Acórdão nº 0870/12 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 06 de Novembro de 2012

Magistrado ResponsávelFERNANDA XAVIER
Data da Resolução06 de Novembro de 2012
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: I- RELATÓRIO A…… (“A……”), com os sinais dos autos, veio interpor recurso de revista excepcional, ao abrigo do artº 150º do CPTA, do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido a fls. 713 e segs., que negou provimento ao recurso interposto da decisão do TAF de Lisboa, que rejeitou liminarmente os pedidos cautelares formulados nos autos pela ora recorrente.

Termina as suas alegações, formulando as seguintes CONCLUSÕES: 1. O presente recurso tem efeito suspensivo, nos termos do nº1 do artigo 143º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

  1. A apreciação da aplicação ou desaplicação da Lei nº62/2011, de 12 de Dezembro tem de conduzir à conclusão de que o presente recurso excepcional de revista reveste uma utilidade jurídica fundamental dada (i) a dificuldade que suscitam as operações exegéticas necessárias à decisão das questões ora colocadas a este tribunal e a (ii) probabilidade de tais questões serem colocadas em litígios futuros.

  2. O presente recurso jurisdicional diz respeito a questões de relevância jurídica e social fundamental que revestem importância jurídica excepcional por envolverem princípios, normas e direitos fundamentais consagrados na ordem jurídica nacional e supranacional.

  3. Os pedidos formulados na acção principal fundamentam-se, além do mais, na circunstância de a AIM (e também a aprovação de PVP), ter por objecto mediato uma actividade – a comercialização dos medicamentos genéricos da Contra-interessada – violadora dos direitos de patente da Requerente, ora Recorrente, que constituem um direito fundamental de natureza análoga à dos “direitos, liberdades e garantias” e, para além disso, considerada pela lei como um crime previsto e punido nos artigos 321º e 324º do Código de Propriedade Industrial, sendo nulos, nos termos do artº 133º, nº 2, alíneas c) e d) do CPA.

  4. Nessa acção não se defende que a AIM (ou a aprovação de PVP) em causa sejam per se violadores dos direitos de patente invocados pela ora Recorrente.

  5. O que se pretende, em suma, na acção principal, é a verificação da invalidade dos actos administrativos impugnados e não a sindicância da observância de regras procedimentais pelo INFARMED ou pela DGAE.

  6. Um acto de concessão de AIM de um medicamento é acto administrativo cujo objecto é o da viabilização jurídica da actividade de comercialização desse medicamento no território nacional, actividade essa que, doutro modo, estaria interdita ao interessado, dele decorrendo, além disso, a imposição ao seu titular do dever de exercício dessa mesma actividade.

  7. Os direitos de propriedade são direitos fundamentais pessoais que beneficiam do mesmo regime de protecção constitucional aplicável à liberdade fundamental de criação cultural em que se apoiam ou seja, do regime específico dos direitos, liberdades e garantias.

  8. Os direitos de propriedade industrial são, por outro lado e conforme reconhecido pelo Tribunal Constitucional e por ilustres constitucionalistas, direitos de propriedade privada e, como tal, direitos fundamentais de natureza análoga à dos “direitos, liberdades e garantias”, beneficiando, assim, do regime constitucional que a estes é aplicável, conforme resulta do artº 17º da Constituição, designadamente do estabelecido no seu artigo 18º.

  9. Tais direitos gozam de uma tutela jurisdicional acrescida, se bem que por via indirecta ou reflexa, decorrente da protecção directa que têm vindo a merecer ao nível do Direito Internacional e do Direito da União Europeia, cujas normas vigoram na ordem jurídica interna portuguesa por força do disposto no artº8º da Constituição.

  10. Ao Estado incumbe o direito de salvaguarda dos direitos de propriedade industrial, como direitos fundamentais protegidos constitucionalmente, obrigando-o a adoptar formas de organização e procedimento adequadas à sua protecção efectiva.

  11. Entre os deveres do Estado avulta também a sua vinculação aos princípios da legalidade e imparcialidade.

  12. O princípio da legalidade impõe-lhe que, no âmbito da sua actuação, a Administração respeite a lei mediante a sua subordinação a todo o bloco legal, onde se insere, entre outros, a Constituição da República Portuguesa.

  13. Por seu turno, o princípio da imparcialidade impõe à Administração Pública que, antes da tomada de qualquer decisão, aprecie todos os interesses em causa com a adopção do seu comportamento.

  14. Assim e na estreita medida em que as autorizações administrativas ora impugnadas têm como finalidade última e efeito útil a viabilização de uma prática criminosa (nos termos do artigo 321º do Código de Propriedade Industrial) levada a cabo por terceiros, a existência de direitos de propriedade industrial que serão necessariamente violados por uma tal actividade, direitos esses análogos aos direitos, liberdades e garantias, tem necessariamente de ser considerada pela Administração Pública no âmbito da sua actividade.

  15. A Lei nº 62/2011 não tem qualquer relevância para a questão que nos ocupa e não devia ter sido aplicada pelo Tribunal a quo ao caso vertente, por carência dos pressupostos para a sua aplicação.

  16. Na acção principal invocou a Recorrente a nulidade dos actos de concessão de AIM destes autos com base nos dispositivos dos artº 133º, nº 2, alíneas c) e d) do artigo 135º, ambos do Código de Procedimento Administrativo (“CPA”), por tais actos serem violadores do conteúdo essencial do seu direito fundamental emergente da patente e certificado complementar de protecção dos autos e porque a actividade por eles licenciada é uma actividade criminosa, punida como tal pelo artigo 321º do Código de Propriedade Industrial.

  17. Mais invocou que o mesmo acto era inválido, nos termos do art.º 135.º do Código de Procedimento Administrativo, por ter como única finalidade a de permitir uma prática comercial ofensiva de vinculações que para o Estado derivam dos efeitos que a lei atribui a um acto administrativo desse mesmo Estado que lhe era anterior, ofendendo, nomeadamente o artigo 18.º da Constituição que tem aplicação directa.

  18. Uma vez que a declaração de invalidade dos actos de AIM pedida na acção principal é formulada à luz dos referidos artigos 133º e 135º do CPA, da Lei nº 62/2011 não pode decorrer que a acção principal deva ser julgada improcedente.

  19. A nova norma do artigo 23º-A do Estatuto do Medicamento apenas tem a ver com os pressupostos de facto dos actos de emissão de AIMs, relativos à saúde pública e não já à teleologia dessas mesmas AIMs, que é o que releva para a decisão desta causa, tal como se encontra formulada pela ora Recorrente, não impedindo a declaração de ilegalidade de uma AIM pelos Tribunais com base na violação de direitos de patente decorrente da comercialização de um medicamento por ela consentida e, mesmo, imposta.

  20. As normas dos artigos 25.º, n.º 2 e 179.º, n.º 2 do Estatuto do Medicamento, com a redacção que lhes foi dada pela Lei nº 62/2011, têm que ser entendidas como contendo uma proibição procedimental de o INFARMED sindicar a existência de direitos de propriedade industrial no contexto de processos de concessão de AIMs, mas não como uma revogação dos artigos 133º e 135º do Código de Procedimento Administrativo, nem um impedimento de os Tribunais apreciarem a validade dos actos do INFARMED à luz dessas disposições.

  21. As referidas normas não têm, assim, a virtualidade de impedir que os Tribunais sindiquem a validade de uma AIM que, com violação dos preceitos constitucionais e das normas gerais aplicáveis ao procedimento administrativo, licencie a comercialização de medicamentos violadores de patentes de terceiros.

  22. Se, porém, tais normas forem entendidas – o que não deriva do seu texto – como contendo uma proibição absoluta de que o INFARMED AE aprecie, no contexto daqueles actos administrativos, a eventual violação de direitos de propriedade industrial, tais disposições serão inconstitucionais, por violação, nomeadamente, do artº 18º da Constituição, por falta de uma protecção mínima adequada de um direito fundamental devida pela Administração Pública, como tem vindo a ser consistentemente declarado pelo Tribunal Central Administrativo do Sul.

  23. As considerações cima expostas acomodam-se mutatis mutandis à aplicação do artigo 8.º da Lei n.º 62/2011, ao pedido de intimação da DGAE/MEE.

  24. As disposições constantes do artigo 19.º, n.º 8, do artigo 23.A, nº1 e nº2 e do artº 25º, nº 2 e do artigo 179.º, n.º 2 – na redacção conferida pelo artigo 4º da Lei nº 62/2011 – bem como o artigo 8.º, n.º 1, 2, 3 e 4 do mesmo diploma, acima referidas, são insusceptíveis de obstarem à procedência da acção principal, ou seja, à declaração de invalidade ou invalidação dos actos impugnados ou à declaração da sua ineficácia, até ao termo dos direitos de propriedade industrial da Requerente e, consequentemente...

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