Acórdão nº 5/05 de Tribunal Constitucional (Port, 05 de Janeiro de 2005

Magistrado ResponsávelCons. Mota Pinto
Data da Resolução05 de Janeiro de 2005
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 5/05 Processo n.º 335/02 2.ª Secção

Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

  1. Relatório

    AUTONUM 1.A., em representação de seu filho menor B., intentou, em 24 de Outubro de 2000, no Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, acção de indemnização por responsabilidade civil extracontratual contra C. e D., bem como contra os Hospitais E., por deficiências de assistência médica antes e durante o parto do qual veio a nascer aquele filho, provocando-lhe paralisia cerebral grave. Seu pai, F. ratificou em tempo o processado.

    Por despacho de 8 de Maio de 2001, o juiz do processo absolveu os réus singulares da instância, nos seguintes termos:

    (...) nos termos do art. 3º, n.º 1, do DL n.º 48051, os titulares e agentes do Estado e demais entidades públicas respondem civilmente perante terceiros se tiverem excedido os limites das suas funções ou se no desempenho destas tiverem procedido dolosamente.

    Mas analisada a petição inicial o que se constata é que os AA. pretendem efectivar responsabilidade civil dos RR “por facto ilícito imputável a título de culpa” – art. 90º da petição –, donde se verifica que não ocorre no caso vertente o pressuposto consignado naquele art. 3º, n.º 1, que justifique a legitimidade dos referidos RR, donde resulta a procedência da excepção oportunamente arguida neste domínio.

    E entendemos que não obsta a isso o disposto no art. 22º da CRP ao prever que as entidades públicas são responsáveis solidariamente com os titulares dos seus órgãos e agentes por acções e omissões praticadas no exercício das suas funções.

    Com efeito contém-se aí apenas um princípio geral em matéria de responsabilidade civil daquelas entidades, mas tendo a regulamentação concreta de tal matéria sido deixada à lei ordinária, o DL n.º 48051, de 21.11.67, o qual contém a regulamentação daquele princípio geral, definindo concretamente os casos em que as entidades públicas gozam de direito de regresso (art. 2º, n.º 2), os casos em que os agentes e titulares de órgãos são responsáveis e os casos em que as pessoas colectivas são solidariamente responsáveis com aqueles – art. 3º, n.ºs 1 e 2.

    Sendo esta a regulamentação daquela previsão constitucional, é ela que deve prever no caso concreto dos autos quem deve ser responsável por uma conduta que é imputada a título de mera culpa e não de dolo nem de excesso dos limites funcionais, ou seja, a referida norma do art. 3º, n.º 1, donde se verifica que os referidos RR (pessoas singulares) não são efectivamente responsáveis civilmente, motivo por que os julgo partes ilegítimas, absolvendo-os da instância.”

    AUTONUM 2.Inconformados, os demandantes recorreram para o Supremo Tribunal Administrativo, alegando que a “interpretação feita dos artigos 2º e 3º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, na parte que considera que não há responsabilidade solidária dos órgãos, agentes e funcionários do Estado e demais pessoas colectivas públicas perante terceiros lesados, quando está em causa uma conduta meramente negligente, viola o estabelecido no artigo 22º da Constituição da República Portuguesa.”

    No Supremo Tribunal Administrativo, o parecer do Ministério Público foi no sentido de se conceder provimento ao recurso, citando o acórdão de 23 de Maio de 2001 desse Supremo Tribunal (proc. n.º 47084):

    “A Constituição impõe a responsabilidade ao Estado e demais entidades públicas, em regime de solidariedade, em relação a todos os actos ilícitos praticados no exercício das funções públicas e por causa delas, por parte dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes. Estas normas e princípios não são meros auxiliares de interpretação ou integração, pretendem, antes, resolver casos concretos no ordenamento jurídico em vigor, pelo que são exequíveis por si mesmos e constituem normas e princípios perfeitos que impõem um direito líquido e certo; assim sendo, são de aplicação directa e detêm efeitos derrogatórios imediatos sobre o direito ordinário incompatível.

    Deste modo, o regime de solidariedade existirá, não apenas em relação aos actos dolosos a que se refere o art.º 3º do DL n.º 48051, mas também nos casos de negligência consciente ou inconsciente.”

    Por acórdão de 28 de Fevereiro de 2002, o Supremo Tribunal Administrativo negou, porém, provimento ao recurso, invocando a Proposta de Lei n.º 95/VIII do Governo (novo diploma regulador da responsabilidade civil extracontratual do Estado e revogação do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro DE 1967), a qual “delimita o alcance dessa responsabilidade, em termos que permitem afirmar a não desconformidade do art. 2º, n.º 1, daquele DL à norma do art. 22º da CRP.” E concluiu:

    “Decorre do novo regime proposto que o art. 22º da CRP não pretendeu impor uma responsabilidade solidária totalizante, antes buscou diferenciar o grau de imputação de culpa, na esteira do DL n.º 48051, pelo que não inconstitucionalizou o disposto no art. 2º, n.º 1, deste diploma.”

    AUTONUM 3.Os demandantes interpuseram então recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para obter a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48051, no entendimento aplicado nos autos. Os recorrentes concluíram assim as suas alegações:

    “I – Os artigos 2º e 3º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, são inconstitucionais, porque contrários ao artigo 22º da CRP, na interpretação que lhes foi dada pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA), na medida em que considera que não há responsabilidade solidária dos órgãos, agentes ou funcionários do Estado e demais pessoas colectivas públicas perante terceiros lesados, quando está em causa uma conduta meramente negligente, face ao princípio da responsabilidade solidária totalizante decorrente do artigo 22º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

    II – Os artigos 2º e 3º do referido Decreto-Lei estabeleciam que havia responsabilidade solidária do estado e do órgão ou agente, se estes tivessem actuado dolosamente no exercício das suas funções, sendo que, no caso de o órgão ou agente ter agido com mera negligência, havia responsabilidade civil exclusiva do Estado perante o terceiro lesado.

    III – O artigo 22º da CRP veio estabelecer um novo regime mais abrangente quanto à responsabilidade civil extracontratual do Estado e dos seus órgãos ou agentes por actos ilícitos praticados por estes no exercício das suas funções, abrangendo não só condutas dolosas, mas também as meramente negligentes.

    IV – O artigo 22º da CRP é de aplicabilidade directa e de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias consagrados no Título II, da Parte I da Lei Fundamental e possui efeitos derrogatórios imediatos sobre qualquer lei ordinária incompatível.

    V – Os artigos 2º e 3º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, são incompatíveis com o artigo 22º da CRP e por isso são inconstitucionais, porque restringem a possibilidade de o órgão ou agente público no exercício das suas funções e por causa desse exercício ser demandado solidariamente com o Estado havendo responsabilidade civil por factos ilícitos, [n]os casos de conduta dolosa daqueles, contrariamente ao preceituado pelo artigo 22º da CRP que não distingue a actuação dolosa da actuação meramente negligente para efeitos de responsabilização solidária.

    VI – A CRP vem conferir ao lesado um regime mais favorável do que o então existente porque, independentemente da conduta do agente ter sido dolosa ou apenas negligente, vem permitir sempre a demanda do agente solidariamente com o Estado, passando a existir dois patrimónios responsáveis perante o lesado.”

    Os recorridos C. e D. apresentaram contra-alegações, defendendo a constitucionalidade da norma do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48051, sem apresentarem conclusões.

    Os Hospitais E. também contra-alegaram, concluindo assim:

    “(...) terá de se concluir que o art. 22º da CRP não estabelece um novo regime, directamente aplicável e derrogatório, mas sim um princípio geral e abstracto, conciliável e concretizado pela lei ordinária, nomeadamente pelo Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967.

    O Decreto-Lei n.º 48051 regula os termos em que o Estado e demais entidades públicas têm direito de regresso contra os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, harmonizando-se com as regras gerais dos arts. 22º e 271º da Constituição da República Portuguesa.”

    Cumpre apreciar e decidir.

    II. Fundamentos

    AUTONUM 4.Nas suas alegações de recurso, os recorrentes invocaram, como referido, a inconstitucionalidade dos artigos 2º e 3º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967.

    É a seguinte a redacção destes artigos do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967:

    “Artigo 2º

    1. O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.

    2. Quando satisfizerem qualquer indemnização nos termos do número anterior, o Estado e demais pessoas colectivas públicas gozam do direito de regresso contra os titulares do órgão ou os agentes culpados, se estes houverem procedido com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo.”

    “Artigo 3º

    1. Os titulares do órgão e os agentes administrativos do Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pela prática de actos ilícitos que ofendam os direitos destes ou as disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente.

    2. Em caso de procedimento doloso, a pessoa colectiva é sempre...

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