Acórdão nº 683/06 de Tribunal Constitucional (Port, 13 de Dezembro de 2006

Magistrado ResponsávelCons. Mota Pinto
Data da Resolução13 de Dezembro de 2006
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 683/2006

Processo n.º 655/03 2ª Secção

Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto

Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:

  1. Relatório

    AUTONUM 1.Em 2 de Outubro de 1995, A., S.G.P.S., S.A. (anteriormente designada “B. – S.G.P.S., S.A.”) e C., S.A., melhor identificadas nos autos, intentaram, no Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, acção de indemnização contra o Estado Português em que pediam a condenação deste, em montante a liquidar em execução de sentença, numa indemnização por responsabilidade civil extracontratual, resultante do comportamento do demandado no processo de privatização do D..

    Por despacho saneador-sentença, de 14 de Junho de 1996, o demandado foi absolvido do pedido, com fundamento em que “todos os danos alegados se podem imputar à falta de recurso contencioso do acto visado”.

    Recorreram as demandantes para o Supremo Tribunal Administrativo, que, por acórdão de 30 de Abril de 1998, decidiu revogar “a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus regulares e ulteriores [termos] no TAC do Porto, se outros motivos processuais a tal não obstarem”.

    No cumprimento desta decisão veio a ser proferida sentença, de 7 de Março de 2002, no Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, em que se entendeu, nomeadamente, não estarem cumulativamente preenchidos os requisitos previstos no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, que regula a responsabilidade civil do Estado por actos de gestão pública, desde logo por as normas pretensamente violadas não se destinarem a proteger os interesses de um cidadão ou grupo concreto de cidadãos e por da alegada violação de tais normas não terem resultado perdas efectivas, antes ganhos avultados.

    As autoras recorreram para o Supremo Tribunal Administrativo, formulando as seguintes conclusões:

    1.ª – O Estado sabia que, com a sua participação no processo de reprivatização do D., a B. não prosseguia objectivos meramente financeiros e antes encarava a compra de acções do D. como meio de implementar determinado programa, endereçado à realização de certo objectivo - alcançar influência nos destinos do D. e assegurar por essa via uma ligação entre o GRUPO A. e um grupo financeiro (resposta ao quesito 12.°) - assim como sabia que esse objectivo só seria alcançável se o processo de reprivatização do D. se orientasse por um modelo de dispersão do capital social, com preferência dos accionistas;

    2.ª – Foi o próprio Estado que, através de diligências insistentes, sugeriu à B. aquele programa (resposta ao quesito 9.°), cuja realização garantiu ser possível através das prestações a que se obrigou;

    3.ª – Por outro lado, os contactos entre o Estado e o GRUPO PORTUGUÊS desembocaram, sem dúvida, na conclusão de “acordos simples”, de entendimentos, quando não até na celebração de um contrato verdadeiro e próprio;

    4.ª – O Estado e o GRUPO PORTUGUÊS (B. incluída) entraram numa relação particular, por via da qual aquele pretendeu influenciar as decisões e os planos de vida dos respectivos membros através de “declarações comprometedoras” especificamente endereçadas ao mesmo GRUPO PORTUGUÊS, induzindo-os não só a não alienarem as suas acções do D. como a reforçarem as suas participações no Banco, através da “promessa” de que no processo de privatização do D. seria sempre dada preferência aos accionistas e se prosseguiria um objecto de dispersão do capital social.

    5.ª – A mesma mensagem foi, de resto “irradiada” por outros actos (incluindo actos legislativos) e declarações que, não tendo o GRUPO PORTUGUÊS como destinatário particular, não deixaram, obviamente, pelo seu carácter público, de chegar ao conhecimento da B. e dos demais membros do GRUPO PORTUGUÊS e de serem por estes valorados como confirmação e validação das suas expectativas.

    6.ª – Não pode seriamente questionar-se que a conduta do Estado tinha objectivamente o significado de uma tomada de posição vinculante em relação aos moldes da reprivatização do D., e que sobre ele pesavam particulares deveres de cautela e de protecção, designadamente deveres de lealdade, que o obrigavam a não frustrar os objectivos das aquisições prosseguidas pela B., a não diminuir as vantagens alcançadas por esta, nem obstar à obtenção daquelas a que ela podia razoavelmente aspirar;

    7.ª – Os termos em que o Estado conformou a última fase do processo de reprivatização do D. consubstanciam uma violação patente, grosseira e injustificada dos seus compromissos e da confiança e dos deveres de cuidado acima referidos, como aliás foi reconhecido pela Comissão Parlamentar que investigou exaustivamente o dossier;

    8.ª – O princípio da boa fé, na sua vertente de protecção de confiança, constitui um princípio geral da actividade administrativa, que só foi consagrado expressamente através do Dec-Lei n.° 6/96, de 31 de Janeiro, e da revisão constitucional de 1997, mas que já era aplicável anteriormente por estar implícito no princípio da justiça e no princípio da imparcialidade;

    9.ª – Na hipótese em que o comportamento lesivo da boa fé se materializa ou culmina na emanação de um acto administrativo, há ilegalidade desse acto, nada distinguindo neste plano a boa fé, enquanto subprincípio concretizador da ideia de justiça, dos demais princípios constitucionais e legais que presidem à actividade administrativa, como a igualdade, a proporcionalidade, a imparcialidade, etc., sendo que, de resto, o acto contido no art.º 1.º do Dec-Lei n.° 20-A/95 também infringe os princípios da proporcionalidade e da protecção de direitos e interesses legítimos;

    10.ª – No mínimo, a violação da confiança cometida pelo Estado gera responsabilidade civil da Administração Pública perante os particulares, visto que estão presentes in specie todos os pressupostos exigíveis (situação de confiança, justificação para essa situação, investimento de confiança, imputação da situação de confiança);

    11.ª – Por outra via, o acto administrativo de quo agitur viola o art.º 296.° da Constituição e diversas regras da Lei-Quadro das Privatizações;

    12.ª – De facto, a modalidade adoptada para a 4.ª fase não é a “venda directa, antes constituindo uma modalidade atípica e híbrida (uma espécie de auto-vinculação pública do Estado a aceitar uma OPA lançada no mercado) o que consubstancia uma violação da regra da taxatividade das modalidades de reprivatização;

    13.ª – Mesmo que se tratasse de uma verdadeira “venda directa”, não estavam verificados os pressupostos legais da sua adopção (pois de acordo com a exigência do n.° 1 do art.º 13.° da LQP, se o Dec-Lei n.° 321-A/90 tivesse efectivamente querido acolher essas modalidades de negociação excepcionais, teria de ter previsto expressamente os respectivos fundamentos), e ainda que estes se verificassem, não estariam já, de certo, reflectidos no conteúdo do acto administrativo e do caderno de encargos que lhe vai anexo, nem sequer na fundamentação que em preâmbulo é ensaiada;

    14.ª – Ainda por outra via, mesmo que aquela especial modalidade adoptada fosse em abstracto permitida, a verdade é que a sua adopção in casu seria sempre contrária à Constituição (alínea a) do art.º 296.°) e à LQP (art.º 6.°, n.º 2), pois estes normativos estabelecem o recurso preferencial às modalidades regulares, sempre que estas garantam a obtenção de iguais ou melhores resultados, avaliados estes do ponto de visto do Estado;

    15.ª – Acresce que o quadro jurídico da operação de reprivatização assegurava em abstracto e curou de assegurar em concreto uma posição jurídica e factualmente mais vantajosa aos oferentes iniciais quando comparados com eventuais concorrentes, em flagrante contradição com a garantia constitucional da igualdade de tratamento, como também reconheceu a referida Comissão Parlamentar;

    16.ª – Verifica-se, igualmente, incongruência entre a fundamentação e o conteúdo do acto, pois o Governo invocou a necessidade de garantir a “estabilidade accionista” mas essa não era, na verdade, uma sua autêntica e consistente intenção, pois o conteúdo do acto nada se adequa à prossecução desse objectivo;

    17.ª – Finalmente, a patente violação do dever de boa administração - que é uma directa emanação do “princípio da prossecução do interesse público, constitucionalmente consagrado” - constitui também fonte de responsabilidade civil da Administração;

    18.ª – Em matéria de actos jurídicos, o conceito de ilicitude a extrair da interpretação do Dec-Lei n.° 48 051, de 21 de Novembro de 1967, tem necessariamente de ser um conceito alargado, face ao disposto no art.º 6.° desse diploma, justificando-se a presunção de que os actos administrativos ilegais são também actos ilícitos, podendo a presunção ser ilidida apenas se a ilegalidade não gerar invalidade ou se a norma legal violada se orientar clara e exclusivamente para a protecção do interesse geral, sem qualquer refracção nas posições jurídicas dos particulares (direitos subjectivos, interesses legítimos, interesses difusos ou expectativas jurídicas);

    19.ª – Relativamente ao princípio da boa fé, na sua vertente de protecção da confiança, é inquestionável que o princípio violado se destina à protecção da esfera jurídica dos particulares, uma vez que a razão de ser do princípio em causa é, precisamente, a de pôr os sujeitos a salvo de condutas lesivas dos seus interesses e, em caso de violação, de lhes conferir meios para reagir adequadamente em defesa desses mesmos interesses;

    20.ª – O acto de privatização em crise, ao optar pela venda directa, ofende direitos ou interesses legítimos consolidados durante o seu próprio procedimento, quando a Administração foi reduzindo a sua discricionariedade;

    21.ª – As regras sobre reprivatização não se destinam apenas a proteger o bem comum, o interesse de todos os cidadãos. A sua observância é exigível em nome da tutela dos interesses que já tenham tomado posições no âmbito de um concreto processo de reprivatização. Para além disso, têm de respeitar-se os direitos já constituídos, ao abrigo das fases anteriores ou de acordo...

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