Acórdão nº 110/05 de Tribunal Constitucional (Port, 01 de Março de 2005

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução01 de Março de 2005
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 110/2005 Processo n.º 73/05 2.ª Secção

Relator: Conselheiro Mário Torres

Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

1. A., B. e mulher C. vêm reclamar, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), do despacho de não admissão de recurso de constitucionalidade, proferido pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Coimbra, em 8 de Novembro de 2004.

1.1. A acção de que emerge o recurso cuja admissibilidade cumpre apreciar foi intentada, no Tribunal Judicial de Sabugal, pelos ora reclamantes contra D. e mulher E., pedindo a condenação destes a demolir uma vacaria e uma pocilga no prazo de um mês, bem como no pagamento da quantia de 20 000$00 por cada dia de atraso no cumprimento da ordem de demolição.

1.2. Tendo a acção sido julgada improcedente por sentença de 22 de Janeiro de 2004, contra esta decisão interpuseram os autores recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, culminando as respectivas alegações com a formulação das seguintes conclusões:

“1.ª – Os autores são os donos de uma casa de habitação composta de rés-do-chão, 1.º andar e águas furtadas, sita na Rua ----------------- ou Rua --------------, em ------------------;

2.ª – Todos os autores utilizam essa casa como habitação;

3.ª – A mesma casa é a única que os autores possuem para passar férias e nela passa também a autora a Páscoa, o Carnaval e feriados prolongados;

4.ª – Os réus construíram, em terreno seu, em 1999, ou seja, 15 anos após a edificação da casa dos autores e a cerca de 31,90 metros desta, um barracão onde se encontra instalada uma vacaria;

5.ª – Nesse estábulo, ou vacaria, desenvolve-se grande quantidade de moscas, mosquitos, melgas e moscas varejeiras que invadem a casa dos autores e obriga-os a ter as portas e janelas da casa sempre fechadas e impede-os de utilizar o terraço da mesma;

6.ª – Os insectos referidos entram na casa pelos furos de respiração e escoamento de águas;

7.ª – «A actividade desenvolvida pelos réus provoca prejuízo substancial para o prédio dos autores, uma vez que

8.ª – destinando-se o mesmo a habitação (ainda que não permanente) está impedida a sua total usufruição» – sentença em recurso, fls. 121 dos autos;

9.ª – «Chamando à colação a matéria de facto provada, temos que a actividade desenvolvida pelos réus viola o direito ao ambiente e os direitos à saúde e ao repouso dos autores» – mesma sentença e local;

10.ª – De tal modo que se torna impossível a sua usufruição (pelos autores ou por quem quer que seja);

11.ª – O direito ao repouso, ao sossego, à tranquilidade, própria e da família, e à saúde são hoje completamente reconhecidos como direitos de personalidade – cfr. artigos 3.º e 25.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; artigo 2.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; artigos 25.º, 64.º e 66.º da Constituição da República Portuguesa; artigo 70.º do Código Civil; e artigos 1.º, 22.º e 41.º da Lei de Bases do Ambiente, e ainda a longa lista de decisões e pareceres que, no mesmo sentido, citámos no corpo desta alegação e que aqui damos por integralmente reproduzidos, para evitar repetições enormes e fastidiosas;

12.ª – Os direitos de personalidade são direitos absolutos que prevalecem sobre os demais como o direito de propriedade ou o direito ao exercício de uma actividade económica – sentença recorrida, a fls. 121 dos autos, e jurisprudência aí citada; e Acórdão da Relação de Lisboa, de 27 de Fevereiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência, tomo I, pág. 115;

13.ª – Os direitos de personalidade são de nível superior aos de propriedade e prevalentes – Acórdão da Relação de Coimbra, 1997, tomo IV, pág. 23;

14.ª – A propriedade é um bem ao serviço do homem e não podem os respectivos direitos jamais equilibrar os pratos da balança onde se contraponham direitos de personalidade – mesmo aresto;

15.ª – Sempre terão de ser valorados desigualmente, para os efeitos do n.º 2 do artigo 335.° do Código Civil, prevalecendo, em caso de espécies diferentes, o que deve considerar-se superior;

16.ª – Ainda sobre os poderes jurídicos atribuídos ao titular do respectivo direito de personalidade pedimos vénia para dar aqui por reproduzida a opinião citada no corpo das alegações, pelo Prof. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, pág. 368;

17.ª – «Os direitos de personalidade implicam uma obrigação de respeito tout court» – Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, pág. 128 e seguintes;

18.ª – Os autores, ao intentarem a presente acção, visaram defender não só o seu direito de propriedade, mas também e principalmente os seus direitos de personalidade;

19.ª – Equacionando mesmo só os aspectos materiais, teríamos de um lado (dos réus) o sacrifício da transferência das vacas do local onde estão, e, do outro lado (dos autores) o abandono de casa de habitação;

20.ª – Evidencia-se, assim, sobre todos os aspectos a prevalência dos direitos dos autores;

21.ª – Mas, como resulta do exposto, o problema tem outros contornos: num plano, conflitualidade entre os direitos de propriedade, noutro plano, direito de propriedade de um lado contra direito de propriedade e direito de personalidade do outro;

22.ª – Dir-se-á, ainda, que a procedência do pedido dos autores, contrariamente ao que parece informar o pensamento da decisão recorrida, não atenta de forma relevante contra a actividade económica dos réus, nem mutila o seu direito ao trabalho; apenas implicará construir um barracão noutro sítio (e os réus possuem vários, como se demonstrou no corpo desta alegação) e mudar para lá as vacas;

23.ª – Interessa salientar que, desde que a actividade dos réus constitui um «prejuízo substancial» para o prédio dos autores, nem interessa se tal prejuízo advém de um uso normal do prédio dos réus – Pires de Lima e Antunes Varela, atrás citados;

24.ª – O dramático ambiente, pintado na douta sentença, com a «destruição» da vacaria é de todo irrealista e fora do contexto da equacionação do problema que está em análise;

25.ª – Como irrealista é o pensamento de que haveria outras soluções compatibilizadoras dos interesses das duas partes;

26.ª – Se os réus limpam a vacaria todos os dias, dela retirando todos os excrementos dos animais (resposta ao quesito 20.º) e isso não evita a invasão de insectos maléficos e tornam impossível a usufruição da casa dos autores, evidente ressalta que só a demolição desta vacaria, com a sua possível transferência para local mais afastado, é a solução apta a pôr fim à conflitualidade descrita;

27.ª – Deve, ainda, dar-se provimento à pedida alteração ao quesito 5.°, o que vem reforçar (embora de reforço não precise) o panorama fáctico já assente;

28.ª – Como disposições legais violadas, dão-se aqui por transcritas, para além de todas as numerosas referidas ao longo desta alegação, especialmente as também já indicadas: artigos 25.°, n.º 1, 64.° e 66.° da Constituição da República Portuguesa, artigos 1.°, 6.°, 22.° e 41.° da Lei n.º 11/87, de 7 de Abril, e artigos 70.º e n.º 2 do 335.° do Código Civil

1.3. Ao recurso foi negado provimento pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7 de Julho de 2004, que, após desatender a pretensão de alteração da matéria de facto, desenvolveu a seguinte argumentação jurídica:

“Como resulta do já exarado no precedente relatório, os autores visam com a presente acção fundamentalmente pôr termo, com a demolição, em prazo curto, da vacaria e pocilga existentes no prédio dos réus, às emissões de ruídos, cheiros pestilentos e proliferação de insectos danosos que delas emanam e que atingem o prédio de habitação de férias dos autores na aldeia referenciada do concelho do Sabugal, tornando muitíssimo incómoda, senão praticamente impossível, a sua normal utilização.

Estamos assim no domínio desde logo da responsabilidade civil extracontratual por violação de direitos de personalidade.

Direitos que são objecto de firme tutela no nosso ordenamento jurídico, conforme o artigo 70.º e seguintes do Código Civil e que mais não são do que uma emanação dos princípios gerais sobre os direitos fundamentais definidos na Constituição.

Preceitua, com efeito, o artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil (doravante pertencerão a este diploma os demais, salvo expressa menção em contrário) que «a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral».

O Código não concretiza, porém, todos esses direitos, sendo, no entanto, comummente aceite que neles se podem e devem incluir o direito à integridade física e moral das pessoas e à saúde, incluindo o direito ao repouso, ao sono, ao ambiente e à qualidade de vida, de resto devidamente salvaguardados nos artigos 25.° e 66.° da Constituição.

E para defesa de tais direitos, preceitua o n.º 2 do artigo 70.º que «independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, a fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida».

Ora, entre essas providências estão as que confere o artigo 1346.° do Código Civil, normativo invocado em primeira linha pelos recorrentes para peticionar o fecho da exploração agro-pecuária dos réus, normativo que, no âmbito da regulamentação do direito de propriedade de imóveis, dispõe que «o proprietário de um imóvel pode opor-se à...

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