Acórdão nº 705/08.8TBVCD.P2 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 29 de Outubro de 2012

Magistrado ResponsávelCARLOS QUERIDO
Data da Resolução29 de Outubro de 2012
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo n.º 705/08.8TBVCD.P2 Sumário do acórdão: I. Da declaração de utilidade pública como facto constitutivo da relação de expropriação, emerge a sujeição do particular à actuação potestativa dos órgãos públicos, não decorrendo directa e exclusivamente desse acto, a extinção do direito de propriedade na esfera do particular e a sua aquisição pela entidade expropriante.

  1. A aquisição do direito de propriedade concretiza-se com o despacho judicial de adjudicação previsto no n.º 5 do artigo 51.º do CE.

  2. A declaração de nulidade do acto administrativo de declaração de utilidade pública contamina todos os procedimentos subsequentes, incluindo o despacho judicial de adjudicação, podendo no entanto manter-se na ordem jurídica os efeitos de tal despacho, se se verificar uma desproporção grave entre o benefício pretendido pelo titular do direito e o sacrifício por ele imposto à comunidade.

  3. O pedido de devolução da parcela expropriada “no estado em que se encontrava à data da ocupação”, fundado na nulidade do acto administrativo de declaração de utilidade pública, encontrando-se tal parcela integrada numa auto-estrada já concluída, utilizada por uma generalidade de cidadãos, não obedece aos requisitos legitimadores de moderação, equilíbrio, lógica, racionalidade e proporcionalidade do exercício do direito, pelo que a devolução da parcela nos termos preconizados podendo ainda ser direito (numa perspectiva positivista e formal), já não seria justiça.

  4. O princípio da “intangibilidade da obra pública” consagra a prevalência do interesse geral sobre o direito particular, articulando-se, nomeadamente, com o n.º 2 do artigo 335.º do CC e a alínea i) do n.º 2 do artigo 133.º do CPA, conduzindo a que o julgador, tendo em consideração o interesse geral que a obra pública representa, se abstenha de ordenar a sua restituição.

    Acordam no Tribunal da Relação do Porto I. Relatório B…. e esposa C….. instauraram a presente acção declarativa, de condenação, com processo comum e forma ordinária, contra D…., S.A., E….., S.A. e F…., A.C.E., pedindo a condenação das RR: a) a reconhecer o A. como dono e legítimo proprietário da parcela de terreno identificada (parcela n.º 23 do mapa de expropriações, e não também a parcela n.º 24, como rectificado na réplica) que as RR ocuparam e mantêm na sua posse; b) a devolver tal parcela 23 ao Autor, no estado em que se encontrava à data da ocupação; c) a pagar a sanção pecuniária compulsória de 100,00 Euros por dia, desde a data do Acórdão (do STA) que declarou nulo o acto expropriativo até à sua entrega definitiva ou do pagamento de indemnização substitutiva, sendo metade para os AA e metade para o Estado.

    Alegaram em síntese os autores, que parte de um imóvel seu foi atingido por expropriação cuja utilidade pública foi declarada por despacho que veio a ser declarado nulo por decisão do Supremo Tribunal Administrativo que as RR jamais cumpriram, pois o terreno expropriado foi afectado à construção da auto-estrada A – 7 e aí se mantém.

    A D…., S.A., contestou, invocando a incompetência do Tribunal em razão da matéria, pois seriam da competência dos tribunais administrativos as acções tendentes a efectivar a responsabilidade civil da contestante, deduzindo ainda a excepção dilatória de ilegitimidade passiva, pois a pretensão dos AA não radica em factos por si praticados.

    À cautela, impugnou a alegação dos autores, invocando os seguintes argumentos: todo o processo expropriativo foi desencadeado na pressuposição da sua legalidade, a propriedade foi adjudicada à expropriante e os expropriados receberam a indemnização judicialmente fixada; a devolução do terreno aos AA supõe a destruição da auto-estrada, pelo que deve prevalecer o princípio da intangibilidade da obra pública sobre o direito de propriedade do particular que já recebeu a indemnização devida.

    As rés E…., S.A. e F…., A.C.E., contestaram, invocando a incompetência do tribunal em razão da matéria, com fundamento em que a acção deveria ter sido intentada nos tribunais administrativos; alegaram a impropriedade do meio processual usado, pois deviam os AA ter executado o acórdão anulatório em que assentam os pedidos; invocaram também a sua ilegitimidade passiva, pois não foram as entidades expropriantes.

    Em reconvenção, a ré E…., S.A. pediu o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a parte do prédio onde se encontra hoje a auto-estrada, por o haver adquirido por usucapião.

    Os autores replicaram, reiterando os fundamentos já anteriormente invocados na petição e concluindo pela competência do Tribunal, pela legitimidade de todas as rés e pela improcedência do pedido reconvencional.

    A ré E…., S.A. treplicou em defesa da procedência da reconvenção.

    Foi proferida sentença (fls. 429), onde se julgou incompetente o Tribunal, em razão da matéria, e se absolveu os réus da instância.

    Não se conformaram os autores e interpuseram recurso de apelação, julgado improcedente neste Tribunal (fls. 580), onde se confirmou a decisão recorrida.

    Continuaram a não se conformar os autores, e interpuseram recurso da decisão deste Tribunal, o qual veio a obter provimento no Tribunal dos Conflitos, onde foi proferida decisão definitiva com este dispositivo: «Concede provimento ao recurso, revoga o despacho recorrido e declara a competência da jurisdição comum para conhecer da presente acção».

    Baixaram os autos à primeira instância, onde foi proferido despacho a fixar o valor da causa em 30.000,01 €uros, correspondente ao pedido dos autores, e a considerar que o pedido reconvencional não é distinto do deduzido pelos autores.

    Foi proferido despacho saneador, no qual: a) se considerou o Tribunal competente (em razão dos restantes factores de atribuição de competência); b) se considerou que não se suscitam dúvidas quanto à legitimidade da D…., S.A., e E…., S.A., pela simples razão de que a primeira foi a expropriante, e a segunda é a actual concessionária e ocupante da auto-estrada em que se integrou a parcela reivindicada, revelando-se manifesto interesse de ambas em contradizer; c) se considerou que a ré F…., A.C.E., “é completamente alheia aos pedidos e à incorporação da parcela do A. na auto-estrada”, dada a sua qualidade de empreiteira/construtora da auto-estrada, limitando-se por isso “a executar os actos materiais inerentes e indispensáveis à construção, no local e ocupando o solo supostamente adquirido pela expropriante”, concluindo-se, no entanto pela sua não absolvição da instância, apesar da ilegitimidade, de acordo com o disposto na parte final do n.º 3 do art. 288.º do CPC; d) se considerou não se verificar qualquer erro na forma de processo; e) se considerou processualmente inadmissível a reconvenção; f) se considerou que os autos fornecem os elementos necessários para decisão, de acordo com o disposto na al. b) do n.º 1 do art. 510.º do CPC; g) se proferiu decisão de mérito, com o seguinte dispositivo: «Termos em que julgo a acção de todo improcedente e absolvo as RR. dos pedidos».

    Não se conformaram os autores, e interpuseram o presente recurso de apelação, apresentando alegações onde formulam as seguintes conclusões: I. Subjacente à propositura da presente acção esteve, como é consabido, e foi dado como provado nos autos, um juízo de declaração de nulidade, transitado em julgado, do acto de declaração de utilidade pública em que se louvaram as Recorridas para promover uma expropriação por utilidade pública.

  5. Resulta dos cânones jurídicos que, o acto declarado nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, tudo se passando, portanto, como se ele não existisse; de igual sorte, ademais, padecem os actos subsequentes. Isto traduzido, no caso concreto, corresponderá pois a afirmar que, não apenas o acto de génese da expropriação é nulo, como nulos são os demais (investidura na posse, adjudicação da propriedade, e, em termos gerais, o processo de expropriação), porque dependentes daquele.

  6. A omissão, aquando da condição do processo expropriativo, de um pedido atinente à desafectação do solo e a inerente obtenção de parecer favorável da entidade competente, tem reflexos gravosos no acto que encerra o procedimento; daí que o legislador, respeitando os interesses comunitários envolvidos (urbanismo, ordenamento do território), o haja sancionado, quando assim praticado, sabendo que, como acto procedimental, mais do que não poder ser sanado, jamais poderia ser repetido se praticado fora daquele concreto momento e em data posterior à execução da obra.

  7. Ora, a sentença recorrida não perspectiva em tais termos a acção proposta, e a questão subjacente. Na verdade, salvaguardando acima de tudo o “interesse público do betão”, afastou-se da dogmática jurídico, olvidando aquele postulado de base. Todavia, se de entre as formas de aquisição da propriedade, por partes das Recorridas, se encontra a aquisição por via da expropriação, esta exige, ainda assim, a verificação de um conjunto de pressupostos de legitimidade, não sendo alheia à necessidade de previsão na lei e a sua corporização em acto válido.

  8. Na medida exacta em que o acto genético da expropriação foi posto em causa, mais do que estarmos perante uma ofensa a um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, confrontamo-nos com uma utilização abusiva e a non domino do bem. Daí que não seja compreensível dizer-se – como vai dito na decisão recorrida – que não há falta grave ou dolo das Recorridas; só não houve, como se mantém até ao presente, sem que se ache, na perspectiva da M. Juiz “a quo”, mecanismo suficientemente apto a acautelá-lo.

  9. Destarte, é curioso notar que, assumindo claramente a validade substancial do juízo proferido pelo S.T.A., o Tribunal recorrido não soluciona o problema de saber de que forma as Recorridas adquiriram (e especificamente a E.P.) a propriedade sobre o bem. Se não o fizeram por via da expropriação, atento o que vai dito, e se improcedente foi julgado o pedido reconvencional de...

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