Acórdão nº 246/05 de Tribunal Constitucional (Port, 10 de Maio de 2005

Magistrado ResponsávelCons. Maria João Antunes
Data da Resolução10 de Maio de 2005
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 246/2005

Processo n.º 508/03

Plenário

Relatora: Conselheira Maria João Antunes

Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional

  1. Relatório

    1. Um Grupo de Deputados do Partido Socialista (PS) à Assembleia da República requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, de inconstitucionalidade e de ilegalidade das normas contidas nos artigos 4º a 8º do Decreto Legislativo Regional nº 2/2003/M, de 24 de Fevereiro.

      As normas em causa dispõem o seguinte:

      "Artigo 4º

      Responsabilização familiar

      1 - Caso o utente permaneça em meio hospitalar após as diligências efectuadas pelos serviços, estes devem notificar formalmente a situação aos familiares, fixando um prazo para o acolhimento do utente e advertindo-os para as consequências da sua omissão.

      2 - Consideram-se abrangidos pelas disposições constantes no número anterior os seguintes familiares pela ordem indicada:

      1. Cônjuge;

      2. Descendentes;

      3. Ascendentes, no caso do utente não ser idoso.

      3 - Considera-se ainda abrangido quem com o utente viva em união de facto.

      Artigo 5º

      Comparticipação

      1 - A permanência em meio hospitalar após alta clínica obriga o utente e seus familiares e quem com ele conviva em união de facto à comparticipação nos custos de internamento.

      2 - O valor dos custos de internamento, para efeitos do presente diploma, o montante que salvaguarde o rendimento pessoal indispensável ao utente, a fórmula de cálculo das comparticipações devidas pelos familiares são fixados por portaria do membro do Governo responsável pela área da saúde, devendo obedecer a critérios similares aos utilizados para fins de acção social.

      Artigo 6º

      Família de acolhimento

      Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, esgotadas as possibilidades de acolhimento pela família biológica, os serviços devem promover a inserção do utente junto de uma terceira família de acolhimento, aplicando-se o regime previsto no Decreto-Lei nº 391/91, de 10 de Outubro, ou no Decreto-Lei nº 190/92, de 3 de Setembro, consoante se trate, respectivamente, de idosos, adultos com deficiência ou de crianças e jovens.

      Artigo 7º

      Receitas

      Os valores das comparticipações constituem receita do Serviço Regional de Saúde.

      Artigo 8º

      Não pagamento voluntário

      A falta de pagamento voluntário das comparticipações, a que se refere o presente diploma, dá lugar a execução, a qual seguirá os termos da execução fiscal".

      O Grupo de Deputados do PS alegou, designadamente, o seguinte:

      - O Decreto Legislativo Regional nº 2/2003/M, que tem por objecto a aprovação de medidas de reinserção familiar e social de utentes com permanência hospitalar após alta clínica, para resolução do problema do “abandono” de pessoas nos hospitais, é susceptível de crítica ao nível jurídico-constitucional e político-social.

      - Uma das medidas adoptadas pelo diploma mencionado consiste em atribuir aos utentes que permanecem em meio hospitalar após alta médica, bem como aos seus familiares, a responsabilidade pelo pagamento dos custos desse internamento.

      - A responsabilização dos familiares é configurada como uma obrigação legal e não como resultado da vontade das pessoas ou de contrato assistencial entre elas e as instituições. Tal medida é criticável, desde logo porque os familiares do utente não beneficiaram nem deram causa ao dito internamento.

      - Para além disso, o diploma regional obriga os familiares a pagar o internamento a preço diferente daquele que é imputado ao próprio beneficiário (o utente), sendo o preço calculado em função do rendimento per capita desses familiares, dando azo a que esse internamento passe a ter preços discriminatórios.

      - O diploma regional não prevê a gratuitidade do internamento após alta nos casos de manifesta incapacidade económica do utente e da família, nem nos casos de impossibilidade de acolhimento familiar, situações que exigem o apoio do Estado e não a imposição de encargos. Efectivamente, os utentes que permanecem em meio hospitalar após alta médica são, em regra, pessoas quase insolventes ou sem capacidade económica e oriundos de famílias pobres, sem condições de protecção sócio-económica e de acolhimento. Trata-se, portanto, de pessoas carentes de maior e melhor protecção social do Estado, ao nível da solidariedade social. A imposição das despesas acima referidas aos utentes e seus familiares constitui uma forma de o Governo Regional se demitir das obrigações sociais a que está constitucionalmente obrigado, traduzindo-se numa violação do disposto no nº 3 do artigo 63º da Lei Fundamental, que impõe (por via do sistema de segurança social) a protecção dos cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.

      - Acresce que a matéria tratada pelo diploma regional (pagamento de custos pelo internamento após alta do utente) é inovadora, não existindo lei geral da República com o mesmo objecto. Ora, na falta de enquadramento legal nacional, o legislador regional não podia ter criado o regime em causa, pois legislou ao abrigo do artigo 227º, nº 1, alínea a), da Constituição e do artigo 37º, nº 1, alínea c), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, que impõem ao legislador regional o respeito pelos princípios fundamentais das leis gerais da República e obrigam à existência de precedência legal nacional.

      - Por outro lado, as normas acima referidas condicionam o poder legislativo das regiões autónomas à existência de interesse específico regional. Não obstante o diploma regional ter sido aprovado ao abrigo do artigo 40º, alínea m), do Estatuto Político-Administrativo (que prevê como matérias de interesse específico regional a saúde e a segurança social), a jurisprudência constitucional tem entendido que só têm interesse específico as matérias que digam respeito exclusivamente às regiões ou que nestas assumam peculiar configuração, exigindo um tratamento especial, diferenciado do restante território nacional (Acórdãos nºs 42/85, 82/86 e 152/87, entre outros). Ora, é discutível que o pagamento de custos de internamento após alta médica seja matéria de interesse específico e, neste sentido, deva ou possa ter um regime diferenciado do restante território nacional.

      - A referida jurisprudência constitucional afirma ainda que a matéria a regular pelas regiões autónomas não pode pertencer à reserva de competência legislativa dos órgãos de soberania, ou seja, não pode constar do elenco de matérias previstas nos artigos 164º e 165º da Constituição. Acontece que o diploma regional alarga a responsabilidade pelo pagamento de custos de internamento a terceiros não beneficiários da assistência médico-hospitalar, criando obrigações novas no ordenamento jurídico nacional e discriminando os cidadãos residentes na Região Autónoma da Madeira relativamente aos restantes cidadãos nacionais (uma vez que não existe um regime similar aplicável a estes últimos). Porque estas matérias se situam no âmbito dos direitos, liberdades e garantias (designadamente, do estatuído no nº 1 do artigo 26º da Constituição), o diploma regional invadiu a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, violando o disposto no artigo 165º, nº 1, alínea b), da Constituição.

      O requerente conclui pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 4º a 8º do Decreto Legislativo Regional nº 2/2003/M, por violação do disposto nos artigos 26º, nº 1, 63º, nº 3, 165º, nº 1, alínea b), e 227º, nº 1, alínea a), todos da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como pela ilegalidade das mesmas, por violação do disposto no artigo 37º, nº 1, alínea c), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (EPARAM), aprovado pela Lei nº 13/91, de 5 de Junho.

    2. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º a 56º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), veio o Presidente da Assembleia Legislativa Regional da Madeira responder, alegando, fundamentalmente, o seguinte:

      - Deflui do quadro constitucional da autonomia legislativa regional, modelado pelas normas invocadas no diploma em causa, e reconhecido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, que a legislação emanada pela assembleia legislativa regional, há-de obedecer aos seguintes parâmetros:

      1. as matérias a tratar deverão ser de interesse específico para a região (limite positivo);

      2. tais matérias não podem estar reservadas à competência própria dos órgãos de soberania (primeiro limite negativo);

      3. ao tratar legislativamente essas matérias, as assembleias legislativas regionais – para além de terem de obedecer à Constituição – não podem estabelecer disciplina que contrarie os princípios fundamentais das leis gerais da República (segundo limite negativo).

      Quanto ao interesse específico:

      - O artigo 228º da Lei Fundamental, para além de elencar várias matérias como sendo de interesse específico, conceptualiza na alínea o) como sendo de interesse específico “outras matérias que respeitem exclusivamente à respectiva região ou que nela assumam particular configuração”.

      - O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, no artigo 40º, vem elencar novas matérias que constituem interesse específico, para efeitos de definição dos poderes legislativos regionais.

      - O Decreto Legislativo Regional nº 2/2003M faz expressa referência à alínea m) do artigo 40º do Estatuto Político-Administrativo (saúde e segurança social), entre as disposições legais ao abrigo das quais emana o poder legislativo.

      - Nesta sequência, o poder legislativo regional alicerçou-se em matéria de interesse específico da Região, pelo menos do ponto de vista formal, legitimando a presunção de que se verifica a sua existência.

      - Não assumindo o problema que subjaz à necessidade de legislar contornos de exclusividade nesta Região Autónoma, o certo é que as suas características sociais demonstram que o problema aqui assume...

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