Acórdão nº 614/04 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Outubro de 2004

Data20 Outubro 2004
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 614/04 Processo n.º 933/03 1.ª Secção

Relatora: Conselheira Maria Helena Brito

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

  1. Inconformada com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14 de Outubro de 2002 (a fls. 445 e seguintes), que manteve a decisão da 1ª instância (Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia), graduando os créditos dos trabalhadores da sociedade A., declarada falida, com prioridade em relação à hipoteca que esta sociedade constituíra em favor de determinados Bancos, por entender que aqueles créditos dos trabalhadores se encontravam garantidos por privilégio imobiliário geral, a Caixa Geral de Depósitos, S.A. dele interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 464).

    Nas alegações deste recurso (fls. 531 e seguintes), foram formuladas as seguintes conclusões:

    “

    1. O Código Civil que entrou em vigor em 1 de Junho de 1967 apenas prevê a constituição de privilégios imobiliários especiais – n.º 3 do art. 735°;

    2. Assim, o privilégio imobiliário geral para garantia dos créditos laborais dos trabalhadores, previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 12° da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, e no art. 4° da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, constitui uma derrogação ao princípio geral consagrado no n.° 3 do art. 735° do Código Civil de que os privilégios imobiliários são sempre especiais;

    3. Porque a citada Lei n.º [17]/86 não regula o concurso de tal privilégio com outras garantias reais, in casu, a hipoteca, nem esclarece a sua relação com os direitos de terceiros, nem o Código Civil contém a regra relativa a tal graduação haverá que recorrer aos casos análogos, previstos no Código Civil (art. 10º C. Civil).

    4. A similitude entre os privilégios mobiliários gerais e os privilégios imobiliários gerais justifica que se aplique a estes últimos o regime legal expressamente previsto para aqueles.

    5. Assim, haverá que encarar o privilégio imobiliário geral como mero direito de prioridade que prevalece apenas sobre os créditos comuns, aplicando-se-lhe o regime fixado nos arts. 749º e 686º do C. Civil e graduando-se os créditos que dele gozem só após os créditos garantidos por hipoteca.

    6. Ainda que assim não fosse e se entendesse e se concluísse que a lei ordinária impunha graduação diversa, concedendo preferência ao crédito garantido por privilégio imobiliário geral sobre o crédito hipotecário, haveria, então, que afastar tal norma, por violadora de direitos e princípios com assento constitucional.

    7. Concretamente, tal interpretação violaria o princípio da confiança ínsito no Estado de Direito Democrático, consagrado no art. 2° da Constituição da República Portuguesa, e o princípio da proporcionalidade previsto no n° 1 do art. 18° do mesmo normativo constitucional;

    8. Decidindo de modo diferente, o douto acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 686º, n° 1, 749º, 10º do C. Civil e as normas constitucionais acima citadas.”

      Por sua vez, os credores reclamantes B. e outros concluíram assim as respectivas contra-alegações (fls. 574 e seguintes):

      “A. O privilégio imobiliário geral para garantia dos créditos laborais dos trabalhadores, previsto na alínea b) do n° 1 do art. 12º da Lei 17/86 de 14 de Junho e no n° 4 da Lei 96/2001 de 20 de Agosto deverá ser graduado de acordo com o disposto no artigo 751º do C.C.;

    9. Isso mesmo é imposto pela natureza do crédito que se pretende privilegiar, crédito de natureza essencialmente alimentícia;

    10. De igual modo, a teleologia da norma que consagra esse privilégio impõe que a graduação seja feita de acordo com o artigo 751º do C.C., só assim se privilegiando os trabalhadores vítimas de situação considerada pelo legislador como «jurídica, social e moralmente inaceitável»;

    11. E esta causa do crédito impõe igualmente que o privilégio não possa ser especial, mas deve antes ser geral pela correlação que tem com todo o património do empregador;

    12. Acresce que as normas jurídicas em apreciação são distintas das versadas nos arestos do Tribunal Constitucional, citados pelo recorrente;

    13. Distintas quanto à origem e natureza bem como quanto aos sujeitos desses direitos;

    14. Os privilégios creditórios consagrados no art. 12° da Lei 17/86 de 14 de Junho e no art. 4° da Lei 96/2001, não originam quaisquer ónus escondidos ou ocultos;

    15. Não fica, assim, afectada de maneira alguma a confiança e segurança do comércio jurídico;

      I. De facto, na constituição da hipoteca voluntária domina o princípio da autonomia da vontade das partes, podendo estas trocar toda a informação, documentos, balanços e declarações que reputem suficiente para acautelar os seus interesses;

    16. Não vigora, pois, entre as partes contratantes o princípio da confidencialidade tributária;

    17. Todas estas informações podem ser renovadas com a periodicidade que o credor hipotecário entenda conveniente, face à realidade concreta existente, podendo sempre socorrer-se dos mecanismos legalmente previstos, designadamente nos arts. 701º e 725º do C.C., para acautelar o seu direito de crédito;

      L. Não podem quaisquer que sejam os agentes económicos exigir que o ordenamento jurídico elimine a margem de risco que naturalmente decorre de qualquer actividade comercial, industrial, financeira ou outra;

    18. Os privilégios creditórios dos trabalhadores são a emanação directa de direitos constitucionalmente consagrados, art. 59º, n° 3 da Constituição da República;

    19. O legislador constitucional atribui ao salário relevância fundamental, atenta a natureza essencialmente alimentícia que o mesmo reveste para a dignificação e realização da pessoa humana;

    20. Razão de ser e base onde assenta a ideia do Estado de direito democrático (arts. 1° e 2° da C.R.);

    21. A prevalecer a posição do recorrente, então sim, seriam postos em causa direitos constitucionais, como do direito à retribuição do trabalho e a segurança no emprego (arts. 59º, 1.a e 53º da C.R.);

    22. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo fez uma correcta interpretação do direito aplicável, não tendo a interpretação das normas jurídicas em apreço, ferido qualquer norma ou princípio constitucional.”

      O representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça emitiu parecer no sentido da não inconstitucionalidade da norma constante do artigo 12º, n.º 1, da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, “interpretada em termos de o privilégio imobiliário geral, outorgado aos trabalhadores de entidade declarada falida com vista à garantia dos “salários em atraso” e indemnizações por despedimento devidas, prevalecer, ao abrigo do disposto no artigo 751º do Código Civil, sobre a hipoteca, mesmo que anteriormente registada” (fls. 615 e seguintes).

  2. Por acórdão de 4 de Novembro de 2003, o Supremo Tribunal de Justiça concedeu a revista interposta pela Caixa Geral de Depósitos, S.A., invocando os seguintes fundamentos (fls. 623 e seguintes):

    “[...]

    Delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões da recorrente começaremos por dizer que ela tem razão.

    Com efeito, o que cabe aqui resolver é a questão da posição relativa dos créditos desta recorrente e dos outros recorrentes trabalhadores.

    O que tudo se resume a saber se os privilégios gerais conferidos a estes últimos prevalecem sobre a hipoteca de que aquela beneficia.

    Ora esse confronto deve ser resolvido no sentido de que os créditos dos trabalhadores não têm preferência sobre crédito de terceiro garantido por hipoteca anteriormente registada (v. Ac. deste STJ de 27/6/02 – C.J. X, II, 146, de 27/09/02 desta 6ª secção – Rev. 272/02 e de 12/6/03).

    A esta questão não dão resposta nem a Lei 17/86 nem a Lei 96/01 (nem qualquer Lei posterior), sendo, por outro lado, de salientar, que a solução oposta ofende o princípio constitucional da protecção da confiança (art. 2° CRP) do credor hipotecário, que veria neutralizada a eficácia da sua hipoteca, por uma garantia até oculta ou por ele ignorada.

    Seriam em tal caso violadas a garantia e a segurança proporcionada pelo registo predial...

    Assim, e sem necessidade de mais amplas considerações por demasiado debatida e decidida a questão fulcral deste recurso, procede este último.

    [...].”

  3. Deste acórdão vieram C. e outros interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade das normas dos artigos 735º, n.º 3, 749º e 686º, todos do Código Civil, por violação do disposto nos...

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