Acórdão nº 0878/08 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 30 de Outubro de 2008

Magistrado ResponsávelCOSTA REIS
Data da Resolução30 de Outubro de 2008
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

A... propôs, no TAF de Lisboa, nos termos do art.º 109.º e seg.s do CPTA, a presente intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, pedindo que a Federação Portuguesa de Futebol fosse "intimada, de imediato, a desentranhar do processo disciplinar n.º 14-07/08, no qual é arguido, as certidões passadas pelo DIAP do ... e pelos Serviços do Ministério Público de ..., constituídas pelas transcrições das conversas telefónicas que lhe foram interceptadas no âmbito dos processos-crime n.ºs 3145/06.0TDPRT e 220/03.6TAGDM, entregando-as ao ora Requerente." Subsidiariamente, para o caso de se entender que não se verificavam os pressupostos deste meio processual, requereu "a convolação da presente petição na providência cautelar que se entender adequada à situação dos autos requerendo-se expressamente, para essa eventualidade, o decretamento provisório da mesma nos termos do art.º 131 do CPTA.

" Para tanto, e em síntese, alegou que a manutenção das referidas transcrições no indicado processo disciplinar constituíam uma violação do direito à reserva da intimidade da sua vida privada, constitucionalmente reconhecido.

Mas sem êxito já que, por sentença de 12/08/2008, aquele pedido foi julgado improcedente.

Inconformado o Requerente recorreu per saltum para este Tribunal para o que formulou as seguintes conclusões: A) A sentença em recurso faz uma incorrectíssima apreciação do pedido formulado, dos factos trazidos ao pleito e, mais ainda, dos pressupostos de que depende o deferimento do meio processual utilizado, confundindo conceitos e precipitando-se em conclusões que se impunham de sentido inverso.

B) Segundo a doutrina desenvolvida em apreciação do citado preceito são pressupostos do pedido de intimação os seguintes: (i) A existência de um direito, liberdade e garantia constitucionalmente consagrado que se encontre ameaçado ou violado; (ii) A necessidade de emissão célere de uma decisão de mérito do processo que seja indispensável para a protecção do direito, liberdade ou garantia ameaçado ou violado, por não ser possível ou suficiente o decretamento provisório de uma providência cautelar, no âmbito de uma acção administrativa normal (comum ou especial); (iii) Que o pedido se refira à imposição de uma conduta positiva ou negativa à Administração ou a particulares.

C) Os direitos que o recorrente visa proteger com a presente intimação são os direitos à palavra e à reserva da vida privada, constitucionalmente consagrados e garantidos pelo art.ºs 26.º 1 e 34.º n.º 4 da CRP.

D) Direitos esses que estão directamente ao serviço da protecção da esfera nuclear das pessoas e da sua vida e, por isso, são integrantes de uma categoria específica, em que estão também o direito à vida e à integridade pessoal.

E) No que diz respeito ao direito à palavra, tal como outros direitos de personalidade, este goza de protecção penal, constituindo igualmente um limite de outros direitos fundamentais, que com eles possam conflituar.

F) Ora, é atendendo a esta especial categoria que a doutrina entende que o direito à palavra "implica a proibição de escuta e/ou gravação de conversas privadas sem consentimento (. . .)".

G) O direito à palavra "desdobra-se, assim, em três direitos: (a) direito à voz, como atributo de personalidade, sendo ilícito, sem consentimento da pessoa, registar e divulgar a sua voz (com ressalva, é claro, do lugar em que ela foi utilizada); (b) direito às «palavras ditas», que pretende garantir a autenticidade e o rigor da reprodução dos termos, expressões, metáforas escritas e ditas por uma pessoa; (c) direito ao auditório, ou seja, a decidir o círculo de pessoas a quem é transmitida a palavra." H) Já quanto ao direito à reserva da vida privada, este, enquanto direito conexo ao direito à palavra, "analisa-se principalmente em dois direitos menores: (a) impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida de outrem (cfr. C Civil, art. 80.º)." I) A própria Constituição prevê outros direitos fundamentais que funcionam como garantias dos direitos à palavra e à reserva da vida privada - referimo-nos ao direito à inviolabilidade do domicílio e da correspondência previsto no art. 34.° da CRP.

J) O direito à inviolabilidade de correspondência e outros meios de comunicação privada, enquanto "protecção jurídica de bens jurídicos fundamentais comuns (dignidade da pessoa, desenvolvimento da personalidade, e sobretudo garantia da liberdade individual, autodeterminação existencial, garantia da privacidade nos termos do art.

26.º [da CRP] ", é um direito inviolável.

K) Dada a importância dos bens jurídicos tutelados (direitos, liberdades e garantias pessoais), a CRP só permite a sua limitação em sede de processo criminal, isto é, quando está em causa a imputação de um crime e, no que a estes diz respeito, o CPP admite essa limitação somente no âmbito dos denominados crimes de catálogo.

L) Efectivamente, porque põem em causa valores fundamentais inerentes à vida privada e familiar, ao sigilo e à inviolabilidade no domínio das telecomunicações, as escutas telefónicas só são admissíveis em situações em que é necessário salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (veja-se o n.° 2 do art.º 18° da CRP) e só quando esteja em causa a imputação de um certo tipo de crime, legalmente tipificado.

M) Daí que, mesmo no processo penal, a violação do direito à palavra e à reserva da intimidade da vida privada, por intermédio da obtenção de escutas telefónicas, só é admissível quando está em causa um dos crimes taxativamente previstos nos n.ºs 1 e 2 do art. 187° do CPP, e sem prejuízo dos demais requisitos consignados na mesma norma, pois, N) Resulta da parte final do n.° 1 do art. 187° do CPP que a intercepção telefónica só pode ter como finalidade atingir e descobrir a verdade quanto a factos criminosos denunciados ou fazer prova sobre eles (é este, de resto, o entendimento pacífico quanto à parte final do n.° 1 do art.º 187° do CPP, tanto na doutrina como na jurisprudência).

O) As infracções imputadas ao ora Recorrente, tratam-se de simples infracções disciplinares, e não de crimes, e muito menos correspondem a qualquer dos crimes previstos no referido catálogo.

P) Donde resulta que dúvidas não existem, nem podem existir, de que a obtenção, conservação e utilização, no processo disciplinar instaurado ao ora Recorrente, de transcrições de escutas telefónicas e, consequentemente, de tudo aquilo que através delas foi obtido, viola a CRP e o direito pessoal fundamental que esta confere ao Recorrente à palavra e à reserva da intimidade da sua vida privada, bem como a respectiva garantia, também fundamental, da inviolabilidade dos meios de comunicação fora dos crimes taxativamente previstos no art.º 187.º do CPP.

Q) Está em causa a violação efectiva da privacidade do Requerente, ao serem transcritas e juntas ao processo disciplinar conversas cuja intercepção só é possível em determinados casos que não o presente.

R) A obtenção e utilização das referidas transcrições das escutas telefónicas por parte da Federação Portuguesa de Futebol (e da Liga Portuguesa de Futebol, que é um órgão autónomo desta), são claramente actos atentatórios dos direitos à palavra e à reserva da vida privada do recorrente.

S) Basta o simples facto das referidas transcrições das escutas telefónicas se encontrarem inseridas no referido processo disciplinar em recurso para que se consuma uma violação dos direitos fundamentais do recorrente.

T) Esta violação é continuada enquanto não forem devolvidas ao recorrente (ou em limite, ao Ministério Público) as referidas transcrições.

U) O direito à palavra e à reserva da vida privada impõe que as referidas transcrições das escutas não possam estar em lugar ou na mão de quem não tem legitimidade ou autorização para as obter, manter e utilizar.

V) Está, pois, demonstrado o primeiro requisito de que depende o decretamento da intimação.

W) A propósito da necessidade de emissão célere de uma decisão de mérito do processo que seja indispensável para a protecção do direito, liberdade ou garantia ameaçado ou violado, para a sua análise importa ter presente, tal como sustenta VIEIRA DE ANDRADE, que o "...

carácter relativo ou gradativo da urgência, que depende das circunstâncias do caso concreto, avaliadas de acordo com um critério composto, que, nas espécies radicais de «especial urgência», associa apreciações temporais de iminência a juízos de valor, numa ponderação própria das situações de necessidade. Em regra, bastará que haja perigo de uma lesão séria para os direitos do particular, mas, quando essa lesão seja iminente e irreversível, o juiz poderá acelerar o processo...

" X) Quando "... o legislador fala em «decisão de mérito indispensável ...» cremos que a indispensabilidade não equivale aqui a irreversibilidade ou iminência de lesão. Isto porque é no n.º 1 do artigo 111.º que o legislador faz equivaler as situações de especial urgência à possibilidade de lesão iminente e irreversível do direito, liberdade e garantia (. . .).

Y) A indispensabilidade não constitui, pois, sinónimo de urgência qualificada, antes corresponde à necessidade de usar a intimação por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, assegurar o exercício de um direito, liberdade e garantia, em tempo útil, através de outro meio, designadamente o decretamento provisório de uma providência cautelar".

Z) A intimação para a protecção de direitos liberdades e garantias é o meio processual próprio e único para assegurar o legítimo exercício dos direitos constitucionais do recorrente.

AA) O pedido de intimação do Recorrente traduz-se na emissão de uma decisão de mérito que condene a Federação Portuguesa de Futebol, de imediato, a desentranhar do processo disciplinar as transcrições das escutas em apreço, assegurando-se assim a cessação da actual e continuada violação dos seus direitos fundamentais...

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