Acórdão nº 1798/2007-3 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 19 de Abril de 2007

Data19 Abril 2007
ÓrgãoCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Acordam, precedendo audiência, neste Tribunal da Relação de Lisboa I- Relatório 1- Nos autos de Recurso (Contra-Ordenação) nº 10092/05.0TBOER, do 3º Juízo Crim. de Oeiras foi, por douta sentença, julgado parcialmente improcedente o recurso interposto pela TV… relativamente à sua condenação, proferida pela Alta Autoridade para a Comunicação Social, na coima de € 75.000, pela prática da contra-ordenação p.p. pelos artºs 21º nº 1 e 64º nºs 1 al. c) e 3 da Lei nº 31-A/98, de 14/07, sendo então agora ali condenada na coima de € 42.000.

2- São os seguintes os factos julgados provados: "1. No Jornal … do dia 27/01/02, e no Jornal das 13H00, do dia seguinte, em versões no essencial semelhantes, a TV… transmitiu uma reportagem sobre uma menina de dez anos, alegadamente violada por um vizinho adulto, numa aldeia dos arredores de P….

  1. A referida reportagem consistia em depoimentos da menor e de familiares da mesma.

  2. A imagem da menor foi apresentada com a cabeça parcialmente oculta, com um brinquedo que ela própria empunhava, mas sem qualquer disfarce sonoro.

  3. O seu depoimento apenas foi colhido por insistência dos familiares que tinham como objectivo demonstrar a todos que o presumível violador representava um grande perigo para todas as crianças da região.

  4. As imagens mostravam ainda aspectos gerais da povoação onde os alegados factos teriam ocorrido.

  5. Os familiares da menor anuíram em prestar declarações ao jornalista e às câmaras da TV…, sempre visíveis e identificados.

  6. Na peça jornalística exibida no Jornal das 13h00, aparece identificada uma mulher, com indicação do seu nome e grau de parentesco - tia.

  7. Através da divulgação destas imagens e pela falta de disfarce sonoro, era possível a quem conhecesse a menor, reconhecê-la.

  8. A imputação que era feita ao alegado molestador já era sobejamente conhecida naquela povoação.

  9. Ao emitir a referida reportagem sem utilizar disfarce sonoro, a recorrente actuou de forma livre e consciente, aceitando como possível que, nas condições em que foi transmitida a notícia, era susceptível o reconhecimento da criança por quem a conhecesse mais proximamente".

    3- É do assim decidido que interpõe, de novo, o presente recurso, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões: a) "…2.

    São três as principais questões que se colocam em causa no âmbito do recurso: 1) a validade e eficácia do consentimento prestado pelos legais representantes da menor para a difusão da reportagem de 27 de Janeiro de 2002, emitida no Jornal … da TV…; 2) a inconstitucionalidade da interpretação adoptada quanto à violação do artº 21º nº 1 da Lei 31-A/98, de 14/07; 3) a errada subsunção da factualidade dada como provada na decisão recorrida no âmbito da norma prevista no artº 21º nº 1 da Lei nº 31-A/98, de 14/07.

  10. De toda a prova produzida conclui-se que os legais representantes da menor de dez anos de idade prestaram o seu consentimento para que fosse emitido o teor de depoimento da menor, o qual foi prestado com o rosto ocultado através de um boneco de peluche, que não permitia a identificação da menor.

  11. Não é possível concluir de forma segura, face à prova produzida em audiência de julgamento, pela existência de um vício na formação da vontade relativamente ao consentimento dos legais representantes da menor em causa.

  12. É precisamente no interesse da menor e não contra o interesse da menor que o poder de representação que integra o poder paternal é exercido ao dar voz a uma criança que foi vítima de um abuso sexual e que o faz livre e espontaneamente diante das câmaras de televisão e na presença dos seus familiares directos.

  13. O exercício do poder paternal, nos termos do artº 1878º nº 1 do CC, engloba quer o interesse da menor que é representada pelos pais, como também o interesse altruísta dos pais e da própria menor em exprimir a sua experiência para que todos e todas as crianças que são vítimas daquelas mesmas formas de abuso possam saber que ele existe, mas pode ser enfrentado com coragem pelas jovens e com o apoio das famílias, não tendo que ser hipocritamente escondida uma realidade que não é agradável mas ocorre e só terminará quando houver uma sensibilidade geral para o problema.

  14. A decisão recorrida limitou-se a afirmar que o poder paternal é exercido contra o interesse da menor, sem qualquer base factual que o comprove, baseando-se em meros juízos subjectivos e tendo recorrido à figura dos "bons costumes" para retirar conclusões erradas daquele juízo de prognose.

  15. Não foram violados os direitos fundamentais da menor visada na reportagem, pois no local onde os factos ocorreram, todas as pessoas tiveram conhecimento do sucedido ainda antes da emissão da reportagem.

  16. Além disso, não foi possível para quaisquer dos destinatários do Jornal … - ou seja todos aqueles que conheciam a história - identificar a menor através dos sons difundidos ou das imagens reproduzidas na reportagem da TV…, nem isso foi dado como provado na decisão recorrida.

  17. Por outro lado, é evidente o interesse público da notícia, pois foi denunciada a prática de um tipo de crime gravíssimo - de abuso sexual de menores - que merece a reprovação de todos e que durante muito tempo se manteve repetidamente no silêncio, por receio de represálias e, em muitos casos, só por influência dos órgãos de comunicação social foi sendo revelado, como acontece in casu.

  18. Suscita-se a questão do conflito de direitos fundamentais antagónicos: o direito à imagem, o direito à intimidade da vida privada, por um lado, e o direito/dever de informação em liberdade, por outro.

  19. Questiona-se igualmente qual a natureza dos direitos, liberdades e garantias consagrados nos artºs 21º nº 1 da Lei 31-A/98, de 14/07, e requer que seja julgada e declarada a inconstitucionalidade por violação dos artºs 37º nºs 1 e 2, 38º nºs 1 e 2, 18º nºs 2 e 3 da CRP, da interpretação feita pelo Tribunal a quo da norma prevista no artº 21º nº 1 da Lei 31-A/98, de 14/07, quando interpretada em termos de limitar e restringir a liberdade de expressão e o direito/dever de informar, face aos direitos, liberdades e garantias genérica e abstractamente previstos no nº 1 do artº 21º do referido diploma legal.

  20. A previsão legal do artº 21º nº 1 da Lei da Televisão apenas será aplicável quando estejam em causa "casos extremos" de violação dos direitos fundamentais, o que não é manifestamente o objecto dos presentes autos.

  21. Na verdade, é a própria decisão ora recorrida, que manifesta dúvidas em relação à subsunção dos factos dados como provados, no âmbito da norma prevista no artº 21º nº 1 da Lei nº 31-A/98, o que facilmente se conclui pela necessidade em utilizar um exemplo "extremo" de violação do núcleo essencial dos direitos fundamentais, tentando dessa forma estabelecer um paralelismo com o caso dos presentes autos.

  22. Além das declarações da menor terem sido emitidas mediante consentimento dos legais representantes, é também de salientar que a identificação da menor apenas poderia ser eventualmente conseguida pelas pessoas que conheciam a menor e que, por isso, também já conheciam os factos ocorridos, e daquela forma não seria possível a qualquer pessoa identificar, pela primeira vez, a menor, uma vez que a imagem emitida não permitia a identificação do seu rosto, sendo apenas possível ouvir a sua voz.

  23. Ou seja, a repercussão da notícia em termos de permitir a identificação da menor pelo público em geral foi nula, facto que não foi devidamente ponderado na decisão ora recorrida, a qual decidiu de forma manifestamente exagerada face à relativa gravidade da situação em termos de identificação da menor.

  24. Ao subsumir os factos dados como provados na sentença à previsão do artº 21º nº 1 da Lei nº 31-A/98, a decisão recorrida fez incorrecta qualificação jurídica da factualidade assente pois, no limite, a norma na qual se poderiam integrar tais factos são o artº 21º nº 3 e o artº 64º nº 1 al. b), ambos do referido diploma legal.

  25. Em conclusão, deverá ser revogada a decisão recorrida e a arguida ora recorrente absolvida da prática da contra-ordenação p. no artº 21º nº 1 e no artº 64º nº 1 al. c) da Lei nº 31-A/98, de 14/07; 19.

    Deverá ainda, caso se mostre necessário, ser apreciada e declarada a inconstitucionalidade da interpretação normativa do artº 21º nº 1 da Lei nº 31-A/98, de 14/07, por violação dos artºs 37º nºs 1 e 2, 38º nºs 1 e 2, 18º nºs 2 e 3 da CRP.

  26. E, finalmente, em caso de indeferimento dos pedidos anteriores, deverá ser alterada a qualificação jurídica dos factos dados como provados na sentença, quando muito e no limite, hipótese que só se suscita por cautela de patrocínio, integrando-os na previsão do artº 21º nº 3 e 64º nº 1 al. b) da Lei nº 31-A/98, aplicando-se-lhe uma coima inferior à que foi concretamente fixada".

    1. Pugnando pela manutenção do decidido, respondeu o MºPº concluindo também: "I.

      Contrariamente ao que sustenta a recorrente, o consentimento que terá sido prestado pelos pais da menor para recolha televisiva da sua imagem e do seu relato do abuso sexual não pode ser considerado um acto materialmente válido por atentar frontalmente contra os interesses da própria menor e, nessa medida, não configurar um exercício legítimo do poder de representação inerente ao poder paternal.

      Com efeito, conforme preceitua o artº 1878 do CC, o poder paternal dos pais é exercido no interesse dos filhos.

      Ora, no caso em apreço, não existem dúvidas de que qualquer "bom pai de família" colocado nas circunstâncias dos pais daquela criança teria recusado liminarmente sujeitar o seu filho a reproduzir, perante terceiros e para milhões de pessoas assistirem, os factos de violência sexual de que foi vítima, teria recusado liminarmente difundir pormenores de uma história que só aos próprios (e à justiça) diz respeito.

      É por demais evidente que para a saúde, bem estar e salutar desenvolvimento de uma criança não pode ser benéfico que, após ter sido vítima de abuso sexual, seja instada a relatar os detalhes do acontecido, perante pessoas estranhas, sob os...

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