do que viria a suceder com a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro não estabelecia qualquer limite quantitativo para efeitos de definição de uma dada conduta como consumo e como assim para distingui-la do tráfico. Desta sorte, e como bem decorre do estatuído no n.º 2 do artigo 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (que prevê e sanciona com pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias a cultivo, a detenção, a aquisição de plantas, substâncias ou preparações em quantidade que exceda a necessária para consumo médio individual durante o período de 3 dias), não é a quantidade mais ou menos elevada em causa que exclui a sua aplicação, do mesmo passo que não é a quantidade mais ou menos diminuta em presença que fará afastar a aplicação do artigo 21º e seguintes, no que ao tráfico diz respeito, se tiver ficado apurado que ao consumo pelo próprio não se destinavam as aludidas plantas, substâncias ou preparações. Algo diversamente, porém, aconteceu com a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro que - conquanto não houvesse alterado substancialmente os termos da questão, estabelecendo que o consumo, a aquisição ou a detenção para consumo próprio até determinada quantidade (não excedente à necessária para consumo médio individual durante 10 dias, artigo 2º, n.º 2) passariam a integrar mera contra-ordenação - deixou de fora um largo número de condutas até então contempladas no artigo 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Condutas que - desde o cultivo para consumo (independentemente da quantidade em causa), objecto de expressa salvaguarda na norma revogatória do artigo 28º da mesma Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, até à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de quantidades superiores às referidas no seu citado n.º 2 do artigo 2º, o cerne da questão controvertida -, se não fossem os termos em que se encontra redigida a aludida norma revogatória do artigo 28º, todos concordariam que continuavam a ser abrangidas pela previsão do artigo 40º. Feitas estas breves considerações, importa reflectir que, na génese da Lei 30/2000, de 29 de Novembro (que definiu "um novo regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas bem como à protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias, sem prescrição médica", descriminalizando essas condutas e revogando o artigo 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41º do mesmo diploma, convertendo-as em ilícito de mera ordenação social), ponderaram razões de ordem vária que vão desde a necessidade de o aparelho judicial dever estar afecto ao combate do tráfico de drogas e da criminalidade complexa que lhe anda associada (branqueamento de capitais, associações criminosas, tráfico de armas, corrupção, etc.) e, por via disto, isentá-lo da luta contra outros ilícitos de menor gravidade e relevância como o consumo de substâncias da aludida natureza, que passam pelas ilações a retirar dos desencorajadores resultados obtidos com a criminalização até então feita destas condutas consideradas menos desvaliosas como forma de dissuadir os consumidores de drogas a utilizarem-nas e que desembocam na diferente perspectiva como devia ser encarada a problemática do consumo e o drama do consumidor: mais um doente a reclamar medidas de protecção sanitária e social, do que um criminoso. E não obstante este evidente e aliás confessado propósito descriminalizador, benfazejo para o consumidor (6), face ao que decorre quer da Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99, de 26.05.1999, pela qual a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro foi aprovada, quer do próprio texto desta, dúvidas não subsistem de que com o novo regime jurídico visou o legislador não legalizar de todo o consumo das referidas substâncias mas, apenas e tão só, descriminalizar as situações que, com ele relacionadas, considerava revestirem-se de menor gravidade, como, de resto, foi profusamente proclamado e com linear nitidez flui do que ficou estatuído, primeiro nos artigos 1º e 2º e, depois, no artigo 28º da mesma Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro. Feito que fica este apontamento e não perdendo de vista a questão concreta em análise [o modo como enquadrar sob o ponto de vista jurídico - isto, naturalmente, para o caso de se considerar que a entrada em vigor da lei nova não comprometeu tal possibilidade - as condutas consistentes na detenção ou aquisição de estupefacientes para consumo próprio que, antes abrangidas pelo n.º 2 do artigo 40º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, escaparam à sua directa previsão, por a quantidade em causa exceder a necessária para consumo médio individual durante 10 dias (n.º 2 do artigo 2º do mesmo diploma legal)], importará, então e na sequência de tudo quanto mais atrás se aduziu, expor as razões por que se entende que a verificada oposição de acórdãos deverá ser resolvida nos termos do decidido no acórdão recorrido. Porém, para cumprir tal desiderato, importará desenvolver um esforço para interpretar as normas convocadas para o efeito (maxime, a norma revogatória do artigo 28º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro). Esforço de interpretação que - passando por chamar à colação o artigo 9º do Código Civil, que regula genericamente a matéria relativa à interpretação da lei, tendo por fio condutor a ideia de que ela deverá reconstituir, a partir dos correspondentes textos, o pensamento do legislador, possuindo como parâmetros a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições especificas do tempo em que é aplicada e tendo como seus limites os princípios da legalidade, que veda o recurso a analogia, e da tipicidade - há-de permitir descobrir o sentido que se encontra por detrás da respectiva expressão e, dentro das suas significações possíveis, eleger a que, coincidente com o que se presume ter sido a vontade real do legislador, constituirá a verdadeira e decisiva, no dizer de Pires de Lima e Antunes Varela (7). E não deixando de ser certo que, em sede de interpretação jurídica, o texto da lei constitui importante elemento de interpretação, não é todavia o elemento literal o único nem porventura o mais valioso, devendo por isso e a par dele curar de apelar-se ao elemento lógico-racional, conjugando-o com os elementos histórico e sistemático (8). Fazendo então uso deste indispensável instrumento de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT