Acórdão nº 285/11 de Tribunal Constitucional (Port, 07 de Junho de 2011

Magistrado ResponsávelCons. Pamplona Oliveira
Data da Resolução07 de Junho de 2011
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 285/2011

Processo n.º 382/10

  1. Secção

Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

  1. Relatório

    1. A. intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Bairro, em 21 de Julho de 2008, acção de investigação da paternidade contra B., pedindo o estabelecimento do vínculo jurídico de paternidade jurídica entre o autor e o réu.

      O Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Bairro considerou que o prazo legal para a proposição da referida acção se encontrava caduco, visto o disposto no artigo 1817.º n.ºs 1 e 3, alínea c) do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009 de 1 de Abril, aplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, pelo que absolveu o réu do pedido. Inconformado, A. recorreu para a Relação de Coimbra, que, por acórdão de 11 de Julho de 2010, decidiu o seguinte:

      “A particular relevância da entrada em vigor da Lei nº 14/2009, decorre da circunstância desse diploma conter uma norma de direito transitório (o art. 3º) estabelecendo a aplicação das alterações por ele introduzidas nos artigos 1817.º e 1842ºº do Código Civil “aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor”.

      No caso em apreço, o decisor fazendo dela uma interpretação literal projectou-a retroactivamente atingindo a presente acção que já se encontrava pendente desde 21/07/2008, e julgou procedente a caducidade decorrente da al. c), nº 3, do art. 1817º nessa nova redacção.

      Os prazos de caducidade das acções de investigação de paternidade, são os previstos no artigo 1817º do Código Civil, norma aplicável em função do disposto no artigo 1873º do mesmo Código.

      É conhecida a evolução do ordenamento jurídico português no que respeita aos limites temporais à investigação da paternidade.

      Relembrando esse desenvolvimento legislativo e jurisprudencial de forma muito breve, constata-se que o Tribunal Constitucional numa primeira fase defendeu o entendimento de que o regime da caducidade previsto no Código Civil era compatível com os princípios constitucionais, designadamente com o fundamento, entretanto abandonado, de que os prazos de caducidade eram meros condicionamentos, e não verdadeiras restrições, do direito de investigação inerente ao direito fundamental à identidade pessoal (cfr. os Acórdãos n.ºs 99/88, 413/89, 451/89, 370/91, 311/95 e 506/99).

      Posteriormente, inverteu a sua jurisprudência nesta matéria nos Acórdãos n.ºs 456/2003 e 486/2004, acolhendo nova orientação jurisprudencial no entendimento de que o prazo limite de proposição de uma acção de investigação de paternidade previsto no nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, comportava uma violação dos princípios constitucionais decorrentes da conjugação dos artigos 26º, nº 1 (direito à identidade pessoal), 36º, nº 1 (direito de constituir família) e 18º, nº 2 (princípio da proporcionalidade) da Constituição da República Portuguesa (CRP), que veio a culminar na declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral plasmada no Acórdão no 23/2006, publicado na I Série-A, do Diário da República de 8/02/06.

      Acórdão que não visou a consagração de uma inconstitucionalidade na averiguação da verdade biológica da filiação temporalmente limitada, mas tão só o concreto limite temporal previsto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, de dois anos a contar da maioridade ou emancipação. Como nele bem se vinca, “Antes o que está em causa é, apenas, a constitucionalidade da específica limitação prevista nesta norma, que (salvo casos excepcionais, como o da existência de «posse de estado») exclui o direito a averiguar a paternidade depois dos 20 anos de idade: a acção «só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação». É este limite temporal de «dois anos posteriores à maioridade ou emancipação», e não a possibilidade de um qualquer outro limite, que cumpre apreciar — e, consequentemente, só sobre aquele especifico limite temporal, previsto actualmente no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, se poderá projectar o juízo de (in)constitucionalidade a proferir.”.

      Mais recentemente, o Acórdão n.º 626/2009, julgou inconstitucional a norma constante do n.º 3 do artigo 1817.º, do Código Civil (redacção do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro), quando interpretado no sentido de estabelecer um limite temporal de 6 meses após a data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito no qual o pretenso pai reconhece a paternidade, para o exercício do direito de investigação da paternidade.

      A declaração, com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional, da inconstitucionalidade de uma norma tem efeitos ex tunc, tudo se passando, em princípio, como se a norma nunca tivesse vigorado. Então, a consequência para a norma em causa desta decisão do Tribunal Constitucional, traduz-se na produção de efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional repristinando as normas que ela haja eventualmente revogado (cfr. art. 282º, nº 1, da CRP).

      Esta eficácia retroactiva da declaração de inconstitucionalidade implica não só a invalidade e consequente inaplicabilidade da norma, mas também, como afirma Gomes Canotilho, a sua proibição de aplicação a situações ou relações desenvolvidas à sombra da sua eficácia e ainda pendentes.

      Ora, sendo certo que o prazo nessa norma previsto foi desde logo introduzido pela versão inicial do Código Civil de 1967 (Decreto-Lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966) no texto do artigo 1854º, nº 1, que posteriormente transitou no essencial para o artigo 1817.º, n.º 1, na revisão introduzida pelo Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro de 1977 do Código seríamos remetidos, por via do efeito repristinatório, para o regime do Código de Seabra, no trecho temporal deste posterior à chamada “Lei da protecção dos filhos” da I República (art. 37.º, do Decreto nº 2 de 25 de Dezembro de 1910, publicado no Diário do Governo, nº 70, de 27 de Dezembro de 1910) em que se estabeleciam diversos prazos para a proposição das acções de investigação de paternidade ilegítima.

      Repristinação de uma solução legal também ela com prazos de caducidade que à época tinha fortes razões a alicerçá-la – direito do investigado à sua reserva da intimidade da vida privada para além de certo prazo considerado razoável, a estabilidade das suas relações pessoais e familiares, “envelhecimento” das provas, e o facto de a ser possível a investigação a todo o tempo tal poder dar azo a actuações oportunistas de “caça à fortuna” de êxito fácil quando baseadas na falível prova testemunhal – mas desfasada do nosso tempo em que, fruto da evolução científica e a aplicação de novas técnicas através de exame de ADN, se pode apurar com elevadíssimo grau de probabilidade, senão de certeza, se o investigado foi ou não o progenitor do investigante. Desfasamento bem espelhado na jurisprudência do STJ posterior ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006, no sentido da inconstitucionalidade do prazo de caducidade não repristinar qualquer norma, apenas deixando sem prazo tais acções. A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do prazo previsto naquele nº 1, suprimia todos os prazos, deixava de sujeitar a qualquer prazo a proposição de uma acção de investigação de paternidade, pois que, como se refere no Acórdão do STJ de 17/04/2008, Proc. n.º 08A474, “Esse direito a conhecer a paternidade, valor social e moral da maior relevância, que se inscreve no direito de personalidade é um direito inviolável e imprescritível.”

      A tanto impunha o respeito pelos direitos fundamentais “ à integridade pessoal”, “à identidade pessoal” e ao “direito ao desenvolvimento da personalidade” consagrados no nº 1 do art. 25º e n.º 1 e 3 do art. 26º da Constituição da República.

      Como se lê no Acórdão do TC n.º 626/2009, a “desvalorização de todas as referidas razões que vinham justificando a previsão de limites temporais, relativamente ao exercício do direito de investigação e reconhecimento de paternidade, e a ausência de quaisquer outras razões reportadas a outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, determinou que se começasse a considerar insustentável continuar a alegar a não inconstitucionalidade dos prazos de caducidade estabelecidos nos artigos 1817.º e 1873.º do Código Civil”.

      Assim sendo, a valorização dos direitos fundamentais da pessoa na vertente da sua ascendência genética, e a inerente força redutora da verdade biológica, fazem-na prevalecer sobre os filiação, o que confere particular ênfase à conclusão de que esta nova Lei nº 14/2009 na sua projecção retroactiva aos processos pendentes à data da entrada em vigor da mesma, frustra intoleravelmente a confiança depositada pelo proponente da acção de que a sua proposição não estaria sujeita a qualquer prazo.

      A aplicação a um caso como este, em que a acção foi proposta em 21/07/2008, da disposição transitória constante do artigo 3º da Lei nº 14/2009, resulta numa evidente violação do princípio constitucional da justiça e da tutela da confiança ínsitos no princípio do Estado de direito democrático, decorrente do artigo 2º da CRP.

      Esta constatação conduz, inexoravelmente, à inconstitucionalidade material desse artigo 3º da Lei nº 14/2009, e à consequente recusa de aplicação dessa norma nos termos do artigo 204º da CRP.

      Nas palavras de Gomes Canotilho, “O princípio do estado de direito, densificado pelos princípios da segurança e da confiança jurídica, implica, por um lado, na qualidade de elemento objectivo da ordem jurídica, a durabilidade e permanência da própria ordem jurídica, da paz jurídico-social e das situações jurídicas, por outro lado, como dimensão garantística jurídico-subjectiva dos cidadãos, legitima a confiança na permanência das respectivas situações jurídicas”

      “O legislador não pode constitucionalizar através de lei o que é inconstitucional e como tal foi declarado pelo TC. Daí a existência de um limite negativo geral...

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