Acórdão nº 55/99 de Tribunal Constitucional (Port, 26 de Janeiro de 1999

Magistrado ResponsávelCons. Guilherme da Fonseca
Data da Resolução26 de Janeiro de 1999
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 55/99

Processo nº 970/98

Plenário

Relator: Cons. Guilherme da Fonseca

Acordam no plenário do Tribunal Constitucional:

1- O Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, como representante do Ministério Público, veio "requerer, ao abrigo dos artigos 281º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa e 82º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 69º, nº 1, alínea a) do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, na parte em que refere os descendentes em 1º grau do senhorio" .

Para fundamentar o seu pedido o requerente invoca que "tal norma foi explicitamente julgada inconstitucional, por violação da alínea h) do nº 1 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa (na versão de 1989) através dos acórdãos nºs 127/98, de 5 de Fevereiro (in Diário da República, II Série, nº 114, de 18 de Maio de 1998), 426/98, de 16 de Junho e 427/98, da mesma data", tendo juntado cópias desses acórdãos.

2- Notificado para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, ao abrigo do disposto nos artigos 54º e 55º da citada Lei nº 28/82, o Primeiro-Ministro limitou-se a dizer que "oferece o merecimento dos autos".

3- Apresentado memorando, nos termos do disposto no artigo 63º da mesma Lei nº 28/82, foi ele apreciado, discutido e votado, na sessão de 13 de Janeiro corrente, seguindo-se a distribuição dos autos nessa mesma sessão, depois de fixada a orientação do tribunal sobre o objecto do pedido.

Cumpre agora decidir.

  1. O artigo 69º, nº 1, a), do Regime de Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro (na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 279/93, de 15 de Outubro), dispõe como se segue:

    "1- Sem prejuízo dos casos previstos no artigo 89º-A, o senhorio pode denunciar o contrato para o termo do prazo ou da sua renovação nos casos seguintes:

    1. Quando necessite do prédio para sua habitação, ou dos seus descendentes em 1º grau, ou para nele construir a sua residência;

    (...)"

    Por seu turno, a Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, dispõe, nos seus artigos 1º e 2º, na parte relevante quanto a este último preceito:

    "Artigo 1º

    É concedida ao Governo autorização para alterar o regime jurídico do arrendamento urbano.

    Artigo 2º

    As alterações a introduzir ao abrigo da presente autorização legislativa devem obedecer às directrizes seguintes:

    a) Codificação dos diplomas existentes no domínio do arrendamento urbano, por forma a colmatar lacunas, remover contradições e solucionar dúvidas de entendimento ou de aplicação resultantes da sua multiplicidade;

    b) Simplificação dos regimes relativos à formação, às vicissitudes e à cessação do respectivo contrato, de modo a facilitar o funcionamento desse instituto;

    c) Preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário; [...]"

    Aquela norma do artigo 69º, nº 1, a), veio, com efeito, e tal como se alega no requerimento inicial, a ser julgada inconstitucional nos acórdãos deste Tribunal Constitucional aí identificados e cujas fotocópias se juntaram com o pedido, por violação do artigo 168º, nº 1, h), da Constituição (versão de 1989) na parte em que refere os descendentes em 1º grau do senhorio ou – o que é o mesmo – na parte em que permite ao senhorio denunciar o contrato quando necessite do prédio para habitação dos seus descendentes em 1º grau.

    Seguindo de perto a fundamentação desenvolvida nos acórdãos nºs 127/98 e 426/98 – o acórdão nº 427/98 limitou-se a remeter para a fundamentação daquele outro com o nº 127/98 – e transcrevendo os trechos mais relevantes que deles constam, tudo se reduz "em saber se o legislador governamental dispunha de habilitação parlamentar para editar tal solução, alargando aos descendentes do senhorio o elenco dos necessitados do locado para aí instalarem a respectiva residência, em termos de o senhorio poder denunciar judicialmente o contrato de arrendamento para proceder à instalação dos seus descendentes no imóvel ou fracção em causa".

    Lê-se no acórdão 127/98:

    "Comentando o art. 69º do R.A.U., logo em 1990, António Menezes Cordeiro e Francisco Castro Fraga afirmaram que esse preceito correspondia ao art. 1096º do Código Civil, "com uma inovação de grande significado: o senhorio pode não só denunciar o contrato de arrendamento quando ele próprio necessite do prédio, mas também quando os seus descendentes em primeiro grau dele necessitem". Na opinião destes comentadores, tal inovação era "inteiramente de aplaudir: na verdade, entre o interesse do inquilino em manter a utilização do locado e o do senhorio em conseguir habitação para os seus filhos, é de justiça que a lei dê maior protecção a este último quando o senhorio seja proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio (cfr. o artigo 71º)" (Novo Regime do Arrendamento Urbano Anotado, Coimbra, 1990, pág. 115).

    É, assim, indiscutível que se trata de uma inovação significativa, relativamente ao direito anterior (Código Civil de 1966, diploma que reproduzia a solução da Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948).

    Importa, igualmente, pôr em relevo que a discussão sobre os titulares e beneficiários do direito de denúncia do arrendamento é clássica na História do Direito Privado português.

    O Livro IV, Título XXIV, das Ordenações Filipinas admitia como causa de despejo imediato a situação em que "o senhor da casa, por algum caso que de novo lhe sobreveio, a há mister para morar nela, ou para algum seu filho, irmão ou irmã, porque nestes casos poderão lançar o alugador fora durante o tempo de aluguer, pois lhe era tão necessário, pelo caso que de novo lhe sobreveio, de que não tinha razão de cuidar ao tempo que a alugou" (transcrito em M. Januário Costa Gomes, Arrendamentos para Habitação, 2ª ed., Coimbra, 1996, pág. 304).

    A partir da legislação vinculística surgida durante e após a 1ª Guerra Mundial, restringiu-se fortemente a possibilidade de despejo dos prédios arrendados para habitação.

    Durante a preparação da Lei nº 2030, o projecto de lei do Deputado Sá Carneiro previa como fundamento de despejo a necessidade de o senhorio necessitar da casa para sua habitação ou para a dos seus ascendentes ou descendentes, solução que chegou a ser aceite no Parecer da Câmara Corporativa sobre a referida proposta. A medida inovatória, porém, veio a ser abandonada dadas as críticas surgidas, nomeadamente do advogado e parlamentar Tito Arantes (veja-se a notícia referida por M. Januário Costa Gomes, ob. cit., pág. 305). A solução que passou a constar da alínea b) do art. 69º da Lei nº 2030 transitou para o Código Civil de 1966, tendo, pois, vigorado durante mais de cinquenta anos qua tale e, na prática, mais de setenta anos (cfr. Jorge H. C. Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, Coimbra, 1996, págs. 173 e segs.; M. Januário Costa Gomes, ob. cit., págs. 304-306)".

    E mais à frente:

    "Desde a revisão constitucional de 1982 entra na competência reservada da Assembleia da República (reserva relativa) o "regime geral do arrendamento rural e urbano" (art. 168º, nº 1, alínea h), da Constituição; actualmente e após a 4ª revisão constitucional de 1997, regula a matéria o art. 165º, nº 1, alínea h)).

    Interpretando esta norma, indicam Gomes Canotilho e Vital Moreira que esta reserva não abrange "eventuais regimes especiais [que] sejam definidos pelo Governo (ou, se for caso disso, pelas assembleias das regiões autónomas), nos pontos indicados pela própria lei, com respeito pelos princípios fundamentais do regime geral [...]. Dentre estes princípios conta-se seguramente o regime de celebração do contrato e da sua cessação, bem como os direitos e deveres das partes (cfr. Ac. TC nº 77/88) e ainda a fixação do montante da renda e respectivos critérios (cfr. Ac. TC nº 245/89). Em qualquer caso, trata-se, entre outras coisas, de dar execução às directivas constitucionais do art. 65º-3 (arrendamento urbano) e do art. 99º-1 (arrendamento rural)" (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, págs. 673-674).

    No referido Acórdão nº 77/88 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., págs. 361 e segs.), teve ocasião o Tribunal Constitucional de precisar o que entrava na competência reservada do órgão parlamentar em matéria de regime geral de arrendamento rural e urbano, nos seguintes termos:

    ‘Refere-se ele [o dispositivo da alínea h) do nº 1 do art. 168º da Constituição] ao «regime geral do arrendamento rural e urbano» - numa fórmula que encontra paralelo na das alíneas d) e e) do mesmo artigo (ambas tratando igualmente de regime geral), e é diferente da das alíneas f), g) ou n), por exemplo, as quais incluem na reserva apenas as «bases» dos correspondentes regimes. Ora, logo este ponto de partida textual mostra que a reserva em causa não se limita à definição dos «princípios», «directivas» ou standards fundamentais em matéria de arrendamento (é dizer, das «bases» respectivas), mas desce ao nível das próprias «normas» integradoras do regime desse contrato e modeladoras do seu perfil. Circunscrito o âmbito da reserva pela noção de «arrendamento rural e urbano», nela se incluirão, pois, as regras relativas à celebração de tais contratos e às suas condições de validade, definidoras (imperativa ou supletivamente) das relações (direitos e deveres) dos contraentes durante a sua vigência, e definidoras, bem assim, das condições e causas da sua extinção - pois tudo isso é «regime jurídico» dessa figura negocial. Por outras palavras e em suma: cabe reservadamente ao legislador parlamentar definir os pressupostos, as condições e os limites do exercício da autonomia privada no âmbito contratual em causa.’ (vol. cit., pág. 367)"

    A lei que autorizou o Governo a legislar na matéria em causa – a citada Lei nº 42/90 – veio fixar directrizes sobre o sentido das alterações a introduzir no regime do arrendamento urbano e foi sujeita a fiscalização de constitucionalidade, no plano abstracto, pelo...

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