Acórdão nº 602/99 de Tribunal Constitucional (Port, 09 de Novembro de 1999

Magistrado ResponsávelCons. Sousa Brito
Data da Resolução09 de Novembro de 1999
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 602/99

Proc. nº 625/96

  1. Secção

Relator: Cons. Sousa e Brito

Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:

I – Relatório.

  1. M... (ora recorrida) interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Presidente da Comissão de Coordenação da Região do Algarve que, em consequência da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 351/93, recusou a confirmação de compatibilidade do alvará de construção que lhe havia sido concedido com o Plano Regional de Ordenamento do Território do Algarve, aprovado pelo Decreto-Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março, fazendo caducar as licenças de construção de que dispunha a recorrente.

  2. O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, por decisão de 11 de Abril de 1996, veio a conceder provimento ao recurso. Recusou, para o efeito, a aplicação dos artigos 1º, nº 1 e 3º do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, que considerou materialmente inconstitucionais, com base em extensa argumentação que concluiu da seguinte forma:

    "Portanto, concluindo-se que o «jus aedificandi» constitui parte integrante do direito de propriedade do solo e uma manifestação do direito de propriedade privada previsto no art. 62º, nº 1 da CRP, a modificação do regime jurídico dos actos de licenciamento já praticados introduzida pelos artigos 1º, nº 1 e 3º do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, traduz-se numa lei restritiva do direito de propriedade com eficácia retroactiva. E, porque o direito de propriedade é um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (cfr., nesse sentido, Vieira de Andrade, "Os Direitos...", cit., pág. 211), o aludido Decreto-Lei é materialmente inconstitucional, por força dos artigos 17º e 18º, nº 3 da CRP, na parte em que sujeita à confirmação de compatibilidade prevista no seu art. 1º, nº 1, os actos de licenciamento de construções praticados antes da sua entrada em vigor.

    Deste modo, e porque este Tribunal deve recusar a aplicação da referida norma ao caso dos autos (cfr. art. 4º, nº 3 do ETAF), padece o acto de vício de violação de lei por falta de base legal, o que conduz à sua anulação".

  3. É desta decisão que vem interposto pelo Representante do Ministério Público no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso de constitucionalidade, com fundamento na recusa de aplicação pela decisão recorrida do disposto nos artigos 1º, nº 1 e 3º do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, com fundamento na sua inconstitucionalidade, por violação dos artigos 17º e 18º, nº 3 da Constituição.

  4. Já neste Tribunal foi o Ministério Público notificado para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:

    "1º - A tutela constitucional do direito de propriedade, consagrado no nº 1 do artigo 62º da Lei Fundamental, não incluí a protecção de um «jus aedificandi» do proprietário de quaisquer solos, que preexista às leis e regulamentos que, para tutela de relevantes interesses públicos, restringem ou limitam as condições em que tal direito pode ser, em concreto, exercitado.

    1. - Termos em que deverá proceder o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida".

  5. Igualmente notificada para alegar, por parte da recorrida foi dito, a concluir, que:

    "1º - O jus aedificandi integra o direito de propriedade privada, constitucionalmente garantido pelo art. 62º, nº 1, da Constituição.

    1. - Os artigos 1º, nº 1 e 3º do DL nº 351/93, restringem injustificadamente o direito de propriedade da recorrida sobre o prédio eliminado dele o jus aedificandi já anteriormente reconhecido.

    2. - As mesmas disposições têm efeito retroactivo, na medida em que se aplicam aos actos praticados anteriormente à sua entrada em vigor.

    3. - O direito de propriedade é um direito fundamental.

    4. - O conteúdo dos artigos 1º, nº 1 e 3º do DL nº 351/93, viola o conteúdo dos artigos 17º e 18º, nº 3 e 62º da CRP.

    5. - As referidas disposições são materialmente inconstitucionais.

    6. - A matéria referente a direitos fundamentais está abrangida por reserva relativa da lei – art. 168º, nº 1, b) da CRP.

    7. - As mesmas disposições são organicamente inconstitucionais".

    Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

    II – Fundamentação.

  6. É o seguinte o teor das normas do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, que a decisão recorrida recusou aplicar, com fundamento na sua inconstitucionalidade, e que nessa medida constituem agora objecto de recurso:

    Artigo 1º

  7. As licenças de loteamento, de obras de urbanização e de construção, devidamente tituladas, designadamente por alvarás, emitidas anteriormente à data da entrada em vigor de plano regional de ordenamento do território ficam sujeitas a confirmação da respectiva compatibilidade com as regras de uso, ocupação e transformação do solo constantes de plano regional de ordenamento do território.

  8. (...)

  9. (...)

  10. (...)

    Artigo 3º

    O regime previsto no presente diploma é igualmente aplicável às aprovações de localização, às aprovações de anteprojecto ou de projecto de construção de edificações e de empreendimentos turísticos, emitidos pela Direcção-Geral de Turismo ou pelas câmaras municipais em data anterior à da entrada em vigor de plano regional de ordenamento do território.

    No entender da decisão recorrida as normas que se extraem desses preceitos são materialmente inconstitucionais, por violarem o disposto nos artigos 17º e 18º, nº 3 da Constituição.

  11. A questão de constitucionalidade que agora vem colocada à consideração do Tribunal Constitucional não é nova. Na realidade, o Tribunal pronunciou-se já, no acórdão nº 329/99 (Diário da República, II Série, de 20 de Julho de 1999), tirado em Plenário, sobre a compatibilidade do disposto no artigo 1º, nºs 1, 2 e 3 do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, com os artigos 17º e 18º, nº 3 da Constituição, tendo concluído pela sua não inconstitucionalidade, doutrina que se reiterou, em fiscalização abstracta sucessiva, no acórdão nº 517/99, de 22 de Setembro (inédito).

    Especificamente sobre esta questão ponderou o Tribunal Constitucional:

    "5. As questões de inconstitucionalidade material:

    5.1. As normas sub iudicio e o direito de propriedade:

    5.1.1. A recorrente sustenta que as normas sub iudicio são ainda inconstitucionais, por violação do artigo 18º, n.º 3, da Constituição, na medida em que, impondo "a confirmação da compatibilidade de actos constitutivos de direitos praticados em data anterior à publicação do PROT e do próprio Decreto-Lei n.º 351/93", e encurtando "o prazo de caducidade daqueles actos", "estabelecem restrições retroactivas em matérias incluídas nos direitos fundamentais de propriedade privada, iniciativa económica privada e ius aedificandi".

    Também neste ponto falece razão à recorrente.

    De facto, quando se entenda que o ius aedificandi não faz, sequer, parte integrante do direito de propriedade, por não ser uma das faculdades em que ele se analisa, a proibição de construir num determinado solo, em que antes a edificação era possível, não se traduz nunca em qualquer compressão ou restrição de tal direito.

    Mas, mesmo quando se entenda que o direito de construir (e, obviamente, o de lotear e urbanizar) é uma dimensão do direito de propriedade, as proibições de construção decorrentes dos planos urbanísticos (tal como as impostas pela REN, pela RAN ou pelo facto de determinada área ser qualificada como protegida) - e, naturalmente, as limitações e condicionamentos impostos ao direito de edificar por esses instrumentos de gestão dos solos – resultam da necessidade de resolver as situações de conflito entre o direito de propriedade e as exigências de ordenamento do território. E os conflitos de direitos ou bens jurídicos resolvem-se, harmonizando esses direitos ou bens jurídicos em toda a medida em que tal seja possível; ou, quando o não for, fazendo que uns prevaleçam sobre outros, que, desse modo, são, em parte, sacrificados.

    Significa isto que a especial situação da propriedade - seja a decorrente da sua própria natureza ou, antes, a que se liga à sua inserção na paisagem - importa uma vinculação também especial (uma vinculação situacional), que mais não é do que uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo. E, por isso, essa proibição, sendo, como é, imposta pela própria natureza intrínseca ou pela situação da propriedade, não pode ser havida como inconstitucional.

    Claro é que isto não dispensa o legislador de criar instrumentos ou mecanismos de perequação das mais valias, de modo a garantir o respeito da justiça material, a qual só se observará, se os proprietários ou titulares de outros direitos reais dos terrenos abrangidos pelos planos urbanísticos forem tratados com igualdade. Por isso, aqueles instrumentos ou mecanismos hão-de corrigir os efeitos desigualitários criados pelos planos urbanísticos. De contrário, eles não se libertarão da "sombra desqualificante da desigualdade" que sobre eles pesa (cf. FERNANDO ALVES CORREIA, in Problemas Actuais cit., página 19).

    As normas sub iudicio não violam, assim, neste ponto, o artigo 18º, n.º 3, conjugado com o artigo 62º, n.º 1, da Constituição".

    Foi, porém, mais longe o Tribunal Constitucional, que não se limitou ali a tratar da questão de constitucionalidade material que agora vem colocada pelo recorrente (a compatibilidade das normas objecto do recurso com os artigos 17º e 18º, nº 3 da Constituição), mas, de forma mais ampla, tratou igualmente de outras questões de constitucionalidade material e orgânica de que alegadamente – no entender da então recorrente – padeciam as normas sub judicio.

    O que então se ponderou tem, contudo, igualmente importância no âmbito do presente recurso, uma vez que, como refere o artigo 79º-C da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, não obstante o Tribunal Constitucional só poder julgar inconstitucional a norma que a decisão recorrida tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação, pode fazê-lo com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais...

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