Acórdão nº 104/04 de Tribunal Constitucional (Port, 11 de Fevereiro de 2004
Magistrado Responsável | Cons. Benjamim Rodrigues |
Data da Resolução | 11 de Fevereiro de 2004 |
Emissor | Tribunal Constitucional (Port |
ACÓRDÃO N.º 104/2004
Processo n.º 656/02
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Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
(Conselheira Maria Fernanda Palma)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A Relatório
1 A. e Outros, trabalhadores do Teatro de São Carlos, como músicos de diversas modalidades, instauraram no Tribunal do Trabalho de Lisboa, acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra TEATRO NACIONAL DE S. CARLOS, E.P., representado pela sua administração liquidatária, FUNDAÇÃO DE SÃO CARLOS e ESTADO PORTUGUÊS, pedindo, entre o mais, que a 2ª ré fosse condenada a reconhecer a manutenção dos vínculos contratuais de trabalho subordinado entre autores e a 1ª ré, o seu direito ao pagamento das retribuições mensais desde a altura em que foram considerados extintos aqueles vínculos e o direito de os mesmos autores ao pagamento de indemnizações. Como uma das causas de pedir, os autores suscitaram a inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 195-A/92, de 8 de Setembro, diploma este que determinou a extinção da empresa pública que geria o Teatro de São Carlos e cuja alínea c) do artigo 2º prescreve que essa extinção produz como efeito a cessação dos vínculos laborais.
2 - Por sentença de 10 de Maio de 2002, o Tribunal de Trabalho de Lisboa decidiu o seguinte:
Em face do exposto julgo a presente acção, em parte, procedente por provada, pelo que, consequentemente, condeno as Rés no seguinte:
a reconhecerem que os contratos existentes entre a 1ª Ré e os Autores B. e C. eram contratos de trabalho;
a reconhecerem que todos os Autores mantinham vínculos laborais de carácter permanente com a 1ª Ré e passaram a tê-los com a 2ª Ré com todos os direitos e garantias de que eram titulares, designadamente, quanto à categoria, remuneração, antiguidade e regalias sociais;
a reconhecerem o direito e consequentemente pagarem (solidaria-mente) todas as retribuições que deveriam ter auferido desde 22.12.92 até à data das respectivas reformas, 9.7.97, 16.9.96, 10.2.93, 21.10.93, 18.1.93, 6.4.95, 22.3.95, 8.9.95, 20.12.93, 7.12.92, 17.11.93, 30.8.93, 26.1.98, 8.1.93, 21.9.94, 22.11.93 e 28.4.95, relativamente aos Autores D., E., F., G., H., I., J., K., L., M., N., O., P., Q., R., S. e T. e até ao presente quanto aos demais Autores, em montantes a liquidar, quanto a todos, se for caso disso, em sede de execução de sentença.
Julgo improcedentes por não provados os pedidos formulados sob as alíneas d) e), deles absolvendo os Réus.
Considero prejudicado o pedido subsidiário da alínea f), dele absolvendo as Rés.
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3 - Para assim concluir, a decisão recorrida recusou a aplicação por inconstitucionalidade orgânica e material do referido art. 2º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 195-A/92, de 8 de Setembro, abonando-se na fundamentação que de seguida se transcreve:
«[...]
Como é sabido a Constituição da República Portuguesa consagra no que se refere às relações individuais de trabalho, entre outros, o principio do direito ao trabalho, art.º 58º, o direito à retribuição de modo a garantir uma existência condigna, art.º 59º, n.º 1, alínea a), o direito à segurança no emprego, encontrando-se proibidos os despedimentos sem justa causa, por motivos políticos ou ideológicos, art.º 53º.
A proibição dos despedimentos sem justa causa implica a nulidade dos actos de despedimento e o direito do trabalhador manter o seu posto de trabalho. Tal proibição constitucional vincula entidades públicas e privadas com trabalhadores ao seu serviço - exigindo-se do Estado a garantia de que essa proibição constitucional é efectivamente observada. Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira in CRP Anotada, Coimbra Editora, pág. 141.
A segurança no emprego não se esgota com a proibição dos despedimentos sem justa causa, pois a mesma pressupõe a existência de uma situação jurídico-laboral e visa assegurar a subsistência dos trabalhadores subordinados.
A proibição dos despedimentos sem justa causa surge, assim, como uma especificidade da garantia geral da segurança no emprego, já que consoante tem sido assinalado pela doutrina e jurisprudência, aquele dispositivo constitucional não pode ser entendido como restrito à matéria da justa causa, pois o direito à segurança no emprego não garante apenas a permanência da relação de trabalho, mas também o exercício do emprego.
Acresce ainda, como foi assinalado no Ac. do TC de 31 de Maio de 1988, BMJ 377, pág. 155 a 157, que o direito ao trabalho consagrado no nosso diploma fundamental enquanto assegura a realização do homem numa dimensão pluridireccional, se deve haver como algo mais complexo do que uma pura relação económica, na qual o acento tónico seria posto na retribuição auferida pelo trabalhador.
Para além dessa componente essencial, existem outras indissoluvelmente associadas a esse direito, entre as quais se contém o próprio exercício do trabalho ou do emprego, do qual o trabalhador não pode, salvo motivo lícito, ser afastado ou impedido de o actuar.
A segurança no emprego postula a estabilidade da relação de trabalho e, nessa medida, impende sobre o legislador a obrigação de contribuir positivamente para a concretização dessa garantia.
No caso vertente, através do art.º 2º, alínea c), do citado DL nº 195-A/92, de 8 de Setembro, operou-se a cessação por caducidade dos contratos de trabalho que ligavam os AA ao TNSC, EP, sendo certo que, por força do art.º 30º do DL 260/76, de 8.4, ao pessoal das empresas públicas se aplica o regime do contrato individual de trabalho.
O regime relativo à cessação do contrato de trabalho encontra-se consagrado no DL nº 64-A/89, de 27.2, dispondo o art.º 6º os casos em que ocorre a caducidade do contrato de trabalho e, concretamente, o n.º 3, a caducidade por extinção da entidade colectiva empregadora desde que não se verifique a transmissão do estabelecimento.
Ora, no caso em apreço, se é certo que a entidade colectiva (Empresa Pública) se veio a extinguir, não é menos certo, como se viu, que o estabelecimento perdurou, manteve a sua identidade económica e artística, tendo-se transmitido para a nova entidade jurídica, entretanto criada.
Estando em causa matéria referente a direitos fundamentais dos trabalhadores, a mesma integra-se na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, art.º 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, não podendo o Governo legislar sem autorização legislativa da AR. Dado que no presente caso não ocorreu tal autorização, o dito normativo está ferido de inconstitucionalidade orgânica.
Acresce que a atitude do Réu Estado ao extinguir a EP, faseando no tempo a instituição de nova entidade, e fazendo cessar pela forma descrita os contratos de trabalho, pretendendo com isso, claramente, obstaculizar à aplicação do regime contido no mencionado art.º 37º da LCT, se traduz em violação do princípio da segurança no emprego, que a ele próprio, como se assinalou, compete promover o que se traduz em inconstitucionalidade material.
Aos tribunais está vedada a aplicação de normas inconstitucionais, pelo que, nos termos do art. 204º da CRP, a citada disposição não será aplicada por este tribunal.
Tudo isto para se concluir que os contratos se não poderão haver por extintos e que os direitos e obrigações decorrentes desses contratos de trabalho celebrados pelos Autores se transmitiram para a Fundação São Carlos sendo esta solidariamente responsável pelas obrigações do transmitente (e não somente pelas obrigações vencidas nos seis meses anteriores à transmissão) já que se não mostra observado o n.º 3 do art.º 37º, cfr., entre outros, o Ac. da Relação de Lisboa de 16.11.94, in CJ XIX, 1994, tomo V, pág. 186 e segs.
[...]».
4 - Desta sentença o MINISTÉRIO PÚBLICO interpôs recurso de constitucionalidade obrigatório, ao abrigo do disposto no art. 70º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (doravante LTC), para apreciação da conformidade à Constituição do referido preceito do art. 2º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 195-A/92, de 8 de Setembro.
5 - Nas suas alegações junto deste Tribunal Constitucional, o recorrente defende a revogação do decidido com base nas razões que condensou nas seguintes proposições conclusivas:
1º A norma constante do artigo 2º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 195-A/92, de 8 de Setembro, interpretada como prescrevendo a cessação por caducidade das relações laborais dos trabalhadores de uma empresa pública extinta, ficando ressalvado o direito destes à correspondente indemnização, não afronta os direitos fundamentais dos trabalhadores, constitucionalmente consagrados.
2º Tal norma não padece de inconstitucionalidade orgânica, quando interpretada por forma a consagrar um regime jurídico não inovatório relativamente ao consignado no artigo 6º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, por não envolver fenómeno jurídico equiparável à transmissão do estabelecimento aí prevista como obstáculo à caducidade das relações de trabalho como decorrência da extinção da entidade colectiva empregadora a extinção e subsequente liquidação universal de uma empresa pública e a superveniente criação após hiato temporal significativo de um ente jurídico de diferente natureza (fundação de direito privado e utilidade pública), encarregado de prosseguir fins públicos análogos aos que foram prosseguidos durante a existência da entidade extinta.
3º E sendo o saldo da liquidação de empresa pública extinta atribuído ao Estado (e não à dita fundação) e estando as finalidades e atribuições da empresa pública em liquidação circunscritas à prática dos actos necessários à respectiva liquidação universal.
4º Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de plena constitucionalidade da norma desaplicada na decisão recorrida.
.
6 - Por sua vez os recorridos contra-alegaram, defendendo o bem fundado do decidido, concluindo do seguinte modo:
«1ª A norma constante do art. 2º, al. c), do Dec-Lei nº195-A/92, de...
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