Acórdão nº 06800/10 de Tribunal Central Administrativo Sul, 14 de Julho de 2011

Magistrado ResponsávelTERESA DE SOUSA
Data da Resolução14 de Julho de 2011
EmissorTribunal Central Administrativo Sul

Acordam na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul Vem interposto recurso do acórdão do TAF de Sintra que julgou improcedente o pedido de declaração de nulidade ou de anulação dos actos administrativos proferidos pelo Infarmed de autorização à contra-interessada de introdução no mercado dos medicamentos genéricos em causa nos autos.

Em alegações são formuladas as seguintes conclusões: (i) O Acórdão recorrido padece de erros de julgamento de facto e de Direito com os quais a Recorrente não se pode conformar, tendo o Tribunal a quo feito uma incorrecta aplicação do Direito ao caso subjudice.

O Tribunal a quo assenta a sua decisão essencialmente num entendimento errado da tese sufragada pela Recorrente a propósito das competências do Infarmed em sede de procedimento de atribuição de AIM e das regras que lhe são aplicáveis, e numa perspectiva errado quanto à natureza e conteúdo dos direitos de propriedade industrial da Recorrente.

(ii) Quanto à primeira questão, é claro que a Recorrente não defende que caberá ao Infarmed desempenhar as funções que, em Portugal, estão atribuídas ao INPI. O que a Recorrente afirma, com base na vinculação desta entidade pública ao "bloco de legalidade" consignado no artigo 3.º do CPA, é que não podem ser desconsiderados direitos de propriedade industrial válidos quando da concessão de AIM para um medicamento genérico.

(iii) Ou seja, o Réu não pode actuar em violação de direitos da Recorrente de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias fundamentais. Para mais direitos concedidos pelo próprio Estado, através do INPI, quando da concessão da patente em causa nos presentes autos e que o próprio Estado, através do Infarmed, permitiria agora que fossem violados por terceiros! (iv) Os actos administrativos de AIM que a Recorrente impugnou nestes autos referem-se a medicamentos genéricos de Atorvastatina, os quais se definem por confronto com um medicamento de referência - in casu, o medicamento Zarator. A Recorrente, como ficou amplamente demonstrado nestes autos, é titular de direitos de propriedade industrial válidos relativos à substância activa Atorvastatina. A Recorrente não autorizou nenhuma das Contra-lnteressadas a utilizar os direitos decorrentes das suas patentes.

(v) Tendo o Réu conhecimento de todas estas questões, estavam reunidas as condições para que devesse ter indeferido os actos de AIM ora impugnados. Quando muito, o que a Recorrente admitiu é que se o Réu tivesse dúvidas quanto ao âmbito e/ou validade da patente, deveria ter suspendido o procedimento administrativo de AIM por força do artigo 31.º do CPA, devendo nesse caso ter consultado o INPI por forma as esclarecer as suas dúvidas, adoptando um procedimento que o próprio Infarmed já considerou ser o adequado a garantir o respeito pelos direitos de propriedade industrial de terceiros no âmbito do exercício da sua actividade administrativa (cf. cit. Doc. n.º 1).

(vi) No que ao procedimento de concessão de AIM diz respeito, verifica-se que do artigo 25.º, n.º 1, al. a), do Estatuto do Medicamento, resulta que o requerimento de AIM deve ser indeferido, entre outros fundamentos, quando, apesar de validado, não foi apresentado de acordo com o disposto no artigo 15.º. O artigo 15.º, n.º 2, al. i), exige a apresentação de ensaios clínicos e pré-clínicos, os quais apenas podem ser dispensados nos termos do artigo 19.º, n.º 1. Por sua vez, o artigo 19.º do Estatuto do Medicamento ressalva a necessidade de atender aos direitos de propriedade industrial, pelo que o Réu tinha o dever de indagar se os direitos invocados pela Recorrente estavam ou não caducados.

(vii) Também o n.º 4 do artigo 18.º do Estatuto do Medicamento dispõe que, e em especial para o caso de medicamentos genéricos cuja AIM seja concedida por referência a um medicamento de referência, será permitida a aprovação de um resumo das características do medicamento idêntico ao do medicamento de referência, sem prejuízo de não ser permitida a divulgação, por qualquer forma, das partes do resumo das características do medicamento que se refiram ás indicações ou dosagens que ainda se encontrem protegidas por direitos de propriedade industrial na altura de comercialização do medicamento genérico.

(viii) Uma interpretação conforme do artigo 25.º do Estatuto do Medicamento implica que a AIM de um medicamento genérico só pode operar-se em Portugal, nos termos da lei, quando a sua introdução no mercado não seja susceptível de ofender os direitos de propriedade industrial relativos aos medicamentos de referência equivalente.

(ix) O Réu deve obediência à lei e ao Direito, o que se traduz na necessidade de conformar a sua actividade não só com as leis e os princípios jurídicos que disciplinam especificamente uma certa conduta da Administração, mas também com aqueles que constituem todo o ordenamento jurídico ou o chamado “bloco de legalidade”, princípio esse que pacificamente tem sido aceite pela jurisprudência e doutrina nacionais.

(x) Do ponto vista lógico e económico, é previsível que cada uma das Contra-Interessadas inicie com maior brevidade possível a comercialização dos medicamentos genéricos de Atorvastatina autorizados, sendo tal comercialização efectiva uma consequência natural dos actos administrativos impugnados.

(xi) O facto da concessão de uma AIM de medicamentos não prejudicar a responsabilidade civil ou criminal do titular da autorização não significa que o Réu esteja exonerado da obrigação de respeitar os direitos de propriedade industrial da Recorrente.

(xii) O Réu deveria ter decidido o procedimento relativo aos actos de AIM dos medicamentos genéricos de Atorvastatina em conformidade com o disposto no artigo 19.º do Estatuto do Medicamento, ou seja, atendendo à existência de direitos de propriedade industrial válidos. Por conseguinte, falta um pressuposto para a concessão de AIM de medicamentos genéricos de Atorvastatina, pelo que os actos impugnados estão viciados por erro sobre os pressupostos de facto.

(xiii) O entendimento assumido pelo Tribunal a quo viola, não apenas o Estatuto do Medicamento, mas também as demais disposições legais e constitucionais vigentes na ordem jurídica portuguesa.

(xiv) Os direitos de propriedade industrial da Recorrente, como já se referiu, constituem direitos fundamentais de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias constitucionais, por efeito dos artigos 17.º e 18.º da CRP, os quais têm eficácia erga omnes, impondo a todos um dever geral de respeito.

(xv) Nos termos do artigo 316.º do CPI, a "propriedade industrial tem as garantias estabelecidas por lei para a propriedade em geral' e, não obstante o referido Código estabelecer especiais formas de protecção, as autoridades administrativas não podem deixar de assegurar que, na sua actuação, não colidem com a mesma.

(xvi) O Réu não pode, pois, actuar de forma incompatível com a protecção dos direitos de propriedade industrial, sob pena de viabilizar, pela via administrativa, o exercício de uma actividade criminosa. Independentemente da eventual responsabilidade das Contra-lnteressadas decorrente da comercialização dos medicamentos genéricos em causa, pois, ao contrário do que defende o Acórdão recorrido, os diferentes planos de responsabilidade não se confundem.

(xvii) A este propósito cumpre salientar que a preocupação do Tribunal a quo de que, face à duração dos procedimentos de concessão de Al M e fixação de preços para medicamentos genéricos não será razoável exigir-se a caducidade de direitos de propriedade industrial para que as empresas de genéricos possam requerer AIMs, pois tal resultaria num prolongamento do período de protecção das patentes, é facilmente acautelada pela concessão por parte do Infarmed de AIMs de medicamentos genéricos de Atorvastatina condicionadas à caducidade da patente da Recorrente.

(xviii) Assinale-se, aliás, que a Patente n.° 94778 caducará em 10.01.2012, sendo que os actos administrativos de AlM cuja validade se impugna foram praticados em 16.03.2007, ou seja, os pedidos de AIM foram efectuados pela Contra-lnteressada Kalcopharm, com mais de cinco anos de antecedência face à data em que se poderá vir legitimamente a comercializar os medicamentos genéricos em questão, pelo que a preocupação demonstrada pelo Tribunal a quo sobre esta matéria não parece ter sequer acolhimento.

(xix) Acrescente-se ainda que a concessão das AIMs de medicamentos genéricos de Atorvastatina pelo Réu às Contra-lnteressadas não é apenas contrária ao direito nacional, mas igualmente ao direito da União Europeia, porque desconsidera por completo a natureza de direitos fundamentais dos direitos em causa da Recorrente e que, ao contrário do que parece decorrer do Acórdão recorrido, são objecto de uma protecção específica por parte do direito da União Europeia.

(xx) Em síntese, os actos administrativos cuja declaração de nulidade, ou, pelo menos, a anulabilidade, se requer restringem, de forma inadmissível, direitos fundamentais da Recorrente, quer ao abrigo do direito português, quer ao abrigo do direito da União Europeia. Ao concluir em sentido oposto, o Acórdão recorrido interpretou de forma errada disposições legais de direito português, bem como disposições legais de direito da União Europeia, não podendo deixar, por esse motivo, de ser revogado.

(xxi) Por outro lado, a actuação do Réu está sujeita ao princípio da legalidade bem como ao conjunto de princípios constitucionais que enformam a actividade administrativa, nomeadamente os princípios do inquisitório e da imparcialidade.

(xxii) O Réu não adoptou as diligências necessárias para aferir se os pedidos das Contra-lnteressadas cumpriam integralmente os requisitos legais, designadamente o de não colisão com direitos de propriedade industrial válidos, apesar de saber da existência de direitos da Recorrente sobre patentes (actualmente uma patente) referentes à Atorvastatina. Deste modo, os procedimentos de AIM que culminaram com os actos em causa na presente acção, padecem...

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