Acórdão nº 20/10.7TBALD.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 29 de Maio de 2012

Data29 Maio 2012
ÓrgãoCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: 1.

Relatório.

Seguros A…, SA, interpôs recurso ordinário de apelação da sentença da Sra. Juíza de Direito de Circulo de Almeida que, julgando parcialmente procedente a acção declarativa de condenação, com processo comum sumário pelo valor que contra ela e P… Portugal, foi proposta por S…, condenou a primeira e a segunda a pagar à última, solidariamente, e em partes iguais, as quantias de € 10.000 (dez mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, quantia actualizada à presente data, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor desde a presente decisão e até integral pagamento, de € 10.000 (dez mil euros) a título de indemnização por danos patrimoniais futuros, quantia actualizada à presente data, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor desde a presente decisão e até integral pagamento, e a título de indemnização pelos demais danos patrimoniais já verificados, o montante de € 8.680 (oito mil seiscentos e oitenta euros), acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor desde a citação e até integral pagamento.

A apelante pede que o recurso seja julgado improcedente em conformidade com as respectivas conclusões. E essas conclusões são as seguintes: … Só a co-demandada respondeu ao recurso, tendo concluído pela improcedência dele.

  1. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

    … 3.

    Fundamentos.

    3.1.

    Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

    Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

    Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC).

    A causa petendi desenhada pela autora na petição inicial é nitidamente subsumível à responsabilidade subjectiva por factos ilícitos, dita também, responsabilidade delitual – descendente directa da lex aquilia - dado que assenta na violação ilícita ou culposa de direitos subjectivos ou de normas destinadas a proteger interesses alheios (artº 483 nº 1 do Código Civil).

    Todavia, o evento causador do dano ocorreu numa área ou no desenvolvimento de uma actividade em que é admissível um esquema de imputação diferente: a responsabilidade pelo risco, também chamada imputação ou responsabilidade objectiva, em que, por razões político-sociais, o dano se transfere, da esfera de uma pessoa para a de outra, independentemente do carácter ilícito do comportamento desta última (artºs 483 nº 2, 503 e 505 do Código Civil).

    Num claro fenómeno de identificação estrutural à responsabilidade pelo risco – que se caracteriza pela atribuição do risco pela ocorrência de determinados danos a pessoa diferente daquele que originariamente os suportou – são aplicáveis as disposições relativas à responsabilidade por factos ilícitos (artº 499 do Código Civil).

    Aparentemente, a divergência entre e uma outra responsabilidade situar-se-ia apenas no plano delicado da problemática da culpa: o distinguo entre uma e outra fonte de responsabilidade assentaria simplesmente na culpa de cuja presença se prescindiria na responsabilidade objectiva. Mas a verdade é que na responsabilidade pelo risco nem sequer há ilicitude ou mesmo um facto, no sentido de actuação livre e consciente do lesante, o que não pode deixar de se projectar na causalidade e no cálculo da indemnização que, por esse motivo, devem ser submetidas a regras diferenciadas. Assim, neste domínio não há espaço para se falar, por exemplo, de adequação ou de fim de protecção da norma, etc. A determinante é antes, no caso de danos causados por veículos de circulação terrestre, os riscos próprios do veículo e é o âmbito desses riscos que dá a medida da imputação.

    Diz-se, correntemente, que nos acidentes de viação, a causa petendi é o próprio acidente, mais rigorosamente, o conjunto de factos exigidos pela lei para que o dever de indemnizar – e o correspondente direito à indemnização – se tenha por constituído[1].

    Neste contexto, se o autor pede a condenação do lesante na reparação do dano num dos domínios em que vigora a responsabilidade objectiva, mesmo que invoque a culpa do demandado, ele quer, ao menos presuntivamente, que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa se não provar. Maneira que, se numa acção destinada a exigir a indemnização do dano, o lesado alegar a culpa do lesante, num caso em que excepcionalmente seja admissível a imputação pelo risco, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, ao tribunal é lícito averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, a menos que haja qualquer declaração em contrário do lesado, ou do processo resulte inequivocamente que a vítima apenas pretende a reparação do dano, havendo culpa do lesante[2].

    Nestas condições, a sentença apelada, ao amparar a pretensão material da autora da responsabilidade objectiva, moveu-se no âmbito da sua competência decisória e, por isso, não incorreu na falta grave do excesso de pronúncia, por utilizar um fundamento que excede os seus poderes de conhecimento.

    Lê-se, porém, a dado passo da sentença impugnada, que não é admissível a concorrência entre o risco de um e a culpa de outro para responsabilizar os dois, mas antes terá de se excluir o primeiro.

    A secura desta afirmação da sentença apelada contrasta vivamente com a delicadeza e a complexidade que deve irrecusavelmente assinalar-se ao problema do concurso entre o risco dos veículos de circulação terrestre e, por exemplo, a conduta – não necessariamente culposa – imputável ao lesado, que merece, da doutrina e da jurisprudência, respostas desencontradas.

    No ponto assinalado, a decisão impugnada parece fazer-se eco daquela que era, até há bem pouco tempo, o entendimento nemine discrepanti da jurisprudência, que, una voce, recusava terminantemente a possibilidade de concorrência do risco do lesante e de culpa do lesado: sempre que o acidente fosse imputável ao próprio lesado – por culpa ou mesmo só por facto deste ainda que não culposo – ficaria excluída a responsabilidade do lesante. Numa palavra: a culpa ou facto do lesado excluiria sempre o risco do lesante (artºs 503 nº 1 e 505 do Código Civil).

    E doutrina de indiscutível autoridade científica, dava a esta solução uma base dogmática estável, colocando o problema do concurso entre a responsabilidade subjectiva e a objectiva no plano da causalidade: a verificação, no caso concreto, de que o acidente era imputável ao lesado ou a terceiro ou a causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, quebraria o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e o dano, excluindo inexoravelmente a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, dado que o dano deixaria, então, de ser um efeito adequado do risco do veículo. De resto, de harmonia com este ponto de vista, dada a severidade da responsabilidade objectiva do detentor do veículo, não seria justo nem razoável sobrecarregá-lo ainda com os casos em que, não havendo culpa dele, o acidente é imputável a quem não adoptou as medidas de prudência exigidas pelo risco da circulação[3]. Todavia, a verdade é que ao fazer-se absorver o fundamento objectivo da responsabilidade pela demonstração da autonomia causal de qualquer conduta imputável – atribuível – ao lesado, aquela solução redunda num tratamento mais favorável do detentor do veículo de circulação de terrestre.

    É exacto que outra doutrina sustentava, veementemente, que para o acidente podiam concorrer, a um tempo, o perigo especial do veículo e o facto de terceiro ou do lesado, caso em que deveria proceder-se à repartição da responsabilidade ou, ao menos, atenuar-se a obrigação de indemnizar fundada no risco[4].

    A doutrina dominante[5] era, porém, a de uma interpretação estritamente causalista da norma contida no artº 505 do Código Civil que enfatizava o primado da culpa, não admitindo qualquer solução ponderativa: a concepção, mais preocupada com a função reparadora da responsabilidade civil e com a tutela da vítima e que, em coerência rejeitava a visão absorvente da culpa do lesado, era nitidamente minoritária.

    Simplesmente, é claro que o entendimento, doutrinaria e jurisprudencialmente dominante, do problema – assente numa solução extremista de tudo ou nada[6] – uniformiza as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados por acidentes de viação e desvaloriza a inerência de pequenos descuidos à circulação rodoviária, conduzindo, por vezes, a resultados chocantes, formalmente exactos mas materialmente inexplicáveis[7].

    Sensível ao irrecusável desamparo do lesado que decorre de uma leitura da norma considerada à luz estrita da causalidade – sobretudo nos casos em que o dano é atribuído exclusivamente a uma falta leve do lesado e à conduta inesperada de pessoas desadaptadas ao tráfego[8], em atenção à pouca mobilidade e à dificuldade de percepção da pessoa idosa ou deficiente e à normal imprudência da criança que se atravessa de repente na via ou que corre atrás de uma bola – e impressionada pelo nada indemnizatório como preço de pequenos descuidos, a doutrina mais recente orienta-se para a admissibilidade da concorrência do riso com a culpa do lesado, ou mais exactamente, do concurso do risco com o facto, culposo ou não, da vítima, só excluindo a responsabilidade objectiva do detentor do veículo quando o acidente seja devido, com ou sem culpa, unicamente ao próprio lesado ou a terceiro[9]. E a jurisprudência não deixou de se mostrar permeável a esta evolução doutrinária. Exemplo acabado disso mesmo é, decerto, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Outubro de...

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