Decisões Sumárias nº 85/08 de Tribunal Constitucional (Port, 22 de Fevereiro de 2008

Magistrado ResponsávelCons. Maria Lúcia Amaral
Data da Resolução22 de Fevereiro de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

DECISÃO SUMÁRIA N.º 85/2008

Processo nº 55/2008 3ª Secção

Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral

Decisão Sumária

Recorrentes: A. e B.

Recorridos: C., CRL; D. e outros; Dr. E.

I

Relatório

  1. Aberto o incidente pleno de qualificação da insolvência, nos termos do artigo 188.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.), por apenso ao processo de insolvência que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Resende, com o n.º 182/05.5TBRSD-G, foi proferida sentença que decidiu:

    1. Qualificar a insolvência como culposa;

    2. Afectar a Presidente da Direcção, A., e o Gerente, B., pelos efeitos da qualificação;

    3. Decretar a inabilitação das pessoas identificadas em b) pelo período de dois anos;

    4. Decretar a inibição das pessoas identificadas em b), para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão da sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, durante um período de dois anos;

    5. Determinar, quanto às pessoas identificadas em b), a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.

    1. e A. interpuseram, cada um, recurso desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, por acórdão de 29 de Novembro de 2007, julgou improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida. Neste acórdão, na parte que ora releva, pode ler-se o seguinte:

    A discordância quanto ao sentenciado por parte dos apelantes, afectados pela qualificação da insolvência, assenta essencialmente na tese de não ser conforme à Constituição (art. 32, n.° 2) o entendimento perfilhado pelo tribunal “a quo” de que, da conjugação do disposto nos arts. 189, n.° 2 e 186, n.° 3 do CIRE, é permitida a aplicação das medidas contempladas naquele primeiro normativo por não ilisão da presunção de culpa grave prevista no último, já não na alegação e prova de factos demonstrativos de que os respectivos actos omissivos foram causa determinante para a eclosão da insolvência.

    Em face disto, importa avaliar se, no caso dos autos, é de equacionar uma interpretação não conforme ao princípio constitucional contemplado no aludido normativo da Lei Fundamental e, a ser assim, se motivos existem para revogar a decisão que, qualificando a insolvência de culposa, determinou a afectação dos impugnantes nos termos nela prescritos.

    No sentido de melhor arquitectarmos a solução a conceder à problemática dessa forma delineada, importará reter a fundamentação adiantada na sentença impugnada para decretar as mencionadas medidas a afectar os recorrentes, o que se poderá resumir à circunstância de, vindo demonstrado o não cumprimento dos deveres de apresentação à insolvência (art. 18 do CIRE), bem assim da elaboração, submissão a fiscalização e depósito nas entidades competentes das contas anuais da dita Cooperativa, tal configurar uma situação de insolvência culposa, presumindo a lei culpa grave dos obrigados ao cumprimento desses deveres (n.° 3, do art. 186 do CIRE), quanto é certo não ter sido ilidida, no caso, essa presunção de culpa por parte dos responsáveis (os aqui recorrentes).

    Pois bem, feita a síntese das argumentações em confronto, interessa avaliar, num primeiro momento, se o entendimento perfilhado na sentença é desconforme à Constituição pelas razões indicadas pelos impugnantes.

    Concretizando a argumentação destes últimos, já acima delineada em termos genéricos, aduzem os mesmos que as sanções previstas no n.° 2, do art. 189 do CIRE revestem natureza criminal, por isso também se impondo na sua aplicação a observação do princípio constitucional de presunção de inocência contido no n.° 2, do art. 32 da Lei Fundamental, o que equivale à proibição da imputação de culpa na base duma presunção legal, antes se impondo a comprovação de factos concretamente alegados a demonstrar actuação culposa.

    A argumentação assim delineada cremos, salvo melhor entendimento, partir de pressuposto erróneo, qual seja o de se atribuir às ditas sanções natureza marcadamente criminal, olvidando-se que as mesmas operam apenas e tão só no estrito domínio civil, por limitativas do exercício de determinados direitos ou actividades situadas no campo do comércio privado, já não como sancionatórias de condutas penalmente relevantes.

    Aliás, em reforço desta constatação, é a própria lei ordinária – quer no domínio do CPEREF (art. 224), quer no CIRE (art. 185) – a precaver a eventualidade de ocorrer procedimento criminal para as situações de insolvência culposa, afastando qualquer tipo de vinculação da constatação da mesma no âmbito do processo de insolvência para efeitos da decisão a tomar na causa criminal.

    Ora, estando o mencionado princípio constitucional – de presunção de inocência, na vertente da proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido – estritamente conexionado com as regras fundamentais de natureza material a que está submetido o processo criminal (v. neste sentido Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “CRP Anotada”, 4ª ed., Vol. 1, em anotação ao art. 32), portanto tendo em vista a indagação de ilícito de natureza penal, e devendo ter-se presente, como deixámos referido, a natureza não criminal atribuível às assinaladas medidas sancionatórias, logo se imporá concluir que a sua aplicação por via de presunção legal não é violadora do falado princípio constitucional contido no art. 32, n.° 2 da CRP.

    Adiante-se mesmo que é o próprio texto constitucional a admitir que a lei ordinária possa determinar restrições à capacidade civil dos cidadãos, desde que os respectivos motivos sejam pertinentes e relevantes, sempre, portanto, no pressuposto de não se estar perante restrição arbitrária, injustificada ou desproporcionada – v. ob. cit., em anotação ao art. 26 da CRP.

    Não pode, assim, imputar-se aos indicados normativos do CIRE – n.° 3, do art. 186 e n.° 2 do art. 189 – na interpretação a que aludem os apelantes e acolhida na sentença impugnada o apontado vício de inconstitucionalidade.

    Apesar do explicitado, o que se poderá questionar, ainda que os impugnantes o não tenham referido especificamente, é se a omissão dos mencionados deveres que sobre si impendiam pode sustentar, sem mais, uma qualificação culposa da insolvência, com a inerente aplicação das sobreditas sanções.

    Tem a ver esta problemática com a interpretação a conceder ao disposto no n.° 3, do art. 186 do CIRE, ou seja, com o curar saber se basta a conduta omissiva nele prevista para se concluir pela qualificação da insolvência como culposa.

    Parece nesse aspecto ser consonante a posição que vem sendo tomada na doutrina e jurisprudência, ao entenderem que a presunção estatuído no n.° 3 do citado normativo, sendo de natureza ilidível, comportará apenas uma presunção de culpa grave no incumprimento dos correspectivos deveres, exigindo-se ainda, para concluir por insolvência culposa, a demonstração da existência de nexo causal entre essa conduta omissiva e a situação de insolvência do devedor – v., a propósito, Carvalho Fernandes/João Labareda, in “CIRE Anotado”, Vol. II, pág. 14; Raposo Subtil e outros, in “CIRE Anotado”, 2.ª ed., págs. 265 a 266; Carvalho Fernandes, in “Themis”/05, ed. especial, pág. 94; bem assim os Acs. da RP, de 18.6.07 e 13.9.07, disponíveis na base de dados do MJ.

    Sendo de atender a esta interpretação para a análise da problemática em causa, poderíamos ser conduzidos a não sufragar o sentenciado, enquanto nele se concluiu pela qualificação culposa da falência na base, tanto quanto transparece da sua fundamentação, da mera constatação da aludida conduta omissiva imputável aos impugnantes, pessoas que de facto e direito detinham o poder de administração na identificada Cooperativa.

    Contudo, só aparentemente e face aos termos em que foi desenvolvido o raciocínio avançado pelo tribunal “a quo” nos poderão conduzir a tal asserção, já que vem elencada outra factualidade – não profundamente ponderada, mas, ainda assim, mencionada na decisão impugnada – que aliada aqueloutra a caracterizar a dita conduta omissiva permitem sustentar a qualificação dada à insolvência decretada.

    Assim, vem dado como apurado, apesar da dita Cooperativa, cuja direcção e administração competiam aos impugnantes, haver encerrado a sua actividade em Março de 2003, terem sido contraídos empréstimos no final de 2003 e mesmo em 2004, garantidos até com a subscrição de livranças (v. Pontos 12, 14 e 17), precisamente numa altura em que, dada a sua deficiente situação económico-financeira e a cessação de facto da sua actividade, se impunha necessariamente não fossem contraídos novos encargos e se providenciasse por fazer cessar a actividade em “IVA” (v. Ponto 18), por forma a não ser agravada uma situação que era já deficitária, caracterizada, entre o mais, pela circunstância de desde Setembro de 2001 não virem sendo liquidados os débitos da Cooperativa perante os seus fornecedores (v. Ponto 23), tudo isto sem a aprovação anual das contas e a sua submissão ao órgão competente de fiscalização (v. Ponto 15).

    O enquadramento factual descrito conduz-nos à necessária constatação de que o mencionado comportamento omissivo – concretizado nomeadamente pela não apresentação da Cooperativa à insolvência numa altura em que a situação económica da Cooperativa o exigia – contribuiu para um evidente agravamento da situação deficitária da insolvente, o que poderia e deveria ter sido evitado pelos responsáveis pela direcção e gerência da Cooperativa (os aqui recorrentes).

    Nesta base, cremos estarem reunidos todos os pressupostos de que depende a qualificação da insolvência como culposa, pois que...

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